Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O nu mais antigo no jornalismo

Walter Galvani e Armando Rozário despem-se em público no topo dos setenta anos de idade. Calma, não é o que você está pensando. Comemoram cinqüenta anos de profissão. O Galvani, como jornalista, o Rozário como fotógrafo jornalista. Dois jovens amigos, pois esses septuagnários têm os espíritos mais jovens que eu conheço, e, com a experiência de vida deles, é covardia ser jovem nessa idade.


Marllamé disse que o mundo foi feito para acabar num livro, e soou lírico nas palavras do poeta. Mas Quintiliano já havia dito, séculos antes, que a história não é para ser vivida, é para ser escrita. Esses dois velhos amigos que agora se desnudam através de suas histórias de profissão, celebrando em livro, o Galvani, e em exposição de fotos, o Rozário, viveram registrando a história de tudo o que viram mundo afora.


Cronista no mais amplo sentido do termo, Galvani chegou a sair do armário e assumir sua bissexualidade profissional: jornalista e cronista, com incursões promíscuas como escritor, radialista, consultor cultural, patrono de Feira do Livro de Porto Alegre, foi de tudo o que o submundo da comunicação permite. Drogou-se de todas as formas, do folhetim ao jornal, do rádio à TV (preto e branco e colorida), da internet ao sabe-se lá o quê. Pois o homem é obsceno demais, não quer parar de trabalhar. Poderia ter parado após entrevistar Pedro Álvares Cabral nos anos em que pesquisou fundo em Portugal para escrever seu célebre Nau Capitânia. Isso é que é ser repórter, descobrir o que apenas parecia estar descoberto.


Lágrimas divinas


Já o Rozário, como o nome talvez sugira, mais comportado, permaneceu fiel a uma só amante, tão fiel que até hoje a investiga secretamente com um olho só. É fotógrafo, mas igualmente irremediável. As mas línguas garantem que ele foi um dos fundadores da Banda de Ipanema, fato revelado por Ruy Castro em seu livro Ela é Carioca. Comportado, mas ordinário, como diria o Nelson. A câmera indiscreta nunca saiu de suas mãos e atualmente anda fazendo experiências com telefones celulares. Capturando as mesmas imagens das esquinas do Rio que capturou quando chegou ao Brasil na década de 1950.


Chinês de pai português e mãe francesa, foi alfabetizado em inglês por jesuítas e formou-se em fotografia em Cambridge, Inglaterra. Ainda adolescente fotografara a tomada do poder na China por Mao Tsé-Tung, para uma agência americana da qual era correspondente, e trouxe para o Brasil toda a técnica que aprendera com os mestres orientais e europeus da fotografia. Nas redações onde trabalhou ensinava os primeiros passos das revelações de fotos para seus colegas. Foi o primeiro fotógrafo a processar, e vencer na justiça, um veículo por utilizar indevidamente uma foto sua. Criando jurisprudência na matéria. Era a foto da Sra. Júlia, mãe de JK, e foi a revista Manchete que publicou a foto inclusive com o nome de outro fotógrafo. Jamais sacanagem igual seria feita com fotos alheias, sem pagar.


Em sua ‘Última Crônica’, Fernando Sabino, nas suas próprias palavras ‘pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano, fruto da convivência, que a faz mais digna de ser vivida. Visava ao circunstancial, ao episódico. Nesta perseguição do acidental, quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança ou num acidente doméstico, torno-me simples espectador e perco a noção do essencial’.


Escrevia isso, distraído numa tarde qualquer e desejou que essa sua última crônica acabasse com um sorriso, como um poema. Ah, meu caro Sabino, a vida é uma grande crônica, que acaba a cada instante, basta mantermos o sorriso aberto, especialmente para as coisas mais frugais. Ela reinicia, a gente sorri e ela acaba e assim intermitentemente. Até que ela volte a ser escrita como no primeiro texto, a primeira crônica da história, em que Gilgamesh protagoniza o fim do mundo num imenso dilúvio, de lágrimas divinas talvez. Mais tarde plagiado na Bíblia.


Ecos na conversa


Nota, ou serviço, já que, como o mistério de Tostines do amigo Sergio Escovedo, jornalistas que escrevem bem se tornam cronistas e cronistas que escrevem mal se tornam jornalistas: conta o Galvani em seu livro de memórias que, num belo início de tarde, do outono dourado de 1968, dois ‘focas’, hoje septuagenários também, Iara Rech e Alberto Etchart (fotógrafo refugiado em Porto Alegre, meio surdo de frio), cobriam em Guaíba (RS) a primeira propaganda brasileira com modelo nu e receberam ordem de prisão de um delegado truculento.


O delegado não satisfeito foi até o jornal Folha da Tarde, em Porto Alegre, interrogar os dois jovens jornalistas. Galvani era o chefe de redação e implantava um revolucionário sistema de aproveitamento de estudantes de jornalismo, e, ajudado por Amaro Júnior, o introdutor do basquete no Rio Grande do Sul na década de 1920, do tamanho de uma porta de igreja, correram a tapas com o delegado. Isso em plena época de anúncio do Ato Institucional nº 5, o mais duro ato do governo militar, especialmente contra a imprensa. Informação essa que chega a nublar o primeiro nu da propaganda brasileira.


Apurando esse troço antes de publicar, recorri ao ex-garoto de ouro da DPZ, Sir Whashington Olivetto, da W/Brasil, e ele não soube dizer qual foi o primeiro comercial brasileiro que usou uma modelo nua; procurei o P da DPZ e a secretária informou que Monsieur Petit está na Europa, assim como o Z de Zaragoza. Enviei um desses tais de e- mails para o Mr. Duailibi, através de seu assessor de imprensa, e até agora não obtive resposta. Telefonei para Iara Rech e ela não lembra de nada, só da repressão. Liguei para o Etchart e ele só lembrava da Iara e o Galvani, e ele não está surdo não, era o eco do Skype atrapalhando a nossa conversa. Mas a matéria não poderia esperar mais, nem esta crônica.

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Jornalista e escritor, cronista e tradutor de Por Quem os Sinos Dobram, de Ernest Hemingway; www.clinicaliteraria.com.br