Tuesday, 05 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

Redes sociais: tempo de vida, fake news e manipulação

(Foto: Unsplash)

Tim Kendall é simples e direto: “Quanto tempo da sua vida você está disposto a nos dar?”, indaga o ex-diretor de monetização do Facebook. Kendall é um dos muitos ex-executivos das chamadas big techs que falam abertamente sobre o modelo de negócios, democracia, controle e mensuração do perfil psicográfico dos usuários das chamadas redes sociais, no documentário “O dilema das redes” (de Jeff Orlowski, lançado pelo Netflix em setembro de 2020). Os depoimentos, sem censura e contundentes, recolocaram no centro do debate público a questão do papel e do espaço configurado pelas plataformas digitais nas sociedades contemporâneas. Afinal, haverá algum limite e controle da sociedade sobre a ação das plataformas digitais?

O modelo de negócios da totalidade dessas megacorporações tem como referência a Google, empresa criada em 1998 por dois jovens estadunidenses que não se limitaram a desenvolver um buscador – hoje praticamente universal –, mas sim uma forma de sustentabilidade financeira baseada na utilização de dados pessoais dos “usuários” para direcionar os anúncios. A fonte de valor que alçou essas empresas ao topo do mundo, hoje com faturamento anual na escala dos trilhões de dólares, é o tempo de vida que cada um de nós, somados, dedicamos diariamente a essas organizações. O engenheiro de dados e desenvolvedor do Gmail, Tristan Harris, faz uma síntese perfeita para se referir à torpe exploração dos nossos dados pessoais para alimentar essa indústria: “Quando você não paga o produto, você é o produto”, revela no documentário. Para fins de um singelo exercício: uma pequena comunidade de 100 pessoas, conectada em média 5 horas por dia, “doará”, ao final de um ano, 42 mil horas de suas vidas aos titãs das redes sociais.

A tentativa de controlar comportamentos e manipular hábitos de informação e consumo sempre esteve presente nas atividades dos meios de comunicações, lá pelo começo do século 20. Desde a primeira teoria da comunicação, a “Teoria da Agulha Hipodérmica”, o poder dos meios era considerado praticamente tirânico. O vagar da história, neste caso, demonstrou que os poderes midiáticos podem muito, mas não podem tudo. E, especialmente, não atingem da mesma forma todas as pessoas. Sempre haverá espaço para movimentos contra-hegemônicos, em se tratando das mídias tradicionais. A dúvida é se tal resistência cidadã é possível, ante a robustez de audiência das principais redes sociais, de alcance planetário, e dada a escala de bilhões de usuários, com ferramentas sofisticadas para coleta, processamento e análise dos dados pessoais, produzindo em tempo real um perfil psicográfico cada vez mais sofisticado.

Liberdade de expressão e exclusão

Em dois momentos recentes da história, de alta relevância política, a associação criminosa de uma empresa britânica, a Cambridge Analytica, com o Facebook, resultou em fraudes e crimes eleitorais. Primeiro, no chamado Brexit – plebiscito realizado em junho de 2016, que culminou na saída do Reino Unido da União Europeia, cujas consequências ainda não foram devidamente evidenciadas. Alguns meses depois, em novembro daquele ano, o mesmo esquema ilegal, baseado na manipulação dos dados de 87 milhões de contas do Facebook, seria usado nas eleições dos EUA – que dariam a vitória a Donald Trump. Usando recursos de big data, o “Projeto Álamo” (centro de estratégia digital de Trump), identificou cidadãos e cidadãs “persuasíveis”, a partir de sofisticados perfis psicográficos. Isolando tais eleitores e eleitoras nos chamados swing states (Michigan, Wisconsin, Pensilvânia e Flórida), o esquema selecionou cerca de 70 mil pessoas, que foram bombardeadas com uma carga potente de desinformação e fake news, decidindo a eleição em favor do candidato republicano.

O “modelo” Cambridge Analytica-Facebook parecia imbatível. Na Casa Branca, Trump escolheu como local de fala o Twitter e passou os quatro anos do seu mandato colocando o selo de “fake news” na imprensa tradicional, e mentindo à vontade naquela rede social: de cada 10 tuítes publicados por ele, pelo menos sete eram falsos ou de conteúdo enganoso. Somente no dia 6 de janeiro de 2021, após a derrota eleitoral e a fracassada tentativa de reverter o resultado eleitoral via judicial (perdeu nas mais de 60 ações que ingressou), Trump foi finalmente excluído do Twitter (e em seguida de todas as redes sociais mais importantes) por ter liderado a invasão do Capitólio, que resultou na trágica morte de cinco pessoas, e foi considerada uma tentativa de golpe contra a democracia estadunidense. A invasão à sede do Poder Legislativo ultrapassara todos os limites da elástica “liberdade de expressão”, à moda do Twitter, fato que obrigou o CEO Jack Dorsey a se manifestar, em artigo público. Escreveu Dorsey:

“Não comemoro ou sinto orgulho por termos que banir @realDonaldTrump do Twitter, ou como chegamos aqui. Após um aviso claro de que tomaríamos essa ação, tomamos uma decisão com as melhores informações que tínhamos com base nas ameaças à segurança física dentro e fora do Twitter. Isso foi correto? Acredito que essa foi a decisão certa para o Twitter. Enfrentamos uma circunstância extraordinária e insustentável, que nos obrigou a focar todas as nossas ações na segurança pública. Os danos offline resultantes da fala online são comprovadamente reais e o que impulsiona nossa política e aplicação acima de tudo”.

A decisão dessa rede social suscitou um debate público intenso sobre a falta de regras democráticas, transparência, mas especialmente sobre o poder concentrado nas plataformas digitais, que se colocam acima dos poderes públicos e de quaisquer formas de controle da sociedade. Ao mesmo tempo, reabriu com intensidade a discussão, nas redes e na mídia hegemônica, sobre questões relacionadas ao fenômeno da desinformação, da chamada “pós-verdade”, cultura do cancelamento, hiperexposição em redes sociais e o poder do oligopólio digital. São perguntas complexas que exigem respostas de igual magnitude, tanto em organismos multilaterais quanto nos parlamentos das democracias liberais representadas pelo G20. Isoladamente, nem os Estados Unidos têm poder para enfrentar Google, Facebook, Twitter, YouTube, LinkedIn, Amazon, Microsoft, Apple etc.

Fake news e manipulação

Retomo as questões suscitadas a partir do debate que tenho feito, com meus alunos e alunas de Teoria da Comunicação, neste semestre, que tem como referência o documentário “O dilema das redes” (cit). Fiz um desenho das coisas que avalio estarem interligadas, cujo centro é precisamente a “chave” do engenhoso modo de transformar o tempo da vida de cada um de nós em moeda, oferecendo-o aos anunciantes, devidamente ajustados de acordo com o conjunto de informações que deixamos nas redes – posts, curtidas, comentários, fotos, emojis, marcações em imagens, republicações, compartilhamentos etc. O cientista de dados Jaron Lanier recoloca a questão de outro modo: “O produto é gradativo, e provoca uma leve e imperceptível mudança em nosso comportamento e nossa percepção” (doc. cit.).

Fonte: elaboração do autor.

O pesquisador brasileiro David Nemer, professor do Departamento de Estudos de Mídia da Universidade de Virgínia, nos EUA, alerta para o fato de que “a desinformação gera muito lucro”. E arremata: “O principal antro da desinformação e de proliferação do discurso de ódio continua sendo o Twitter, o Facebook e o WhatsApp”. Para o pesquisador, a exclusão de Trump e as medidas tomadas pelas plataformas, no sentido de inibir os discursos de ódio e a disseminação de informações falsas, especialmente no Brasil no contexto da pandemia, são muito tímidas e não impedem grupos de extrema-direita de permanecerem ativos, vocalizando em alto e bom som pautas antidemocráticas e obscurantistas que, no limite, atentam contra as liberdades democráticas e os direitos humanos. A moda agora é a chamada “desplataformização”, que significa, segundo Nemer, “retirar uma pessoa da plataforma para conter o estrago das desinformações propagadas em sua conta; ou seja, trata-se do banimento de uma conta de uma plataforma”.

Nesse sentido, as redes sociais se tornaram esse labirinto da desinformação (indústria das fake news), controle político, e manipulação do comportamento (hábitos de consumo), agravada pela ausência completa de transparência. O fenômeno trouxe ainda um profundo impacto na saúde mental da população, em geral, no que diz respeito ao vício e à compulsão, diretamente relacionados ao fetiche da tecnologia e suas promessas de interação social – hoje transformada em “bolhas” ditadas por esotéricos algoritmos.

Por fim, avalio que encaramos, como humanidade, o “dilema das redes” como quem encara o milenar “dilema da esfinge”: decifra-me ou te devoro. O poder global do oligopólio digital configurado pelo GAFAM – Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsoft, ameaça à democracia, o meio ambiente, os direitos humanos e, em última análise, o futuro da humanidade. A cibercultura, tão decantada em verso e prosa na virada do milênio por filósofos de diferentes escolas teóricas, foi sequestrada por um grupo de megacorporações digitais, que hoje estão fora do alcance de qualquer Estado-nação ou organismo multilateral.

O professor David Nemer aponta um caminho, embora cético: “As plataformas precisam ser reguladas. Nos Estados Unidos, a Suprema Corte tem leis que não permitem que essas plataformas sejam processadas civilmente. Por isso há um pedido para que as plataformas sejam reguladas, como foi o caso da indústria do tabaco e do álcool, de modo que elas possam ser responsabilizadas e as pessoas possam processá-las. Também há pedidos para que sejam feitos alertas sobre o uso dessas plataformas, como já é feito em relação ao uso de bebidas e do cigarro”. De nossa parte, como docentes e pesquisadores de escolas públicas de jornalismo, fica o compromisso de seguir discutindo, com alunos e alunas, e levando para os espaços sociais possíveis esse debate: é urgente instituir algum tipo de controle social das plataformas digitais.

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Samuel Lima é professor do PPGJor/UFSC e pesquisador do objETHOS.