Como é a organização atual das relações sociais? Quem determina o que deve ser ‘verdade’ absoluta? Quais são os parâmetros impostos pela nova ordem social, em que as pessoas exercem cada vez mais a individualidade, porém participam ativas de grupos sociais que pregam a coletividade de tribos high tech na rede virtual? Essas são algumas das perguntas que o professor da Unicamp Octavio Ianni tentou responder em seu célebre texto ‘O príncipe eletrônico’, publicado há mais de dez anos.
Com o objetivo de responder a algumas questões referentes ao cenário do fim do século 20, o autor buscou traçar um paralelo entre dois outros tipos de ‘príncipes’ encontrados na história da sociedade mundial: o príncipe de Maquiavel e o moderno príncipe de Gramsci. Dessa forma, ele destacou algumas das diferenças do poder na sociedade ao longo dos tempos, tendo como ‘terceiro príncipe’ a mídia.
Se, nos dias atuais, o fator globalização implica uma nova perspectiva, não só para quem procura ‘diagnosticar’ e entender as relações sociais, como para quem as vive. Fica como máxima dos novos tempos, o diferencial radical dessa mudança, que é exemplo recorrente na política que absorve novas formas de controle e manipulação via meios de comunicação, segundo o autor.
Virtù e fortuna
Para entendermos a noção do real que hoje sofre interferência aguda do processo de interação social, via as redes tecnológicas, devemos estruturar o sentido da era de globalização em camadas que possam definir como o capitalismo e seus processos ‘febris’ de dominação e apropriação econômica desenvolveram o atual sistema mundial. Não há como conceber uma realidade sem essa idéia, bem como não há território livre de tal ‘organismo’ vivo e pulsante que engendra e acelera, constantemente, a noção de real e do tempo, conceito limitante e que agora entra em conflito no cenário da pós-modernidade. Ao focar esses aspectos, Ianni define o principal passo para compreendermos a realidade atual: estamos na era pós-moderna; a era da cibercultura; os tempos do ‘príncipe eletrônico’.
Se o capitalismo avançou nos últimos tempos como instrumento de globalização no mundo, torna-se evidente que foram alteradas as formas de sociabilidade, antes concebidas como tradicionais entre os povos. Agora, não há mais definição de territórios e fronteiras. As linhas de fronteira se romperam com a interação social através dos media tecnológicos. Sem fronteiras para barrar as trocas simbólicas e, principalmente as negociações econômicas, o poderio tecnológico não pertence a apenas uma nação. O desenvolvimento dessa tecnologia é estimulado em trabalhos em rede de pesquisa, por exemplo, sendo esse mais um exemplo de que a interação atual da sociedade ultrapassa o campo do território e do tempo.
Com isso, todas as contradições e transformações estruturam em velocidade ‘feroz’ um novo sentido de realidade com as instituições clássicas e tradicionais da política (instrumento social que é analisado no texto de Ianni). Passando a serem desafiadas a um novo formato, sem essa tomada de posição, correm sério risco de caírem no limbo e esquecimento.
O príncipe de Ianni se desenvolve em decorrência dos outros dois exemplos: o de Maquiavel e o de Gramsci. Para o primeiro, há o sentido de que o príncipe é uma pessoa como metáfora do Estado. Figura política que se sobressai com destaque pelo poder de liderança frente aos demais de seu círculo social. O ‘poder’ dele vem do atributo de conciliar a capacidade de situação e liderança (virtù) com as condições sociopolíticas (fortuna) que o rodeiam. Além disso, ele consegue, com habilidade, essa interação, mesmo que a virtù entre em confronto, quase sempre, com a fortuna, sendo que a primeira, muitas vezes não encontra possibilidades de realizar-se pela presença da outra. Mas esse é o desafio do príncipe: assumir o poder que lhe é conferido por ter condições de prosperar ao harmonizar as variações de fortuna, mesmo quando elas divergem.
Publicidade e marketing político
Já o moderno príncipe de Gramsci se diferencia do modelo teorizado por Maquiavel no século 16. O moderno não é representado por uma figura política de uma pessoa – um líder visto como personificação e síntese da própria política –, mas uma organização composta por figuras que de maior ou menor espaço político influem um estado de participação, o que faz com que o partido tenha o poder. Assim, esse grupo, com líderes e seguidores, vai desenvolver o poder através da ascensão da burguesia e com o acesso ao capital, determinando seu destaque na sociedade de classes ao ser a ‘voz’ das inquietações e reivindicações da sociedade. Com isso, há a manutenção do poder por esse grupo ao se definir como escolhido dos ‘excluídos’, expressando através da política, sua arma de contestação que é contraditória por natureza, já que após a conquista do poder, realizada por embate político, o discurso arrefece de sentido, e ao invés de prosseguir com a ideologia de ‘ser o porta-voz das classes sociais’, o partido segue ouvindo os integrantes de seu grupo, não a massa como um todo. Ou seja, o que vale é o poder soberano defendido como arma da política partidária.
Enfim, chegamos ao príncipe eletrônico, que não é nem a pessoa política definida por Maquiavel, nem o partido ressaltado por Gramsci. Os meios de comunicação assumem tal papel. Por exemplo, a televisão não é apenas um instrumento para a distribuição de informações à sociedade, já que tem o poder de cativar o espectador via a união de imagem e som, tornando-se um aparelho popular em todas as classes sociais, o que faz com que se alcance uma certa manipulação da massa passiva, que é receptora de suas mensagens. A mídia utiliza suas linguagens e formatos próprios para estar ‘imbricada’ aos fatos, estando ela mesmo inserida na história dos acontecimentos nos últimos anos. Assim, as relações da mídia com os outros setores da sociedade, principalmente com o político, determinam a forma como este irá governar.
É através da repercussão de notícias contrárias ou não que se fará com que o governo tenha idéia da postura e das ações que lhe conferem mais propaganda frente à população. Por outro lado, o envolvimento do sistema político com a mídia também influenciará no funcionamento interno e na organização da mídia como empresa que visa o lucro. Esse contexto amplo, onde estão presentes as grandes corporações de comunicação, lado a lado, com outros setores de poder, aponta um intercâmbio de interesses que variam da publicidade consumista desenfreada, aos tentáculos dominadores do marketing político. É nesse universo de relações que se baseia a ‘democracia eletrônica’.
Máscaras das corporações de comunicação
O autor, em seu texto, defende que o príncipe eletrônico é uma ‘criatura da mídia’, sem ter forma ou espaço físico, mas capaz de transpassar os limites humanos, estando em constante atividade e fluidez; característica típica da sociedade líquida preconizada por Zygmunt Bauman, onde o perfil transeunte e móbil dos atores cria redes de sociedade ‘sem identidade própria’, fazendo com que o consumo denote identidades temporárias.
Usado com maestria por quem tem acesso à ‘feitura’ da fortuna e da virtù, o príncipe eletrônico expande seu domínio com técnicas atrativas. A virtù de líderes políticos, partidos e movimentos sociais são usados com técnicas midiáticas que podem dimensionar um sujeito a ser porta voz de um grupo em instantes. Assim, a mídia populariza atores que lhe interessam como instrumentos políticos, em uma relação vulgar de poderes. A política com a base fortalecida pela mídia produz a necessidade da massa pelo líder, este reproduzido e midiatizado, de forma mítica e, com trucagens tecnológicas, ganha os ares do herói e salvador; alguém que seja capaz de responder às angustias de que tanto clama a fortuna no contexto que circunda a sociedade nas suas relações econômicas e sócio-culturais.
Contudo essa espécie de ‘herói’ high tech, com discurso empolado e postura moderna, não passa de um avesso travestido do que realmente é: o mesmo personagem que está sendo utilizado pelos concorrentes na política e que por sua vez, também são as mesmas máscaras forjadas por outras corporações de comunicação. Ou seja, são antíteses na utilização das bandeiras partidárias (apenas com ‘bandeiras’, já que a própria ideologia em tempos pós-modernos passa a ser um referencial de discursos perdidos no passado), mas análogos em postura e posição no jogo político, tudo porque a essência é a mesma de todas as peças do sistema que os envolve e os movimenta na hierarquia do poder.
Uma noiva relação social com o poder
Assim, aquele que vem com a missão de salvar o ‘rebanho’ é o mesmo que se equipara ao seu semelhante na disputa política: o satanizado pela mídia. E esse poder de proporções avassaladoras é devastador por funcionar nos subterfúgios do cotidiano. Nada é mais poderoso do que formar a opinião da massa sobre determinado assunto. Após ter esse controle, o príncipe pode se aventurar em quaisquer dos campos públicos. A multidão passiva que o acolhe de braços abertos; o silêncio de milhões que recepcionam as novas normas do poder, distraídas com a espetacularização de tudo, inclusive da informação; e, para citar Maffesoli, as tribos urbanas que, entediadas com o poder adquirido do ethos consumista, passam a se unir em coletivos que as mantêm unidas com a prática máxima da contemplação dionisíaca frente aos tempos do ‘não tempo’; todos, enfim, são alvos do príncipe eletrônico e da fabricação dos recortes da realidade subvertidos em uma ‘realidade própria’, interessante para o seu sistema de construção de hegemonias.
Esse ‘intelectual orgânico’, como aponta Ianni, está cada vez mais voltado para o virtual, onde atua diretamente. A possibilidade de interferência na consciência social com suas técnicas pode ser visto como mais uma ‘paranóia de conspirações’, mas é que ao desassociar a existência da consciência, o sistema virtual proporciona novos significados de espaço e tempo, ser e devir, pensar e sentir. Ou seja, alteram-se todos os parâmetros que edificavam os ideais de história, memória, passado, presente e futuro. Identidades são mescladas para formar uma ‘identidade transitória’ que pode ser mais facilmente controlada via consumo, tal, seja este, o grande sentido pós-moderno. O fato é que ao derrubarmos fronteiras que antes eram postas e defendidas por ideologias, muitas vezes autoritárias, não se construiu a utopia da democracia benéfica a todos, e sim, uma nova relação social da massa com um poder, este cada vez mais avançado pelo controle da tecnologia, e que agora conhecemos como príncipe eletrônico, ou mass media.
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Jornalista, Bagé, RS