Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A publicidade de choque

Figure-se um cartaz enorme na saída da cidade, onde se lê no alto: ‘230cv, 237 km/h, de 0 a 100 em 6’1’; no centro, os destroços de um carro; embaixo, ‘modelo 4 idiotas a menos’. Não é preciso dar asas à imaginação para interpretar: quatro jovens amantes da velocidade morreram por esse amor ‘idiota’ numa estrada qualquer.

O cartaz-manifesto, fruto de uma campanha do governo da região da Emília-Romagna (centro da Itália), tem como autor o conhecido fotógrafo e publicitário Olivero Toscani.

Até aí, tudo mais ou menos normal, já que, por um lado, as estatísticas de acidentes de automóveis nas estradas italianas são tidas como altamente preocupantes e, por outro, conhece-se o estilo algo contundente de Toscani, desde as campanhas que produziu para a Benetton.

O problema é que Genaro Rossi, pai de um jovem morto em desastre automobilístico juntamente com três amigos (o mesmo acidente da foto exibida no cartaz) decidiu processar tanto o publicitário quanto o governo da região por ‘difamação e injúria de cadáver, além de incitação ao massacre’.

‘E os outros?’

Foram vários os jornais italianos a dar conta, no mês de dezembro passado, do imbróglio. O La Stampa, prestigioso diário regional, observa que, pela primeira vez, alguém recorre à Justiça por um assunto dessa ordem, exatamente num momento em que parece proliferar a chamada ‘publicidade de choque’, destinada a impactar os sentidos e a consciência de um alvo (target, no jargão publicitário) definido como ‘cidadania’.

Em vários pontos da Europa, mensagens cada vez mais ameaçadoras oscilam tematicamente entre os malefícios do cigarro e os horrores da droga. Seja em Londres ou em Paris, por exemplo, diferentes campanhas antidrogas e antiálcool baseiam-se em inquietantes seqüências de primeiros planos que mostram a progressiva decadência física dos tóxico-dependentes.

Mas a questão juridicamente levantada por Genaro Rossi dá foros de controvérsia a esse estilo publicitário. À imprensa, ele explica:

‘O meu filho Paolo morreu no acidente que envolveu três outros jovens. Tinha 21 anos e não estava na direção. Quando vi aquele cartaz na Feira de Rimini com o insulto ‘quatro idiotas’, pedi que o retirassem, porque me fazia muito mal. Como o pessoal do stand oficial se recusasse, chamei os policiais presentes, interpelei o diretor-geral, mas não adiantou. Fui embora zangado. Consultei então um advogado e apresentei denúncia contra Olivero Toscani e a Região da Emilia-Romagna, que lhe havia encomendado a campanha’.

Para Rossi, a ação judicial justifica-se pelo fato de que um pai enlutado, frente às palavras do cartaz, pode sentir-se compelido a cometer atos extremos:

‘Eu não compreendo essa mensagem. Vamos admitir que o acidente tenha sido culpa de um idiota. E os outros? Não sei de verdade aonde querem chegar com essa campanha’.

Exaltação do ego

Por mais complicado que seja tomar um partido, a realidade é que Rossi não está reagindo apenas emocionalmente quando diz não saber ‘aonde querem chegar’.

Nem sempre os publicitários, mesmo quando são bons, sabem exatamente aonde querem chegar em termos sociais, já que na prática tratam primeiro de satisfazer tecnicamente à demanda de seus clientes. Isto pode não colocar maiores problemas quando se trata de produtos comerciais, mas o mesmo não se pode dizer de campanhas referentes à ‘cidadania’. Neste último caso, intervêm de algum modo as regras da lógica social, que podem ser extremamente ambíguas.

‘Sabe-se o que confere à teoria física o seu rigor: são as regras da lógica formal. Não se sabe, porém, o que dá rigor à teoria que cada um aplica à sociedade antes de agir’, diz Jean-Pierre Courtial, um velho analista do discurso midiático.

De fato, o discurso da argumentação pela qual os publicitários legitimam a sua profissão implica uma representação da sociedade, de seus mecanismos e um vocabulário social que variam com freqüência de uma categoria social a outra.

Ao mesmo tempo, os argumentos de legitimação – a publicidade faz vender, a publicidade é informação, a publicidade é comunicação, a publicidade é inovação, a publicidade é a democratização do consumo – consistem em presumíveis ‘leis da opinião pública’, que nem sempre se comprovam quando aplicadas à diversidade dos temas sociais, mas que tendem a ser aceitas sem maiores discussões pela comunidade profissional dos criadores de anúncios.

No caso do cartaz de Olivero Toscani, é possível levantar o argumento da inovação publicitária. A mensagem-choque serviria, por seu ineditismo, para arrancar o cidadão de um suposto torpor coletivo frente a problemas tidos como muito sérios e levá-lo a intervir socialmente. Entretanto, o protesto de Genaro Rossi deixa entrever a dúvida – partilhada por cidadãos comuns e, também, por muitos publicitários – quanto ao bom senso social de mensagens dessa ordem.

A suspeita é que elas poderiam não servir a nada mais do que a exaltação do ego criativo dos publicitários.

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Jornalista, professor-titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro