Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Por um novo ecossistema jornalístico

O projeto Comprova reuniu um grupo de 24 organizações jornalísticas para atuar nas eleições de 2018 contra as fake news. A premissa usada foi a de que as organizações jornalísticas parcerias na empreitada detinham e detém um know how jornalístico que pudesse ser usado para filtrar e chancelar, com sua credibilidade, as informações circulantes nas redes sociais digitais.

De modo muito objetivo, a premissa é apenas parcialmente válida. É válida porque certamente as organizações jornalísticas tradicionais têm um histórico de produção de notícias assentadas em fatos reais. Herança, inclusive, da época em que monopolizavam a mediação entre os fatos e suas audiências, ante a impossibilidade tecnológica de outros sujeitos virem a fazer o mesmo. Não há dúvida, portanto, de que tais empresas produzem um conteúdo que, em regra, não se igualam às fake news, e que portanto elas têm uma perícia de verificação que agrega valor de verdade ao seu conteúdo. E que essa perícia é certamente bem-vinda no combate aos conteúdos fakes. E, claro, ao noticiário nosso de cada dia.

Mas, dessa premissa não decorre necessariamente que elas sejam referência de bom jornalismo, ou de uma condição que as tornam imunes a erros, distorções, fakes, em algum momento, ou em muitos, a depender da conjuntura, da cobertura e da complexidade do que é objeto das notícias. Há uma distância entre a competência para identificar e denunciar conteúdo fake das redes sociais, facilmente identificáveis, para olhos minimamente treinados, e a competência para produzir um conteúdo jornalístico de alta qualidade.

Por isso, a necessidade de um projeto Comprova Reverso. O olhar para si mesmas, para seu conteúdo, sua cobertura, e perguntarem-se sobre as limitações, falhas, imprecisões e padrões editoriais existentes que põem em risco a credibilidade tão reivindicada por elas. Essa tarefa, entretanto, é muito mais complexa do que a do projeto original. O Comprova Reverso é uma metáfora para a necessidade de um esforço articulado entre diferentes atores preocupados e empenhados em construir um ambiente jornalístico forte, sustentável e socialmente relevante. Trata-se de um esforço estratégico, de efeito a médio e longo prazo, mas cujo início não pode tardar no Brasil.

O desafio das organizações é convencer suas audiências e a sociedade de que oferecem um conteúdo de qualidade, do qual decorreria sua natural credibilidade. Mas, no cenário atual e futuro, a mera reivindicação de qualidade e de credibilidade pode ser insuficiente se não vier acompanhada de medidas concretas que atestem, por parâmetros e avaliações, sua efetividade.

Nesse sentido, quatro movimentos complementares e articulados se colocam como um possível roteiro para o fortalecimento da atividade jornalística no Brasil. E das organizações jornalísticas que vierem a abraçá-los.

1. Intensificar e fortalecer iniciativas destinadas à implantação de boas práticas de gestão editorial e accountability (meios de prestar contas à audiência e à sociedade em relação a procedimentos editoriais). Tais iniciativas são a publicação de projetos editoriais, carta de princípios, código de ética, ouvidorias, controle de erros, espaço do leitor, entre outras iniciativas, recomendadas inclusive pelo Programa Permanente de Autorregulação da Associação Nacional de Jornais (ANJ). Tais práticas ainda são restritas a poucos jornais; a maioria ignora, e ao fazer isso, deixa de pensar, planejar, refletir e avaliar sua postura editorial. O simples ato de criar tais instrumentos leva a uma reflexão inicial. É importante, mas não suficiente. Tais mecanismos precisam de efetividade.

2. Para gerar a necessária efetividade a tais instrumentos, duas direções. Uma, criar e fortalecer práticas de autorregulação, regulação ou co-regulação capazes de abrir canais de diálogo entre as organizações, empresários, gestores e profissionais, com as fontes, pessoas noticiadas, a audiência e setores da sociedade descontentes com o conteúdo produzido. O Programa Permanente de Autorregulação da ANJ foi uma iniciativa louvável, mas a execução tem sido penosa. Os associados não abraçam a causa nem as boas práticas editoriais recomendadas. O seu fortalecimento é essencial e pode estimular outras iniciativas semelhantes. O preço da qualidade e da credibilidade reais (não meramente retóricas) exigem demonstração de segurança e da correção dos procedimentos profissionais. Não é obviamente um movimento fácil, mas se o assunto entrar seriamente em discussão, já é um passo adiante. Inclusive, pode colaborar para reduzir a judicialização de processos contra jornalistas e empresas, por instituir canais prévios de resolução de conflitos.

3. Outro meio de gerar efetividade aos instrumentos de gestão editorial e de accountability seria a instituição de programas de avaliação de qualidade editorial. As organizações que já implantaram alguns daqueles instrumentos partem da premissa de que, pelo simples fato de existirem, são efetivos. Se há um projeto editorial, presume-se que seja cumprido à risca. Se há um mecanismo de controle de erros, presume-se que todos os erros sejam corrigidos. Não há, contudo, programas de avaliação de resultados regulares que indiquem a proporção na qual as metas de desempenho editorial (se existirem) são alcançadas, e em que proporção. Se não existem tais meios de aferição, como se vai demonstrar o cumprimento dos belos compromissos editoriais firmados? Por exemplo, todos os jornais se autodeclaram plurais. Peço que as organizações provem à sua audiência e à sociedade sua pluralidade com o mesmo grau de demonstração com que provam aos anunciantes sua média de circulação. Para isso, precisariam ter metodologias e processos de avaliação desenvolvidos e aplicados regularmente. Certamente, toda metodologia terá problemas e será limitada, mas produzirá um diagnóstico inicial. Tanto a metodologia quanto os diagnósticos serão, certamente, aperfeiçoados na medida que se tornem regulares.

4. Gerar inovação editorial. A inovação requer a produção de diagnósticos confiáveis sobre os problemas existentes para os quais visa uma solução. Um problema é identificado como tal através de um processo de avaliação conduzido de modo sistemático. Quem não tem capacidade de se avaliar perde também a capacidade para inovar e melhorar seus resultados. As organizações jornalísticas têm corrido atrás das transformações tecnológicas, relativas a plataformas, produção e distribuição de conteúdo. Mas, a inovação editorial, que envolve desde a concepção, atravessa os processos de produção e alcança novos produtos, ainda é incipiente. Como produzir coberturas plurais sobre temas complexos, que envolvem múltiplas fontes e múltiplos aspectos sobre os fatos? Como essas informações (produzidas ao longo de um determinado período) devem ser apresentadas à audiência e à sociedade, de modo que elas consigam ver e constatar a pluralidade do conteúdo? São perguntas que penso as redações sérias não se colocam pois já se consideram, evidentemente, plurais o bastante.

Os movimentos acima delineados visam a constituição de um ecossistema jornalístico aberto à discussão e à interação entre seus diferentes atores. As organizações não dependem de si mesmas para ter e manter credibilidade. Dependem de contratos simbólicos, em alguns casos, documentados, acerca de seus compromissos, seus meios, sua competência e seus resultados, firmados com os demais atores. Em um cenário de forte concentração e monopólio informativo, era fácil para elas manter sua aura. Os tempos mudaram. Uma nova postura editorial precisa reconhecer que o jornalismo de qualidade não resulta de definição e determinação exclusivas das organizações. E a credibilidade vai resultar de padrões de qualidade demonstráveis, não apenas retóricos. O novo desafio não é comprovar a qualidade dos outros, mas comprovar a sua própria qualidade.

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Josenildo Guerra é professor do curso de Jornalismo e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Sergipe (UFS). Integrante da Rede Nacional de Observatórios de Imprensa (Renoi) e do “Projeto Jornalismo e Accountability no Brasil”. Coordenador do Programa de Pesquisa em Qualidade, Inovação e Tecnologia Aplicada ao Jornalismo (Qualijor), cujos trabalhos acadêmicos podem ser acessados aqui e aqui.