Às vezes, para não dizer o essencial, a imprensa precisa dizer alguma coisa. Parece ser esse o sentido da manchete da Folha de S. Paulo na edição de sexta-feira (2/8): “Governo paulista deu aval a cartel do metrô, diz Siemens” – é o que anuncia o título principal do jornal, no alto da primeira página.
A reportagem é a primeira manifestação relevante de um dos três diários de circulação nacional sobre a confirmação do esquema de propinas que, durante pelo menos quinze anos, condicionou as contratações de obras e compras de equipamentos para o sistema do metrô e dos trens metropolitanos na capital paulista.
A escolha editorial pode induzir o leitor desatento a concluir que o jornal decidiu finalmente encarar a fartura de evidências sobre um estado permanente de corrupção no governo de São Paulo, cujas consequências podem ser claramente percebidas na insuficiência das linhas de transporte sobre trilhos, no atraso de obras e no custo excessivo do sistema, que acaba repercutindo no preço das tarifas por décadas à frente.
Pelo que se lê na Folha, tudo não passou de um ajuste feito por assessores de um governador que já faleceu, Mário Covas, num contexto em que o acordo entre concorrentes seria a maneira mais prática de resolver rapidamente a disputa entre as empresas candidatas ao contrato.
Em geral, o leitor se distrai com a narrativa e deixa escapar o discurso subliminar presente no texto jornalístico. Então, vejamos: no caso da manchete da Folha, a narrativa nos diz que os documentos apresentados a autoridades brasileiras pela empresa alemã Siemens afirmam que o governo de São Paulo, no tempo de Mário Covas, autorizou a formação de um cartel de multinacionais e empresas brasileiras para cumprir a licitação referente a obras do metrô.
Segundo a reportagem, o conluio teria começado em 2000 e prosseguido nas gestões de Geraldo Alckmin, que era vice de Covas, e de seu sucessor, José Serra. O cartel passou a dominar todos os projetos de metrô e trens metropolitanos, gerando custos sempre maiores.
Em apenas uma licitação, para manutenção de equipamentos da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos, foi possível aumentar os preços em 30%, segundo depoimento de um executivo da empresa alemã. Mas, para o governo de São Paulo, a licitação viciada era a melhor solução, por “dar tranquilidade na concorrência”.
Santa inocência!
Uma das táticas mais corriqueiras na prática jornalística, quando não se quer alimentar polêmicas em torno de determinado assunto, é antecipar uma versão moderada do tema, delimitando a priori certas condições para sua interpretação. Essa adesão condicional quase sempre anula a atenção crítica dos leitores, dando a entender que o veículo não está se omitindo ou tentando encobrir alguns eventos, que preferia não ver transformados em escândalo.
Esse parece ser o caso da abordagem que faz a Folha ao esquema de pagamento de propinas que está ligado ao caso do cartel.
O cartel, que agora é admitido oficialmente, funciona há mais de treze anos, tempo citado pelo jornal – porque, na verdade, o acerto entre o governo paulista e seus fornecedores começou pelo menos em 1998, conforme se pode apreender em reportagens anteriores, publicadas quando outra empresa do cartel, a francesa Alstom, foi acusada de pagar propinas a políticos do PSDB.
Não há como relativizar as responsabilidades de todos os governadores do período – a tese do domínio de fato, afirmada pelo Supremo Tribunal Federal no ano passado, há de se aplicar democraticamente, ou não?
A Folha diz que procurou ouvir o ex-governador José Serra, mas ele “não foi localizado”. O atual governador, Geraldo Alckmin, responde que tudo não passou de um acerto entre as empresas concorrentes, sem participação de funcionários do governo – e de repente o senso crítico do jornal fica obnubilado pelas palavras mágicas do chefe do governo paulista.
Então, estamos combinados: o governo de São Paulo faz uma sucessão de licitações para comprar trens e sistemas de controle de tráfego, tratar da manutenção dos equipamentos, durante quinze anos, e nunca desconfia que os preços são acertados previamente entre os fornecedores?
O jornal que se considera o mais aguerrido do Brasil, cujos repórteres, em outras ocasiões, se dispõem a vasculhar o lixo de agentes públicos, aceita candidamente essa ingenuidade toda.
Não passa pela cabeça dos editores mandar investigar se a mesma bondade com o dinheiro público não se estendeu também para as obras de túneis, instalação de trilhos, construção de estações, como tem sido diligente e devidamente feito no caso dos estádios que estão sendo construídos para a Copa de 2014.
Como diria o parceiro do Batman: “Santa inocência!”