O ano de 2006 foi um fracasso para quem luta em favor da democratização dos meios de comunicação do país. O padrão digital japonês foi adotado como o modelo para a televisão digital brasileira (e possivelmente será também adotado na Argentina). Certo? Claro que não. Por que um modelo que permite interatividade, mobilidade, portabilidade e alta definição é um retrocesso?
Os ongueiros da comunicação dizem: ‘Ah! Porque beneficiou os rádioemissores (leia-se, a TV Globo)’.
Até a adoção do modelo japonês de TV digital, o que se viu foi um embate protagonizado em três espaços: entre oligopólios, setores do governo e no interior da própria ‘sociedade civil’. No primeiro caso, o conflito se estabeleceu entre as emissoras de TV e rádio contra as teles. O confronto foi vencido pelas emissoras, já que, com o modelo japonês, elas podem oferecer conteúdos para cada um dos nossos potentes celulares.
Já a guerra no governo teve sua expressão maior no embate entre Hélio Costa (apoiando o broadcasting) e Fernando Furlan (apoiando as teles). E uma surpreendente terceira via apareceu: Gilberto Gil. O ministro da Cultura surgiu com um discurso contra seus dois pares. Representava um sujeito estranho: o precariado da comunicação, ou seja, uma gama de produtores de audiovisual, software, literatura, cinema, teatro etc., existentes e sobreviventes num mercado que não era de broadcasting e que emergiram, por um lado, por conta de uma política cultural ousada do Ministério, que aparelhou a sociedade com toda uma parafernália tecnológica; e, por outro, por conta de uma produção que está totalmente articulada em redes locais e até globais de produção.
A Globo é o Estado
Enfim, o terceiro embate foi o mais ideológico. E também o mais impotente. Foi liderado pelos já conhecidos grupos que pertencem ao Fórum Nacional de Democratização da Comunicação (FNDC). Esses grupos, oriundos da belíssima luta contra o monopólio que marca o setor, não sabiam se defendiam o padrão nacional – uma versão beta de relativo sucesso – ou o europeu, uma tecnologia que ainda não possuía nem mobilidade, nem portabilidade e uma interatividade a ser melhorada.
Para eles, o modelo japonês, apesar de ter tudo (interatividade, portabilidade, mobilidade, alta definição etc.), era do interesse do inimigo, a Globo. Esses militantes que crêem que só o Estado democratiza a comunicação aprontaram o seu discurso: ‘Fora Rede Globo, a TV digital é do Estado!’ E Gil dizendo: ‘Não, não, a TV digital é nossa, é dos muitos. Não há como produzir tanto conteúdo sem a participação do precariado. É algo irreversível!’
Sinceramente, se continuarem assim, as lutas da FNDC seguirão não obtendo ressonância alguma na sociedade. Isto porque elas se articulam em torno da crença de que o Estado é o guardião da comunicação livre, quando na realidade a concentração das mídias passa exatamente pelo fato de ser o Estado aquele que construiu as bases para o oligopólio. A coisa mais ingênua dessa turma foi acreditar que ao receber mais de 100 canais de televisão a comunicação se tornaria mais democrática. Esqueceram do que já acontece com as rádios.
Há muito espaço no espectro, mas o Estado só libera uma nova estação de rádio para políticos, donos de faculdade ou religiosos. Então o problema da comunicação não é só a oligarquia privada, mas a oligarquia da comunicação do Estado. No final das contas, estamos dentro de uma estratégia do poder que nos torna passivos na produção de meios de comunicação.
É muita filosofia de quinta ficar metendo ferro na Globo, se o problema é que a Globo é o Estado. Não há dois poderes. O diabo é que nossos amigos da esquerda pensam que vão purificar o poder com suas missões ‘contra o monopólio e a favor da comunicação pública’, que é sempre estatal. Um silogismo absolutamente cínico, porque reprime qualquer produção que não esteja nesses dois espaços: a forma-Globo e a forma-Estado. O precariado da comunicação produz, portanto, para além da Globo e do Estado, mas atravessando-os.
Esgotamento da era blockbuster
Essas duas formas almejam grandes audiências, estratégia de sobrevivência política e econômica. Mas o mundo dos blockbuster já é uma missão impossível ou, pelo menos, ingrata. A novidade do cenário contemporâneo da comunicação é a produção das bordas. A desgraça é que esta vive das bordas da produção.
Vive com computador doado, com a câmera usada, com celular pré-pago, com o teatro com goteira, produzindo curta-metragem porque longa é caro. Vive num espaço de precariedade, mas insiste em produzir. E isto não é só realidade das periferias pobres, é uma situação real de todos. São esses sujeitos que produzem a resistência da comunicação. E foram exatamente eles que ficaram de fora da ‘sociedade civil’ que se viu representada por essa gente que só vive com dor-de-cotovelo porque não chega às mentes das massas.
Isso explica, em parte, o fato de a sociedade brasileira imaginar que a televisão digital é imagem sem chuvisco. Gilberto Gil acabou ocupando um grande espaço porque ele representava esse precariado da cultura, e não a ‘sociedade civil organizada’ da comunicação (os ongueiros e alguns intelectuais da comunicação).
O ministro ocupou esse espaço porque a produção do precariado não se coaduna com os princípios políticos da FNDC, justamente porque não quer purificar o Estado, por mais importante que seja regulamentar os setores das comunicações. E mais ainda: esse precariado resiste porque não deseja produzir um ‘campeão de audiência’. Simplesmente porque já tem uma grande audiência. São tantas as produções, com tantas micro-audiências que, somadas, tornam-se um movimento exuberante. Seu valor reside nas contínuas produções, feitas à base da ‘infra-estrutura na mão, uma idéia na cabeça’.
Sendo assim, se houve uma dimensão positiva nessa história da TV digital, muito se deve ao esforço do precariado, tendo como figura central o Gilberto Gil, pois agora a adoção do modelo japonês transformou-se em motivo para mudar a forma-Estado da comunicação social nesse país, leia-se uma ampla revisão das leis que regem as comunicações.
Chega de dor-de-cotovelo
Precisamos definir o queremos com a televisão digital. Não há dúvida: queremos diminuir nossa dimensão precária. Queremos espaços (não só um canal) nos 60 canais que serão liberados pela forma-Estado, mas queremos também garantir, no marco regulatório que vai ocorrer para o setor, o financiamento dessa produção das bordas; queremos garantir mais pontos de cultura, garantir que a grana dos royalties a serem pagos aos japoneses reverta em pesquisa e financiamento da produção dessas bordas etc. Sabemos também que um canal, além de difusão massiva, possibilitará o que mais interessa a nós, precários: a interatividade e a mobilidade, qualidades que potencializam a criação de redes de produção e de produção de redes.
Mas, antes de todas as dimensões formais, precisamos fazer uma ruptura ideológica no nosso trabalho como comunicadores. A comunicação não deve ser mais um trabalho empregado. Um dia desses, em Vitória, uma pessoa do coletivo (é como se intitulam os ongueiros de esquerda) me disse: ‘Não dá para aceitar que o jornal A Gazeta criminalize a luta dos índios contra a Aracruz!’ Aí eu respondi: ‘Então não vá trabalhar lá na Gazeta.’
Precisamos romper com esse desejo de estar no espetáculo sem ficar com dor-de-cotovelo. E investir na produção de uma economia das bordas, que atravessa a do mercado de massa sem ser dependente dele. O êxito das bordas (Youtube, Ebay, Wikipedia, Overmundo etc.) na internet é somente um reflexo do que já acontece fora dela: a produção de comunicação se difunde como uma economia potente que já permite que milhares de pessoas sobrevivam dela. Mas queremos mais. Queremos ficar milionários, mas com produção livre. E para isso a luta será contra a forma-Estado – que construiu a forma-Globo.
E quem quiser chamar isto de pós-modernidade, fique à vontade, mas depois não esqueça de votar na Heloísa Helena, símbolo de parte de uma finada esquerda. Até porque é de pós-soberania, pós-Nação, pós-mercado, pós-massa, que estamos tratando. Se quisermos lutar contra o poder da comunicação, vamos ter que fazer a mesma coisa que o movimento do software livre faz contra a Microsoft: produzir os nossos meios a partir de uma lógica de cooperação baseada na produção de linguagem.
Não tem saída. Isto faz a sociedade ser consciente. Caso contrário, só serão conscientes esses sujeitos frustrados da comunicação: jornalistas, cineastas, publicitários e intelectuais que queriam estar na forma-Estado ou na forma-Globo. Chega de dor-de-cotovelo!
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Professor da Universidade Federal do Espírito Santo, doutor em Comunicação Social (ECO-UFRJ)