Publicado originalmente no site Balaio do Kotscho
“Jair Bolsonaro não entende, como demonstra a cada dia, os limites que a República impõe ao exercício da Presidência. Trata-se de uma personalidade que combina leviandade com autoritarismo. Será preciso então que as regras do Estado democrático de Direito lhe sejam impingidas de fora para dentro, como os limites que se dão a uma criança”.
Assim começa o editorial “Fantasia de imperador”, publicado na Folha deste sábado, o mais duro ataque já feito pela grande imprensa a esse protótipo de ditador bananeiro.
Após onze meses de horror, ameaças e destruição, o indigitado ocupante do Planalto parte para a ofensiva final contra as instituições democráticas.
São incompatíveis o presidente e a democracia, enxovalhada por atos de pura demência da família imperial e seus ministros, que não passam de asseclas deslumbrados, recrutados em algum manicômio judicial.
Apesar de dar seguidas demonstrações de insanidade, durante a campanha eleitoral e em seus trinta anos como parlamentar do baixo clero, depois de ter sido afastado do Exército por insubordinação, este desqualificado foi tratado com extrema indulgência pelos profissionais da mídia, que não alertou o país sobre o perigo que estávamos correndo com a sua eleição fraudada.
No segundo turno, trataram o professor e o ex-tenente como se fossem iguais, e não os representantes de dois pólos absolutamente opostos: o da civilização e o da barbárie anunciada.
Fui muito criticado por alguns leitores, quando a campanha começou, por dar espaço ao então inexpressivo e folclórico candidato, que ninguém levava a sério.
“Você fica dando muito espaço para esse cara, sem partido nem tempo de TV, que não tem a menor condição de chegar ao segundo turno”, me diziam.
Por conhecer bem a sua história e ter informações de empresas que monitoram as redes sociais, eu chamava a atenção para o grande esquema que estava sendo montado no submundo da internet, já antes da facada de Juiz de Fora e da prisão de Lula, os dois episódios que o levaram à liderança nas pesquisas e à vitória.
No dia mesmo da posse, com o filho Carluxo 02, chefe das milícias virtuais, empoleirado no Rolls-Royce presidencial, já dava para ter uma pequena ideia do desastre que nos aguardava.
Tratado pela imprensa como um ser exótico, mas inofensivo, Bolsonaro se cercou de generais (são mais de 2,5 mil militares no governo) e olavetes alucinados, a quem entregou Educação, Cultura e o Itamaraty.
Nunca um “astrólogo filosófico” como Olavo de Carvalho, caçador de ursos nos Estados Unidos e comparsa de Steve Bannon, o guru de Trump, havia nomeado tanta gente na história da humanidade.
A elite brasileira achava tudo meio estranho, mas ficou feliz com a entrega da política econômica, de porteira fechada, a um dos seus, o economista Paulo Guedes, um bufão que nunca foi levado a sério pela academia nem pelos seus pares do mercado financeiro.
Tendo como modelos o Brasil da ditadura militar de Brilhante Ustra, o Chile de Pinochet e os Estados Unidos do amigo Trump, ficaram pendurados na brocha, sem saber como tirar a economia do atoleiro.
Assim como se elegeram, governam por fake news, vendendo ilusões à sua seita de fanáticos.
Autor do livro Existe democracia sem verdade factual?, o jornalista e professor Eugênio Bucci lembrou ao colunista João Domingos, do Estadão, que a democracia é uma construção histórica, um engenho social, um projeto humano: “Sem cuidados, ela pode perder vigor e desaparecer. A democracia existe porque existiram e existem seres humanos que cuidam dela, com muito trabalho. Sem eles, nada feito”.
Diante de tantos ataques, dia após dia, a jovem democracia brasileira parece órfã neste momento.
Sem oposição, sem freios, sem limites, controlando os três poderes, a tropa bolsonariana avança rumo a um autoritarismo feroz.
Respondo à pergunta do título do livro de Bucci: não, não existe democracia sem verdade factual quando, num de seus delírios, o presidente acusa, com a maior leviandade, o ator Leonardo DiCaprio de tacar fogo na Amazônia.
E vida que segue.
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Ricardo Kotscho é jornalista.