Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Parasitas ou renovadores do jornalismo?

No começo do ano, no blog em que responde a perguntas de leitores, o editor-executivo do New York Times, Bill Keller, lamentou “a diminuição da oferta de jornalismo de qualidade” na imprensa americana.

Ou seja, a oferta do tipo de jornalismo “que envolve repórteres experientes indo a lugares, dando testemunhos, destrinchando documentos, buscando fontes, conferindo e tornando a conferir, apoiados por editores que tentam manter os altos padrões [da profissão]”.

A razão disso, evidentemente, está na crise da indústria da notícia nos Estados Unidos. No último ano e meio, ela decepou 26 mil empregos nas redações do país. Sem falar nas empresas que quebraram e nos jornais que fecharam.

Keller não é o único praticante do chamado jornalismo convencional a apontar que a explosão da blogosfera não só não repõe a informação perdida com o encolhimento da velha mídia, como ainda contribui para a sua crise.

Em depoimento no Senado americano sobre o futuro do jornalismo, um ex-repórter do jornal Baltimore Sun, David Simon, que migrou, ele próprio, para a internet, comparou sites e blogues a parasitas que se alimentam das publicações impressas, acrescentando-lhes “pouco mais do que repetição, comentário e espuma”.

Enquanto isso, elaborou, os leitores que se informam pelos sites de agregação de notícias deixam de ir ao seu ponto de origem, os jornais propriamente ditos. O resultado é que “o parasita está matando lentamente o seu hospedeiro”.

Essa visão de um problema a que a imprensa não está imune em parte alguma – o que varia de país para país é a sua intensidade e o seu alcance – serviu de gancho para uma pensata que sugere que a internet é cada vez menos um deserto de jornalismo de qualidade.

O autor é o analista de mídia Michael Massing, um dos editores da revista de jornalismo da Universidade Columbia, em Nova York. Escrevendo no New York Review of Books [“The News About the Internet”, edição de 13 de agosto], ele percorre uma profusão de sites e blogues jornalísticos, além de dois livros novos sobre o assunto, para concluir que as dificuldades enfrentadas pelo que chama “jornalismo institucional” não são sinônimo de colapso do jornalismo.

“Apenas nos últimos meses”, comemora, “um notável volume de material original, excitante e criativo – embora também caótico e enlouquecedor – tem aparecido na internet”.

Ele não nega que a comparação da internet a um parasita tenha certo fundamento. Afinal, sem o trabalho de coleta de notícias feito pela imprensa em papel, muitos sites gaguejariam ou ficariam sem fala. Mas a internet também produz informação fresca – que, na contracorrente do fluxo noticioso, acaba entrando na pauta de jornais e revistas.

E, principalmente, abre espaço para não-jornalistas familiarizados com determinados assuntos, de quem os periódicos só tomam conhecimento, e a quem às vezes acabam até contratando, depois de ler os seus textos na tela.

Esse é um dos pontos mais importantes do artigo de Massing – para o qual o blogueiro pede o tempo do eventual leitor porque, embora restrito ao jornalismo americano, conta histórias e aponta tendências que devem interessar a todos quantos, também no Brasil, se perguntam para onde vai o jornalismo.

O ponto é importante porque trata do que talvez se pudesse chamar a “terceira via” do jornalismo na blogosfera. Entre a informação nova e pouca, e a opinião torrencial, mas não raro baseada em “rumores, distorções e mentiras” (Massing), a internet tem igualmente o potencial de oferecer explicação – o esclarecimento de notícias de interesse público já divulgadas ou do que pode estar por trás delas – pela palavra de especialistas nos respectivos campos, capazes de se expressar em língua de gente.

Eles esquadrinham o que sai nos jornais a respeito dos assuntos que dominam, e surfam na internet atrás de textos investigativos nas mesmas áreas. De vez em quando, também dão uns telefonemas para tirar suas dúvidas. Disso resultam textos que, parafraseando o mote do Observatório da Imprensa, ajudam o leitor a enxergar de outro jeito as questões tratadas.

O negócio deles é “explanação” em vez de opinião. Quem diz isso é Ezra Klein, 25 anos, citado por Massing entre os explicadores que fizeram o seu nicho na internet. Klein começou a blogar ainda quando estudante da Universidade da Califórnia. Demonstrou entender tanto de políticas de saúde que foi convidado pelo Washington Post a publicar o seu blog no site do jornal.

Outro caso é do professor Juan Cole, da Universidade de Michigan, que estuda Oriente Médio. O seu blog, apropriadamente intitulado Informed Comment, traz análises políticas sobre o Iraque mais agudas do que os da maioria dos jornalistas americanos que cobrem o país.

E tem o exemplo de Marcy Wheller, que depois de se doutorar em literatura comparada virou consultora da indústria automobilística – na incrivelmente flexível sociedade americana, isso não chega a ser uma aberração.

Pois bem. Em 2004, ela começou a blogar sobre assuntos políticos, pesquisando em documentos conseguidos por outras pessoas ou grupos. Largou a consultoria e passou a trabalhar em tempo integral para o blog coletivo de esquerda FireDogLake, concentrando-se nas revelações sobre tortura de suspeitos de terrorismo no governo Bush.

Com uma invejável capacidade de ler nas entrelinhas, ela descobriu nos memorandos liberados pelo governo Obama sobre técnicas de interrogatórios autorizadas anos atrás pela Casa Branca que um preso foi submetido 183 vezes em um mês a afogamentos simulados.

A história foi parar na primeira página do New York Times – com o nome da blogueira.

“A blogosfera contém muitos trabalhos bons e originais”, diz ela, para rebater a acusação de que o blogueiro típico vive de sugar o sangue dos jornais. “E metade de todos os jornalistas consultam blogues quando fazem as suas matérias.” Na sua atividade, a recíproca é verdadeira. “Não tenho nenhum problema em admitir que dependo profundamente de jornalistas”, comenta. “Devíamos estar falando de uma relação de simbiose e não de parasitismo.”

A contribuição da web para a sobrevivência – ou a renovação – do jornalismo de qualidade está ainda na publicação de textos sobre assuntos em que os jornais pensam duas vezes antes de (não) abordar. Por exemplo, o poder do lobby pró-Israel nos Estados Unidos. Massing menciona, entre outros, o caso de um dentista de Nova York que se dedica a acompanhar os projetos no Congresso americano que envolvem interesses israelenses – e publica os seus achados no blog Daily Kos.

Algo no gênero acontece em relação à influência de Wall Street nas decisões de governo – uma questão que frequenta mais o que as páginas de opinião dos jornais têm de melhor do que o noticiário propriamente dito.

Nenhum jornal deu o desabafo do líder democrata no Senado, Dick Durbin de que “os bancos continuam tendo o mais poderoso lobby no Congresso: francamente, eles são os donos do pedaço”. Mas a observação, capturada pelo repórter Ryan Grim, saiu no megasite Huffington Post, que tem um total de sete repórteres e editores em Washington. Grim é um deles.

O próprio Massing, com todo o seu entusiasmo pelo jornalismo de qualidade que identifica na internet, reconhece no entanto os “aspectos mais perturbadores” da blogosfera.

Um deles são os títulos exagerados para estimular visitas aos respectivos textos – o número de visitantes, como se sabe, é o indicador por excelência da popularidade de um site ou blog. Outro problema é a pressão que em geral os blogueiros sofrem para publicar o maior número de textos no menor prazo possível – também para aumentar a audiência. Com isso, eles ficam sem tempo para produzir artigos mais detalhados, portanto extensos. O que leva ao terceiro problema do jornalismo online: a relutância dos leitores a textos longos, como os das grandes reportagens da imprensa escrita.

O pior de tudo é amplamente conhecido – os excessos polêmicos e o facciosismo da blogosfera.

Massing cita, a propósito, o autor Bill Wasik [“Como as matérias vivem e morrem na cultura viral”], para quem o moto-contínuo de realimentação entre blogues políticos e leitores leva à publicação de “informações prefiltradas”. Uma pesquisa mostra que, nesses blogues, 85% dos links remetem a blogues da mesma orientação política. “Raros”, escreveu Wasik, “são os que mostram algum respeito por qualquer blog do outro lado”.

Um dos primeiros jornalistas a migrar para a internet, em 2000, o inglês radicado nos Estados Unidos Andrew Sullivan, faz praça de não mostrar o proverbial outro lado da questão. São incontáveis os blogueiros que também acham que não devem ter nenhum compromisso com o que entendem ser uma convenção afinal descartável – o tratamento equânime das posições em confronto, o que, nas normas clássicas da imprensa escrita, deve distinguir reportagens de editoriais, .

A consequência é uma “cultura viral”, como diz Wasik, em que cada um, blogueiro ou leitor, só anda com a própria turma. No começo, a imprensa escrita era assim, panfletária, partidária e proselitista. Só ganhou respeito e adquiriu fé pública quando a integridade da informação passou a ser um valor buscado no exercício profissional – e no negócio da notícia.

Sem isso, a blogosfera continuará a ser em geral o que Michael Massing diz do artigo de um blogueiro – um “túnel de vento ideológico”. Nele, o leitor se sente atingido por rajadas incessantes de opinião e análise que o impedem de ver os argumentos de quem pensa de modo diferente.