Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1280

O nosso teatro

No último Observatório, dois textos complementaram-se muito bem: ‘O reino da marquetagem‘, de Nelson Hoineff, e ‘A publicidade em xeque‘, de Júlia Gaspar. Ainda que tratem de assuntos diferentes, ambos nos remetem a um problema grave: a manipulação dos cidadãos pelos meios de comunicação. Hoineff trouxe à baila a questão dos marqueteiros na política e Júlia escreveu sobre a perversidade embutida num outdoor.

O namoro entre jornalismo e marketing nasceu no entusiasmo do pós-guerra a partir de 1945, evoluiu para um casamento de interesses e hoje pode ser considerado lavagem cerebral. Deveria ser caso de polícia, mas exatamente como o narcotráfico ou o ‘combate ao narcotráfico’, é um teatro muito bem armado para continuar dando certo como sempre deu. Para alguns, os abençoados, aqueles que consideram coisa de Deus a concentração de renda, acreditando piamente que contas gordas nada têm a ver com a tal da miséria e da inexistente distribuição de renda.

A única grande exceção na publicidade foram as polêmicas fotos de Oliviero Toscani, censuradas em muitos países, inclusive no Brasil. Toscani utiliza fotos impactantes que visam questionar os valores vigentes e despertar nas massas alguma reflexão, o que daria à publicidade um lugar mais informativo do que enganador. Suas fotos foram sempre consideradas imorais pela igreja e atacadas por publicitários do mundo inteiro presos à idéia de que a publicidade, enganando ou não os consumidores, tem um dever apenas comercial, ligado à estética do bom, do belo, do luxuoso.

Todos ou quase todos nós festejamos a queda do comunismo via derrubada do Muro de Berlim, o grande golpe jornalístico-publicitário do século passado. Hoje colhemos o que plantamos e a Rússia tem em seu narcotráfico emergente, e não por isso menos eficiente, a ponta de lança que faltava para massificar o planeta inteiro numa mesma direção, a capitalista. Muito à vontade nesse universo, a publicidade não toca no assunto feio, enquanto o jornalismo disfarça, fazendo cobertura pelas bordas.

Notinhas ridículas

Estima-se, mas sempre é bom lembrar que não se pode ter o exato valor, que o narcotráfico mundial hoje já movimente uma soma equivalente à da indústria petrolífera. O tal do combate, a que se refere quase que diariamente a nossa tenebrosa mídia, nada mais é do que a defesa veemente do sistema caixa dois. Sem um efetivo trabalho de legalização das drogas ou coisa que o valha, significa nenhuma mudança, afinal os lucros do narcotráfico, para quem ainda não sabe, vão parar no sistema financeiro – o que quer dizer grandes bancos e bolsas de valores. Com o narcotráfico operando no caixa dois, sem pagamento de tributos, os lucros elevam-se a proporções gigantescas e o destino do tal combate – a piada que a imprensa não revela e trata como notícia – é certeiro: investimento em armamento, em crime, em insegurança pública, em construções de cadeias de segurança máxima, tráfico de crianças e de órgãos, entre outras pérolas que alimentam o sistemão de mãos dadas, não diria atadas, com governos, polícias, tribunais, grandes empresas, grandes empreendimentos, os oligopólios, enfim, sejam eles agrícolas ou médicos, midiáticos ou científicos.

O cidadão alfabetizado, que assina sua revista semanal, lê as manchetes dos jornais na internet e assiste aos jornalões pela TV, tem acesso somente às informações que servem a esse esquema sacramentado pelo que se entende por notícia. Com um pouquinho mais de reflexão ele entenderia que o narcotráfico está para a sociedade moderna como o tráfico de negros esteve para o colonialismo e que a ilegalidade sempre foi um negócio extremamente rentável, propulsor de grandes fortunas fabricadoras de antíteses igualmente grandiosas. As atuais têm proporções tão gigantescas que tentar medi-las seria um ato inocente. Os oligopólios midiáticos sabem bem disso e douram a pílula com eficiência, como no escândalo da semana passada envolvendo a Schincariol. Nos resta, como gatos escaldados em água fria, pensar apenas no que há por trás da cortina de fumaça, além do eterno teatro em que uns comem os outros e o mais perverso ganha a parada.

Quando caíram os cartéis de Cáli e Medelín, nossa mídia esteve lá cobrindo o sucesso do combate ao narcotráfico. Hoje, nas mesmas regiões, surgiram dezenas de novos cartéis, que já exportam mais drogas do que os dois gigantes anteriores. Sim, o mundo consome drogas, a maconha é a droga ilegal mais vendida no planeta, justamente porque não exige qualquer processamento industrial, o que a torna barata e de fácil acesso. E não são as drogas, os drogados, os mulas, os camponeses produtores ou os atravessadores os culpáveis. Todos esses são peças extremamente pequenas e exploradas pelo jogo financeiro que tem tudo a ver com aquelas notinhas ridículas que lemos diariamente nos jornais: bancos têm lucros recordes, bolsa caiu, bolsa subiu.

Inteligente e gratuito

Nossa mídia padece de uma doença pútrida, que sequer vincula a insegurança pública ao aporte cada vez maior de armas que alimentam o narcotráfico e seu fogo amigo, o dos combatentes do narcotráfico. O teatro é um só, e mais do que nos espantar conviria desconfiarmos da proximidade entre favelas e shoppings. Deveria ser papel da mídia cobrir os interesses a que estamos submetidos diariamente, mas como, se ela está enterrada até os últimos fios de cabelo e mama na fonte dos grandes interessados?

A questão da legalização da maconha volta e meia aparece na imprensa, mas nunca ultrapassa os debates risíveis entre maconheiros, não-maconheiros e ex-maconheiros. E sempre ao pé da página aparece a grande dúvida sobre o direito dos cidadãos em consumir drogas ou coisa mais polêmica, como o fato de nossos filhos ficarem expostos às drogas. O jornalismo que joga todo mundo para cima do muro é muito eficaz para o equilíbrio estático. Ao fim dessas ‘matérias’ sobre drogas e legalização de drogas ninguém forma opinião, pelo contrário, esquecemos que nossos filhos já estão expostos a elas e nós, adultos, aos pés dos mandos e desmandos dos grandes capitais, dos grandes laboratórios, da narcomídia, da narcoagricultura, da narcomedicina e de todas as narcotribos superfaturadoras que estão entranhadas em nossas casas, nas nossas contas, cada vez mais privatizadas à revelia de qualquer ética compreensível.

Um bom exemplo, jamais coberto devidamente pelos meios de comunicação, é o das telefonias. A Brasil Telecom agradece a sua ligação, mas continuará vendendo a linha de telefone a você e nada pagando nada por ela se você quiser devolvê-la. Mesmo pagando pela linha quando é instalada, você deve pagar um aluguel mensal, e se não utilizar também paga. O serviço inteligente e gratuito (?) de secretária eletrônica é tão inteligente que seu telefone pára de tocar e automaticamente todos que ligarem para você caem na sua caixa postal. Encerrar uma linha é coisa dificílima, já que enquanto você está com ela é um pagante. Essa mesma ética de engodo é utilizada por bancos e lojas, espalhando-se como praga aniquiladora de orçamentos.

Então deve ser

Antigamente se você tinha um cheque especial e entrava no vermelho o gerente ligava para combinarem o que fazer, explicando que sua conta poderia ser encerrada para não aumentar a dívida com o banco. Hoje ele faz questão de não encerrar e para aumentar o bolo, o da dívida, ainda sugere cartões de crédito e empréstimos que levam desesperados pais e mães de família a chafurdarem em dívidas que podem ultrapassar n vezes os ganhos salariais, já que essas famílias foram previamente contaminadas pela doença do consumismo. É a ética do capitalismo, e para ele trabalham com devoção a publicidade e o jornalismo. Maquiavel é um gatinho pardo diante do que vivemos.

Júlia Gaspar em seu texto nos remete ao aviltamento a que estamos submetidos quando um outdoor grita ‘Todo mundo PODE, todo mundo USA.’ Haverá de chegar um momento, e ele infelizmente ainda não chegou, em que a massa acordará desse pesado sono fluoretado [os nazistas utilizavam altas concentrações de flúor na água que bebiam os prisioneiros porque o flúor, em concentrações elevadas na água ingerida, leva ao torpor mental] e então poderemos sim enxergar que concentração, seja do que for e de tudo o que é, só aumenta a miséria e a possibilidade de levar um tiro na testa. Enquanto esse dia não chega, continuemos apostando no combate ao narcotráfico e, claro, em blindagens mais eficientes para carros, remédios milagrosos, comidas geneticamente modificadas, condomínios fechados, cães ferozes, mísseis mais inteligentes, meio ambiente detonado, transformado em mais um bem de consumo. Afinal, apostar na legalidade, na divisão de terras, em vidas auto-sustentáveis e pequenos prazeres é coisa de pobre.

Assim, continuemos apostando, segundo a versão capitalista chegaremos lá, ao dia em que o bolo será dividido. Será um bolo bastante difícil de degustar, afinal o estômago humano, que tem digerido pesticidas, corantes conservantes e toda sorte de drogas legais, não estará finalmente preparado para comer dinheiro. Mas apostemos mesmo assim, se os jornais falam que o combate ao narcotráfico vai sanar os problemas de segurança pública, se os outdoors já dizem com todas as letras que devemos apostar na ideologia capitalista dos primos do norte, se os marqueteiros nos fazem crer que o nosso sonho de democracia existe, então deve ser porque é verdade, a única verdade.

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Jornalista