Joaquim era conhecido por sua inclinação para a esbórnia. Antônio, seu perfeito oposto, era seriíssimo e concentrado. O primeiro era avesso à rotina e a qualquer tipo de compromisso. O segundo acordava cedo todos os dias, não gostava de piadas, sempre repetia os mesmos passos e não era afeito a informalidades. Joaquim andava maltrapilho e era piada na vizinhança. Antônio estava sempre na beca, cabelo penteado e era respeitado pela comunidade. Um estava sempre a beber e criar problemas; o outro desviava das formigas para não matar nenhuma forma de vida. Alfa e ômega, água e óleo, céu e terra: Joaquim e Antônio eram opostos perfeitos.
Em uma tarde de verão, por razões completamente diferentes, Joaquim e Antônio consumiram quantidades industriais de cachaça e fizeram imensa balbúrdia pela rua. Chutaram lixeiras, cuspiram no cachorro, xingaram a vizinha, correram pelados e tudo mais que um bêbado radical é capaz de fazer. Considere o cenário hipotético em que praticaram os mesmos delitos e imagine a reação de seus conhecidos e familiares. No caso de Joaquim, nada de novo tinha acontecido. As pessoas estavam habituadas a esse comportamento. Comentaram no dia seguinte, como costuma acontecer, e deixaram a história pra lá: “esse aí não tem jeito mesmo”. Já no caso de Antônio, a vizinhança ficou paralisada. A família o repudiou, o padre o chamou para conversar, o chefe da repartição em que trabalhava recebeu uma denúncia, os conhecidos passaram semanas comentando o acontecido e muitos resolveram se distanciar do outrora pudico e admirado conviva. Joaquim e Antônio fizeram a mesmíssima coisa, de cabo a rabo, mas um foi ignorado e outro sumariamente condenado. A condescendência é filha do costume. Quando as expectativas são baixas, a autorização para o exagero é maior. Quando as expectativas são altas, qualquer ruído se torna digno de atenção.
Jair Bolsonaro é como Joaquim, o bêbado inveterado.
A Presidência da República é o cargo de maior prestígio da política brasileira. Ele exige respeito a alguns protocolos e dose necessária de moderação. A pessoa que ocupa a cadeira deixa de ser um ente autônomo, um súdito do Império da Opinião, e passa a representar um país de dimensões continentais. As coisas ditas por um presidente produzem discussões acaloradas em nível nacional e internacional, além de efeitos práticos que podem afetar a vida de milhões de pessoas. Não é novidade que o atual presidente não goze desses predicados. Sua biografia é uma coleção de absurdos. Em 1986, quando ainda era militar, foi preso após questionar o valor dos salários. Documentos mostram que seus superiores consideravam-no ambicioso, era tido como agressivo e desequilibrado. Há também registros de planos que teria feito para explodir bombas em quartéis como forma de protesto. Aos 33 anos, foi para a reserva e passou a se dedicar à política.
Como parlamentar, mostrou-se um excelentíssimo inútil. Foi vereador e repetidas vezes deputado federal. Esteve filiado a oito partidos políticos ao longo da carreira. Em trinta anos de legislatura, se destacou pela absoluta incapacidade de propor e aprovar projetos de lei. Uma de suas conquistas foi garantir o uso da fosfoetanolamina, uma substância que prometia a cura milagrosa do câncer e que não demorou a se revelar completamente inútil. O que diferencia Bolsonaro dos demais políticos é a capacidade de gerar polêmicas. Defensor da ditadura civil-militar brasileira (1964-1985), passou a vida tripudiando da memória dos militantes de esquerda que foram torturados, exilados e exterminados pelo regime. Sua inclinação para o autoritarismo não respeita nem mesmo as fronteiras nacionais: em 1996, elogiou o ditador peruano Alberto Fujimori na tribuna da Câmara dos Deputados; em 1998, o ditador chileno Augusto Pinochet. Sempre foi um pária, mas conseguiu visibilidade graças ao fantasioso “kit gay”, polêmica que lhe rendeu participação em diversos programas de televisão.
Os protocolos e exigências do cargo de presidente da República não foram suficientes para saciar sua patológica vontade de polemizar. As cantilenas estúpidas e sem fundamento contra as esquerdas se mantiveram. Como muitos já notaram, Bolsonaro ignora que a campanha eleitoral chegou ao fim. No dia 26 de fevereiro de 2019, em cerimônia realizada na Usina de Itaipu, ratificou sua vocação despótica ao exaltar o corrupto, pedófilo e estuprador Alfredo Stroessner, ditador que governou o Paraguai entre 1954 e 1989. Stroessner, como se sabe, exigia que seus assessores trouxessem até ele meninas que tivessem entre 10 a 15 anos, sempre virgens. Estuprava, em média, quatro meninas por mês, e em três décadas de ditadura, acredita-se que tenha violentado mais de 1 600 crianças. Ninguém se surpreende com esse elogio.
Em pouco mais de seis meses, Bolsonaro acumulou impropérios que seriam difíceis de listar. No dia 6 de julho deste ano, comparou a Amazônia a “uma virgem que todo tarado quer”, em uma metáfora sexual assente em nossa desprezível cultura do estupro. Desconfortável com sua própria sexualidade, o presidente faz questão de mandar “abraços héteros” por fantasiar que até mesmo um simples abraço pode sugerir desejos pelo mesmo sexo. Além do “kit gay”, sua campanha se notabilizou pelo factóide da “mamadeira de piroca” que seu adversário Fernando Haddad (PT) supostamente distribuiria nas escolas. Antes da campanha, dizia que ter “filho gay era falta de porrada” ou que “vizinho gay desvaloriza o imóvel”. Não seria justo esquecer também as declarações racistas, como a que fez a respeito dos quilombolas do Eldorado Paulista, que, segundo ele, seriam tão inúteis que não serviriam nem para procriar. Recentemente, defendeu o trabalho infantil, crime de acordo com o artigo 136 do Código Penal, em um país com 14 milhões de adultos desempregados.
É difícil entender como funciona a cabeça de Bolsonaro. Para alguns, essas declarações são a expressão em estado bruto de uma personalidade doentia. Para outros, é uma estratégia calculada que o mantém visível nas mídias tradicionais e virtuais, o célebre “fale mal, mas fale de mim”. Há ainda quem argumente ser uma tática para desviar as atenções da inoperância, incompetência e das práticas destrutivas de um governo caduco que respeita mais os interesses de Washington que os do povo brasileiro. Pode ser tudo isso junto, e muito mais. O problema é que nos tornamos condescendentes com a estultícia e não nos surpreendemos com os escândalos. Parece que a estupidez faz parte de sua própria natureza e não há como ser corrigido. Absurdos que solapariam governos anteriores passam despercebidos. Não custa lembrar que o impeachment de Dilma Rousseff foi justificado por “pedaladas fiscais”, crime tão grave que seis meses depois deixou de sê-lo. Bolsonaro é como Joaquim, o nosso bêbado hipotético. Ele é tão comprometido com o absurdo que não surpreende mais ninguém, e nada poderia ser mais perigoso para a saúde do sistema político republicano. Não dá pra ser condescendente com tantos absurdos. O problema é que perdoar é cansativo, e há sempre o risco de tombarmos de tanta exaustão. Se, ou quando, esse dia chegar, será necessário cobrar não apenas sua responsabilidade, mas a omissão das instituições que deveriam preservar o país desse delírio que estamos vivendo. Cada dia de silêncio diante do absurdo é um passo a mais em direção ao precipício.
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Alexandre Santos de Moraes é professor do Departamento de História e do Programa de Pós-graduação em História (PPGH) da Universidade Federal Fluminense. É autor do livro O Ofício de Homero (Mauad X, 2012) e editor da revista Hélade (www.helade.uff.br).