Soube da existência do Observatório da Imprensa por intermédio do jornalista Paulo Nassar, amigo de longa data, atual diretor presidente da Aberje (Associação Brasileira de Comunicação Empresarial). Corria o ano de 1996 e Nassar me contava sobre um grupo que se formara em Campinas, sob o guarda-chuva da Unicamp, que vinha trabalhando na articulação de um projeto acadêmico-jornalístico que juntava formação profissional com crítica de mídia. A equipe havia produzido seminários, programas para cursos de pós-graduação latu sensu, publicado um livro, e lançara um site jornalístico cuja pauta primordial era o acompanhamento crítico dos meios de comunicação. Na regência da orquestra que então produzia os primeiros acordes estava Alberto Dines.
Eu conhecia Dines havia muitos anos, a maior parte deles sem nunca tê-lo avistado. Meu pai era leitor contumaz do Jornal do Brasil e, nos anos 1960, foi nesse hoje extinto diário que aprendi a gostar de ler jornal. Não poderia fazer ideia do talento que estava por trás daquele periódico que me encantava a cada dia, a mim e também a meus amigos. Ler jornal ainda era uma prática prazerosa. E foi tão forte a minha relação de juventude com o JB que escolhi fazer ali um estágio, em 1975, quando ainda estudante de Jornalismo da Universidade Federal de Juiz de Fora. No tempo em que frequentei a redação da Avenida Brasil 500, trabalhando no “Caderno B” sob as ordens de Humberto de Vasconcellos e Mário Pontes, Dines já estava fora do JB, demitido que fora em dezembro de 1973.
Um dos motivos para a sua demissão foi a capa da edição de 12 de setembro daquele ano, que noticiava o golpe de Estado ocorrido no Chile, comandado pelo general Augusto Pinochet contra o presidente constitucional Salvador Allende. A censura da ditadura brasileira proibira que o fato ganhasse manchete e fotografias na primeira página. Numa genial rasteira aplicada nos censores, Dines perpetrou, no sufoco, uma histórica capa sem foto e sem manchete, em quatro colunas de texto puro, de um impacto inolvidável para quem teve a ventura de ver o JB exposto numa banca de jornal naquela manhã distante. A edição virou item de colecionador. Dines lembrou o episódio em entrevista ao jornalista Francisco Ucha, publicada no Jornal da ABI nº 374 e 375 (jan/fev de 2012), reproduzida neste Observatório e disponível em http://bit.ly/1O9GSVA:
“Uma das causas da minha saída do JB, em 1973, foi porque eu forcei isso. Quando houve o golpe militar no Chile, veio a ordem da censura para não dar manchete sobre a derrubada do Salvador Allende. Mas a ordem chegou tarde da noite e o Allende estava na manchete! A essa altura, eu já não fechava o jornal. Nós decidíamos a primeira página e eu ia para casa. Já me dava esse direito. O [Carlos] Lemos também já tinha saído e quem ligou foi o Maneco Bezerra [da Silva], excelente jornalista que trabalhava na oficina. Ele alertou da ordem e fui imediatamente para lá. Morava em Ipanema, pegava o Aterro [do Flamengo] e era fácil chegar ao prédio novo do JB naquela hora, quase 11 horas. Quando cheguei um dos superintendentes do jornal já estava lá, mas ele não se meteu. E aí eu falei: ‘Vamos obedecer. Não vamos dar na manchete. Vamos fazer um jornal sem manchete! Vamos contar a história com o maior corpo possível da Ludlow…’ esse era corpo 24, se não me engano. Contamos a história toda e ficou, digamos, um pôster sem manchete. O superintendente do jornal me perguntou: ‘Dines, você tem certeza mesmo que quer fazer isso?’. E eu respondi que nós estávamos obedecendo às autoridades. No dia seguinte o Armando Nogueira, que estava na TV Globo, me telefonou logo cedo: ‘Porra! Isto é uma revolução!’. A direção não criticou nem elogiou. Quem elogiou foram os bons jornalistas. A capa está reproduzida em um livro que organizei, Cem Páginas Que Fizeram História, com a reprodução de outras páginas importantes de vários jornais. Mas a verdade é que três meses depois eu fui demitido por ‘indisciplina’.”
Passei a reconhecer a assinatura “Alberto Dines” tempos depois, em 1976, quando, recém-saído da universidade, fui trabalhar no jornal alternativo Versus, em São Paulo, e lia com vivo interesse a coluna “Jornal dos Jornais”, publicada aos domingos na Folha de S.Paulo. Estava ali, embora eu não pudesse saber, a semente da qual frutificaria o Observatório da Imprensa.
A coluna foi mantida de julho de 1975 a setembro de 1977. Começou no momento em que a sociedade civil avaliava, ressabiada, os movimentos liberalizantes do governo do general Ernesto Geisel, que, inspirado pelas preocupações do “bruxo” general Golbery do Couto e Silva com a sobrevivência do regime, prometia aos quatro ventos uma distensão política “lenta, gradual e segura”. A nota principal da coluna de estreia do “Jornal dos Jornais”, publicada em 6 de julho de 1975, levava o título de “A distensão é para todos”. E abria assim:
“O direito à informação não funciona apenas num sentido, mas tem múltiplas direções: serve aos veículos para informar ao público e serve ao público para se informar sobre os veículos. Democracia vale para todos, caso contrário não é democracia.
“A grande consequência do episódio Watergate, com repercussões mundiais, não foi apenas o fortalecimento da imprensa e a sua institucionalização como quarto poder. A dinâmica e a flexibilidade do processo democrático converteram os meios de comunicação dos EUA, simultaneamente, em grandes campeões e grandes alvos. O acusador, se não passou a acusado, pelo menos sente-se fiscalizado, o que lhe traz mais responsabilidade e ainda maior respeito.
“Hoje, menos de um ano depois da renúncia de Nixon, desponta um novo tema até então circunscrito às academias, associações de classe e aos órgãos especializados – ‘o media criticism’. A imprensa, os jornalistas, os meios de comunicação, os conflitos de interesses, tudo está sendo salutarmente questionado, revirado, exposto.
“Espontaneamente a imprensa se submete à mesma devassa que ela própria provocou na sociedade americana. Porque a imprensa integra a sociedade, é reflexo dela, não pode esconder-se em santuários que ela própria nega aos poderes políticos e econômicos.”
Escrito e publicado há mais de quarenta anos, sob a influência das repercussões do episódio Watergate, da renúncia de Richard Nixon à presidência dos Estados Unidos e, sobretudo, do papel protagônico desempenhado pela imprensa naquele período da história americana, o texto que inaugurou a primeira coluna de crítica de mídia da imprensa brasileira ainda mantém a atualidade de um programa permanente de observação da imprensa a que Dines se dedicaria com denodo nos anos seguintes.
Um compromisso, uma história
Àquela altura, eu já havia aprendido a admirar esse jornalista único, maestro de redações, analista perspicaz da cena política e cultural, um ser inspirador apaixonado pelo jornalismo e absolutamente ciente da função social do ofício. Passei a falar com ele com alguma frequência quando eu era editor na revista Imprensa, e o publisher Dante Mattiussi o convidou para ali assinar uma coluna. Antes da estreia, publicamos uma entrevista com Dines. Ele morava em Lisboa nessa época e no processo de fechamento do texto sanei algumas dúvidas conversando com ele… via fax. Finalmente encontrei-o pela primeira vez, em 1992, quando estava de passagem por São Paulo. Ele e sua mulher, Norma Couri, a quem eu conhecera – embora ela não tivesse dado a menor conta disso – nos tempos de estagiário no Jornal do Brasil: eu, um “foca” amestrado; ela, já reconhecida como a excelente repórter que é.
No texto da primeira contribuição que Dines enviou à Imprensa chamou minha atenção uma expressão supimpa: “Circo da Notícia”. Pronto: estava ali o “chapéu” que iria batizar a nova seção da revista. Pensei ter descoberto a pólvora, mas minha empolgação durou pouco. Dines não topou, vetou o “chapéu”, e não houve argumento que o demovesse de uma ideia fixa: ele queria porque queira que a coluna fosse publicada sob a retranca “Observatório”. E assim foi.
Eu não suspeitava da real intenção de tanta insistência. Dines estava disposto a fixar o nome “Observatório” porque já tinha em mente a construção de um veículo de crítica de mídia intitulado Observatório da Imprensa. Em verdade, o projeto era mais audacioso: articulado ao Observatório, ele concebia uma entidade capaz de atuar na formação especializada de jornalistas e, ao mesmo tempo, dedicar-se à promoção e disseminação da crítica de mídia como forma de a sociedade cobrar excelência e acuidade dos meios de comunicação jornalística. (Era o esboço do que mais tarde se converteria no Projor – Instituto para o Desenvolvimento do Jornalismo.) Seu argumento maior, e acertado, era o de que o jornalismo e as liberdades de imprensa e de expressão são tão necessários à democracia que sua prática e manutenção são garantidas pela Constituição. Ora, se a mídia e a atividade profissional são protegidas pela letra constitucional, então os seus operadores devem prestar contas à sociedade que garante a sua existência e consome os seus conteúdos e serviços.
O que era apenas uma vontade finalmente tomou forma com o endosso dado ao projeto pelo então reitor da Unicamp, o poeta e linguista Carlos Vogt, que ao fim de seu mandato deixou estruturado o Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor), vinculado ao Núcleo de Desenvolvimento da Criatividade (Nudecri) da universidade, onde, em abril de 1996, veio à luz o Observatório da Imprensa.
Anotou Alberto Dines dez anos atrás, ao se completar a primeira década de existência deste Observatório:
“(…) o jornalismo é um exercício crítico permanente ao qual todos devem ser submetidos, sobretudo o próprio jornalismo. Quando a imprensa se exclui do debate torna-se automaticamente suspeita.(…) A democracia é um processo dinâmico em que cada poder necessita de um contrapoder para equilibrá-lo. O único e legítimo contrapoder ao poder da imprensa é a conscientização do cidadão-leitor, cidadão-ouvinte, cidadão-telespectador e cidadão-internauta. [O Observatório] considera o exercício crítico como ação política, mas a partidarização desta crítica converte-a em algo tão enganoso quanto as manipulações que pretende corrigir.” [Cf. “Um compromisso, uma história, um saldo”, Observatório da Imprensa nº 379 (02/05/2006), disponível em http://bit.ly/1Qfqryt]
Sem arrogância
Minha primeira experiência com a internet deu-se em março de 1995, por meio de uma conta Embratel. Eu era navegante esforçado, sujeito às vicissitudes de uma conexão discada, instável e lenta, quando, em meados de 1996, Paulo Nassar me avisou do Observatório. Num momento seguinte, conheci Mauro Malin, então braço direito e esquerdo de Dines na operação do OI.
O Observatório da Imprensa havia nascido sob padrão digital, adotado uma redação virtual e com a internet impregnada em seu DNA. A primeira edição do OI apareceu na web em 1º de abril de 1996, a segunda, em 1º de julho, e a partir da terceira, dada em 5 de agosto daquele ano, as edições passaram a ser quinzenais, “subindo” nos dias 5 e 20 de cada mês. Logo a periodicidade passou a semanal até que o próprio conceito de periodicidade fosse subvertido: hoje as atualizações do site se dão a todo o tempo, a qualquer tempo. Mais adiante, ao empreendimento foram agregados um programa de TV (maio, 1998) e um de rádio (maio, 2007).
Acompanhei o projeto desde o início, com incontido entusiasmo, e em minha santa ingenuidade fabulava que Dines e seus companheiros contavam com uma sólida estrutura de retaguarda para tocar suas atividades. Certa vez escrevi um e-mail a Mauro Malin, então redator chefe do site, dando como certo que, além de acompanhar a mídia impressa, a equipe do Observatório diariamente gravava todos os telejornais e, ato contínuo, os decupava para então analisar seus conteúdos e seguir, cumulativamente, na constituição de um formidável banco de dados. Ao ler minha mensagem, Malin deve ter sorrido o seu sorriso mais condescendente.
Na edição de número 10 (20/11/1996), publiquei minhas duas primeiras colaborações. Aproximei-me do grupo, até que em junho do ano seguinte Dines me convidou para cuidar do projeto da edição impressa do Observatório. A ideia era condensar, em uma publicação mensal, o melhor das duas edições quinzenais do mês anterior. O projeto tinha o patrocínio da Xerox do Brasil. Era como uma revista em tamanho A4, 16 páginas em P&B, grampeadas, de distribuição gratuita, via correio. A produção era minha e da diretora de arte Fernanda Leonardo, a autora do logotipo original que se converteu em marca do Observatório.
A versão impressa do OI circulou 29 edições, entre agosto de 1997 e março de 2000. Foi a minha inserção no projeto e o início de uma convivência mais próxima com Alberto Dines – esta sim, uma das circunstâncias mais auspiciosas com que fui brindado em minha vida profissional. No início de 1999, assumi a edição geral do site do Observatório e os contatos com Dines tornaram-se, até por dever de ofício, mais intensos e assíduos. E assim foi até o fim de junho de 2015, quando me desliguei do projeto.
Se uma das obrigações precípuas do jornalista é jamais negligenciar do aprendizado constante, trabalhar com Alberto Dines é uma dádiva pedagógica. O mentor do Observatório, afora ser um jornalista de relevância reconhecida, biógrafo de fino trato e, ademais, um gentleman, é um senhor entrado nos 80 que desde os 60 ou 70 trabalha e atua com uma energia de dar inveja a um garoto de 40 anos de idade. Sem contar que se trata de um cultor da História, um erudito afável, didático e sem um pingo de arrogância, que leu os clássicos e conhece tudo de música e de vinhos. E engraxa os seus próprios sapatos. Entre os semeadores e os coveiros, alista-se no primeiro grupo.
Este Observatório é Alberto Dines.
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Luiz Egypto é jornalista