Tuesday, 19 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1279

A morte do jornalismo II

(Foto: Charge – Laerte)


Publicado originalmente no site do objETHOS
O jornalismo no Brasil está morto e insepulto, mas existe uma figura sinistra que permanece a nos assombrar, fazendo-se passar pelo falecido por meio da veiculação, a todo o momento, de volume extraordinário de material pretensamente informativo onde parte importante do conteúdo se caracteriza por sua nuança manipulatória. Isto se verifica na quase totalidade das editorias, em uma vasta gama de assuntos que abrange desde a indigesta área política, com muita ênfase, e se estende a outras esferas mais, como a economia, cultura, esportes e entretenimento, apenas para citar as mais corriqueiras.
Há algum tempo, autores que trabalham com análise, crítica, teoria ou estudos acadêmicos do jornalismo, ao lado da observação atenta daquilo que a mídia produz e publica, assim como as frequentes reações negativas do público, nos levam a concluir pela paulatina degradação da prática jornalística, quer seja em seus aspectos e fatores de ordem técnica, como também de cunho ético e moral.
Títulos como, por exemplo, O jornalismo canalha, dado por Arbex a uma de suas obras, acompanhado do livro de Carlos Dorneles intitulado Deus é inocente. A imprensa, não ou ainda de Jornalismo e desinformação, de Leão Serva, além de inúmeros outros, nos mostram a quantas anda o trabalho realizado nas redações de jornais e revistas, nas emissoras de rádio e televisão e, agora, também na espetaculosa internet, com seus sites, portais, blogs, fanpages e redes sociais diversas.
Em geral, os trabalhos bibliográficos, levantamentos e pesquisas sérias indicam a desventura e indigência que afetam esse monstrengo impostor que insiste em se dizer jornalismo. E quem sabe nós também tenhamos uma boa parcela de culpa nesse estado de coisas, pois muitos dos que atuam profissionalmente na área jornalística têm formação universitária. O que os cursos de jornalismo estão fazendo para cumprir sua finalidade de formar melhores profissionais, no sentido de desempenharem suas tarefas com comprometimento efetivo para com a sociedade, produzindo e veiculando material com a qualidade necessária para informar bem, fornecendo os subsídios indispensáveis aos cidadãos para pensar, decidir e agir? Será que a perda de qualidade verificada nesse pseudojornalismo também não é reflexo direto do que ocorre na academia e da queda de qualidade do ensino nos cursos do campo jornalístico? Infelizmente, para responder a essas indagações nos faltam estudos consistentes e isentos.
Por outro lado, um dos indicadores da ausência de bons predicados nos materiais tidos como jornalísticos é o abandono da reportagem. Em seu livro A reportagem: teoria e técnica de entrevista e pesquisa jornalística, Nilson Lage coloca a importância do repórter.
Se perguntarmos às pessoas em geral que figura humana é a mais característica do jornalismo, a maioria responderá, sem dúvida: o repórter. Se interrogarmos um jornalista sobre quem é o mais importante na redação, ele – excetuado o caso de algum projetista gráfico ou editor egocêntricos – dirá que é o repórter. (LAGE, 2001 p.9).
Na atualidade, praticamente não há mais reportagens na exata acepção do termo, e sim amontoados de pressupostos informativos apenas dispostos de qualquer maneira em um espaço gráfico ou em um período de tempo de transmissão sonora ou audiovisual.
Se, no jornalismo praticado em décadas passadas, a reportagem podia ser vista como algo que mantinha relação com aventura a fim de retratar as diversas feições da realidade, conforme sugere o título da consagrada obra de Kotscho e Dimenstein, no presente essa relação não é mais possível de ser estabelecida, muito devido às transformações registradas no próprio fazer jornalístico, causadas sobretudo pela evolução e emprego de um aparato tecnológico que a cada dia apresenta mais e mais novidades e instrumentos empregados na concepção dos produtos de informação. No entanto, transformações e mudanças, novas técnicas e tecnologias, instrumental, hardwares e softwares sempre com maior sofisticação não significam necessariamente aumento de qualidade. Pelo contrário, o que se tem observado é diminuição de excelência, de credibilidade e de mercado.
Essa situação é consequência, também, da perda de contato do jornalista profissional com o ambiente mais próximo dos acontecimentos. Já não se entrevistam mais o pipoqueiro que sabe das coisas, como Kotscho optou por fazer ao constatar que o jornalismo ficava preso às fontes oficiais, às autoridades e especialistas. E, o que é pior, não há mais disposição em ir às ruas buscar informações, pois tudo parece se resumir à repercussão de denúncias, de informações constantes em processos e inquéritos, às falas de políticos, ministros, magistrados, delegados, celebridades ou personagens hegemônicos – quando é o caso de matérias fora do âmbito da política e da administração pública – e, ainda, às fofocas de bastidores cuja comprovação não é alvo de preocupação.
Aliás, a esse respeito, Lage nos alerta de que: “Jornalistas apressados ou preguiçosos adoram ouvir fontes oficiais (dispensam-se de confirmar informações); detestam ler textos longos, como os de processos judiciais; exageram na apuração de matérias por telefone, não costumam conversar com os entrevistados e desprezam informações que não podem publicar imediatamente.” (LAGE, 1998 p. 235).
Poderíamos incluir nesse contexto da apuração incompleta e ineficiente, talvez até superando o já supérfluo telefone, a internet – que não só facilita a vida dos indolentes como fornece elementos informativos os mais diversificados e funciona tal qual uma fonte inesgotável de dados, declarações, opiniões, análises, em sua maioria rasas, tudo devidamente replicado em materiais aparentemente jornalísticos sem os devidos cuidados e também sem as imprescindíveis contextualizações e explicações para as pessoas a que são destinados.
Não à toa, fomentam-se amiúde, nisso que se pretende jornalismo, as polêmicas inúteis, destaca-se o ranço de convicções superadas, concomitante a conceitos sociopolíticos carcomidos embalados como a salvação do “universo”, ao mesmo tempo adotando e enaltecendo o chatíssimo politicamente correto e se engajando de modo claro ou sub-reptício a alguma corrente político-partidária.
Dessa maneira, o falso “jornalismo perde, então, o traço de novidade e se torna um discurso de divulgação das ideias prontas – que não nasceram da consideração dos fatos, mas de ideologias ou crenças que um editor ou pauteiro dissemina, sem sair da redação”. (LAGE, 2001 p.41).
Então, procedimentos não adequados, ou pelo menos em desacordo com os marcos mínimos de balizamento do ofício jornalístico, culminam por desvirtuar e deturpar de modo definitivo a visão daqueles receptores dos produtos levados até o público, uma vez que corrompem o cerne do jornalismo. A reforçar esse ponto de vista situa-se o conceito segundo o qual “a essência do jornalismo, pelo contrário, é partir da observação da realidade (do que ela tem de singular), esteja ou não conforme alguma teoria”. (LAGE, 2001 p. 42).
A deturpação dos aspectos mais significativos da realidade presente nos conteúdos classificados como jornalísticos pode trazer prejuízos incalculáveis em termos sociais, inculcar divisionismos infrutíferos, acentuar desavenças e promover o ódio, porque a questão da veracidade parece não interessar nem importar mais aos profissionais da mídia e aos influenciadores dos vieses de conteúdo.
Os manuais clássicos de produção jornalística ainda ensinam que a fórmula mais simplificada estabelece quatro qualidades para a boa informação: “deve ser interessante (fugir à banalidade cotidiana), abrangente (interessar ao maior número possível de pessoas), ser nova e verdadeira”. (AMARAL, 1997 p. 41).
Este último requisito, a necessidade de a informação ser verdadeira, está cada vez mais distante no falseado jornalismo atual, pois deixou de ser preponderante na divulgação de qualquer componente informativo, tanto na chamada grande imprensa constituinte da maioria ampla de veículos habitualmente acessados pelo público e até mesmo naqueles que se pretendem alternativos da internet, e ainda com mais força nas páginas pessoais e redes sociais.
Contudo, o fenômeno chamado agora de fake news não é novo, porquanto vem de longe no tempo. Tanto que o problema já era apontado por Luiz Amaral, citando José Julio Gonçalves: “a falsa notícia é, antes de tudo, uma informação como as outras. Ela desempenha o mesmo papel social. A sua existência é possível devido ao fato de que a autenticidade da informação importa pouco à satisfação da necessidade direta de notícias e que as relações sociais supõem um mínimo de confiança e de credulidade”. (GONÇALVES, 1962¹).
O esgarçamento das relações sociais, para o qual contribui de forma relevante o falso jornalismo desenvolvido nos meios de comunicação de maior alcance, rompe com aquele mínimo de confiança e de credulidade imprescindível. O conjunto da sociedade já não acredita nas informações, nas análises, desconfia muito das opiniões transmitidas pela mídia em seus programas e materiais havidos como jornalísticos e tornaram-se comuns as manifestações de insatisfação com o modo de agir desses veículos de comunicação, bem como com o que é fornecido por eles. Mas, apesar disso os responsáveis pelo jornalismo em óbito parecem não entender.
O panorama é desolador, portanto, e em sua lápide o jornalismo aguarda pela improvável ressurreição, por alguém que tenha o poder de vir até ele e dizer: levanta-te.
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REFERÊNCIAS
AMARAL, Luiz. Jornalismo: matéria de primeira página. RJ: Tempo Brasileiro, 1997.
ARBEX Jr, José. O jornalismo canalha. SP: Casa Amarela, 2003.
DORNELES, Carlos. Deus é inocente: a imprensa, não. SP: Globo, 2002.
KOTSCHO, Ricardo e DIMENSTEIN, Gilberto. A aventura da reportagem. SP. Summus, 1990.
LAGE, Nilson. A reportagem: teoria e técnica de entrevista e pesquisa jornalística. RJ: Record, 2001.
LAGE, Nilson. Controle da opinião pública: um ensaio sobre a verdade conveniente. RJ: Vozes, 1998.
SERVA, Leão. Jornalismo e desinformação. SP: SENAC, 2001.
¹ GONÇALVES, José Julio. Sociologia da Informação. Universidade Técnica de Lisboa, 1962/63.
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João Somma Neto é professor do Curso de Jornalismo da UFPR e pesquisador associado do objETHOS.