Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Um retrato da impossibilidade

A imagem da atual presidente da República, embarcando para a África do Sul na companhia dos quatro ex-presidentes ainda vivos, todos sorridentes e aparentemente à vontade no grupo, é um retrato fora do contexto da política nacional contemporânea. Na vida real, não há sorrisos disponíveis e nem mesmo o mais asséptico dos pragmatismos consegue dissimular a densidade das tensões contidas na fotografia. Entre José Sarney, o primeiro à esquerda, e Fernando Collor, o quinto à direita, as figuras de Lula da Silva, Dilma Rousseff e Fernando Henrique Cardoso representam o inconciliável.

O funeral do líder sul-africano Nelson Mandela é um desses raros eventos capazes de produzir uma cena de aparente aproximação entre tais protagonistas de uma história na qual o personalismo venceu as possibilidades da convergência.

Separados na imagem pela figura simbólica da atual detentora do poder federal, Fernando Henrique e Lula da Silva representam os dois polos em que se divide a opinião política nacional: Lula segue sendo o herói das classes emergentes, FHC concentra sua influência na classe média tradicional dos grandes centros urbanos.

De alguma forma, esses dois personagens representam uma síntese da sociedade brasileira. Lula, egresso da pobreza e migrante nordestino, é o símbolo da mudança possível em uma sociedade desigual e excludente. Fernando Henrique, íntimo do poder desde o nascimento, vem de uma família de generais e políticos conservadores, mas construiu sua carreira a bordo do socialismo europeu. Em seus dois mandatos, o sociólogo estabilizou a economia; em dois mandatos, o ex-sindicalista produziu o fenômeno da mobilidade social.

O governo de um criou a base para o governo do outro, e o atual deveria ser visto como a consecução natural de um projeto moderno de país, com menos desigualdade e com instituições mais democráticas.

Teoricamente, ambos nascem de um mesmo campo ideológico, chamado de centro-esquerda. Um alienígena que tomasse conhecimento da história recente do Brasil se perguntaria por que razão esses dois personagens arrastam atrás de si antagonismos tão radicais.

Saudade do poder

Não há uma resposta simples para essa questão, principalmente porque a análise dos fatos da política precisa passar por uma complexidade de fatores fora do alcance de uma mente comum. Mas pode-se observar o fenômeno do ponto de vista da comunicação, que, afinal, é onde convergem os elementos que irão formar as opiniões.

Ainda assim, para cada reflexão se impõe uma nova controvérsia, uma vez que o fenômeno em si, de dois caminhos políticos paralelos, se define pelo fato de parecerem inconciliáveis.

De qualquer maneira, a aventura de observar diariamente a comunicação social se baseia na convicção de que para cada signo há um significado e um significante, e somos levados à ilusão de que é possível explicar a política do Brasil contemporâneo pela análise de suas narrativas e seus discursos.

Essa característica de um campo ideológico comum fracionado em duas partes irredutíveis é típica dos processos de construção das nações modernas, em qualquer estágio de suas histórias: a divergência é o passo seguinte das convergências. No entanto, no Brasil pode-se dizer que a divergência tem sido construída e alimentada por protagonistas que não são naturais do processo político.

Não há como entender o radicalismo das posições assumidas em ambos os lados dessa controvérsia sem analisar o papel da mídia tradicional na descrição dos eventos relacionados ao poder. O discurso e a narrativa dos personagens da política são apropriados e manipulados pela imprensa, de modo a condicioná-los a um projeto que não tem a ver com o campo tradicional da política, reflexo hipotético da vontade da sociedade. O jornalismo declaratório não é apenas um estilo – é também uma expressão de poder, ou da vontade de poder.

A imprensa brasileira tem um histórico de intervenções na política que atravessa os tempos e chegou ao extremo quando conspirou para derrubar o governo de João Goulart, em 1964.

Nesta segunda década do século 21, essa vontade de poder se mantém pela radicalização das opiniões. Sem o conflito que tenta alimentar diariamente, a imprensa seria apenas mais um coadjuvante no chamado espaço público.