Tuesday, 16 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

1961, a guerra civil que não houve

REPORTAGEM HISTÓRICA

Entrevista de Paulo Markun a Luiz Egypto


1961 ? Que as armas não falem,
Paulo Markun e Duda Hamilton, 410 pp., Editora Senac-SP, 2001. Telefone
(11) 3284-4322, e-mail <eds@sp.senac.br>

Os jornalistas Paulo Markun e Duda Hamilton se propuseram a produzir um livro-reportagem que esmiuçasse um período curto de tempo, exatos 14 dias, mas carregado de uma eletricidade inaudita na história brasileira do século 20. O fato e os fatos deram-se há 40 anos e, por recentes, ainda dispõem de fontes inéditas para ajudar a iluminar ângulos inexplorados da débâcle institucional que culminou no golpe de abril de 1964.

Que as armas não falem reúne documentos e
fontes vivas para contar o que aconteceu no Brasil entre 25 de agosto,
com a renúncia de Jânio Quadros, jovem presidente da
República, de 42 anos; e 7 de setembro, data da posse de
João Goulart, agora sob regime parlamentarista de governo,
depois de tumultuadas negociações e achegas. O episódio
ficou conhecido como "crise da Legalidade". Esses dias
críticos do ano da graça de 1961 são detalhados
pelos autores a partir da mobilização popular que
levantou o Rio Grande do Sul, sob a liderança de Leonel Brizola,
para o enfrentamento com o establishment militar decidido
a impedir a posse do presidente constitucional eleito. O tempo fechou.
O remendo parlamentarista foi a forma de evitar uma inevitável
guerra civil.

Na entrevista a seguir, Paulo Markun comenta para o OI o livro que escreveu com Duda Hamilton (L.E.).

Comecemos pela pauta: por que o interesse pela "crise da Legalidade"? O que o faro da dupla de autores pressentiu de novo na história desse episódio de 40 anos atrás?

Paulo Markun ? Nosso interesse sobre o tema é resultado de uma coincidência, nada mais: quando fui filmar o documentário sobre o AI-5 na Câmara dos Deputados, precisava gravar imagens que demonstrassem o zelo com que o Legislativo cuida de sua história, já que a sessão de 12 de dezembro de 1968 é a única que não possui transcrição dos discursos e apartes ? esse material foi levado para o Ministério da Justiça quando o Congresso foi fechado e acabou se perdendo, o que foi o tema do meu filme. Para ilustrar a tese, filmamos um arquivo de aço onde estão discos com os discursos mais importantes e a funcionária puxou, ao acaso, um disco com o título A Crise de 1961. Lembrei-me então que o episódio estava para completar 40 anos e que não havia um trabalho de fôlego sobre o assunto. Em Florianópolis, a jornalista Duda Hamilton, com quem já havia escrito um livro sobre a Universidade do Sul de Santa Catarina, falou que uma empresa gaúcha nos convidara para apresentar o projeto de uma obra que abordasse um momento da história do Rio Grande do Sul. Juntamos as duas coisas, apresentamos o projeto, fomos selecionados por uma comissão de jornalistas, mas o presidente da empresa vetou a idéia, cancelando a edição de um livro em 2001, sob a alegação de que a história iria beneficiar o Brizola e o PT. Como já havíamos iniciado a pesquisa, seguimos adiante, obtendo o apoio da editora Senac-São Paulo e do Banrisul. Oito meses mais tarde, Que as armas não falem estava nas livrarias.

Seu livro e de Duda Hamilton tem texto jornalístico, obviamente sem a rigidez e os limites do jornal e da revista; traz apuração caprichada, à moda das matérias de envergadura; e mostra uma alternativa de produção pouco usual, embora lógica: montar uma "redação", um grupo, uma equipe. Este é o único caminho possível para empreitadas com esse fôlego? Em trabalhos como esse, será sempre necessário contar com apoio institucional (no seu caso, Senac-SP, Banrisul e Ministério da Cultura) para fazer bem-feito?

P.M ? Há duas maneiras de produzir trabalhos do gênero: investindo anos e anos de pesquisa, como fez o Claudio Bojunga em sua obra sobre JK ? ou o Domingos Meirelles ao recuperar a Coluna Prestes ? ou montando uma equipe de pesquisadores e trabalhando em tempo integral, como fizemos a Duda e eu. Nesse caso, o mercado editorial brasileiro modesto não deixa outro caminho, salvo o do incentivo que, como se vê pela historinha relatada acima, é bem complicado. Sonho com o dia em que grandes vendagens permitam aos autores investir e depois recuperar o investimento, montando uma equipe permanente de colaboradores. Por enquanto, andamos aos arrancos.

Malgrado os atos de força dos militares contra os jornais, como foi o comportamento da imprensa naqueles dias de agosto-setembro de 1961? O que lhe parecem as capas com títulos dramáticos de 3 linhas e corpo 72, caixa-alta?

P.M ? A imprensa foi militante, na crise de 1961. E dos dois lados: Tribuna da Imprensa, Agência Nacional e até o Repórter Esso, do lado dos ministros militares, e outros veículos como Última Hora, Jornal do Brasil e Correio da Manhã, do lado da Legalidade. Vale lembrar que os editores cariocas driblaram a censura. O Jornal do Brasil tirou um sarro fenomenal do milico encarregado de "selecionar" as boas e más notícias, que era o Euclides Quandt de Oliveira aparecendo no cenário brasileiro pela primeira vez. A Última Hora foi mais além: em Porto Alegre, seus diretores chegaram a apreender uma edição extra que saiu com a seguinte manchete ? verdadeira, mas politicamente complicada: "Machado Lopes adere a Brizola". As manchetes, vistas com o nosso olhar "objetivo", são hilárias. Jango jamais disse que voltaria para assumir ou morrer. Transcrevemos as conversas dele com Almino Affonso e Juscelino Kubitscheck, que indicam sua disposição de assumir, sim, mas sem correr riscos.

No livro, os jornalistas estão presentes todo o tempo e nos momentos mais críticos do período entre a renúncia de Jânio e a posse de Jango. É preciosa a transcrição da entrevista coletiva de João Goulart (pág. 329), em Porto Alegre. A certa altura um jornalista intervém: "Presidente, acabo de ser informado que o Congresso Nacional vem de aprovar a emenda parlamentarista. Todos sabem que tem que levar à consideração… Desejo nesta hora manifestar minha…" E foi interrompido. Ele queria manifestar a opinião dele… Em que medida a opinião sobrepujou a informação naquela cobertura jornalística? Alguma publicação destacou-se das demais?

P.M ? Os jornalistas entraram de cabeça na campanha da Legalidade. Claro que os jornais mais afinados com o trabalhismo cobriam o assunto de um jeito e os conservadores de outro, mas o reportariado que passou dias internado no Palácio Piratini [sede do governo gaúcho] estava ali sonhando com a Sierra Maestra [onde Fidel Castro articulou a guerrilha que finalmente tomou o poder em Cuba, em 1959]. Os limites entre opinião e informação eram mais vagos do que hoje em dia, mas ficamos impressionados com a quantidade de detalhes encontrados nas matérias, em todos os veículos. É difícil fazer uma avaliação isenta sobre a cobertura, já que os jornais cariocas foram mutilados pela censura. Mas, enquanto pôde, o Correio da Manhã fez um bom trabalho e, em Porto Alegre, o vespertino Folha da Tarde (do Grupo Caldas Júnior, que editava o Correio do Povo), contrário a Brizola, não brigou com a informação. Na Última Hora, show de edição, de fotos e de títulos vendedores. O editorial, que era na segunda página, nos dias tensos da Legalidade passou a ocupar metade da capa do jornal.

Bola levantada para você chutar: o rádio na Campanha da Legalidade. Os jornais do Sul também contribuíram para a mobilização popular?

P.M ? Que o rádio foi crucial na crise, não se discute. O que o livro traz são scripts inéditos dos programas transmitidos, que pareciam emitidos de um campo de batalha. Ao mesmo tempo, o Repórter Esso prestou-se ao vergonhoso papel de transmitir notícias absolutamente falsas, como a nomeação de Luís Carlos Prestes para o comando da resistência no Rio Grande do Sul ou o suposto envio de guerrilheiros cubanos para lutarem no Brasil. Outro episódio singular foi a tentativa do escritor Josué Guimarães de implantar uma sucursal clandestina da Rede da Legalidade no Rio de Janeiro ? que chegou a transmitir alguns informes, antes de ser localizada pela polícia.

Os autores realizaram diretamente 25 entrevistas, afora a farta documentação que reuniram. Revisteiro que você já foi, sabe que não é (ou não era) incomum produzir matérias jornalísticas com esse mesmo número de entrevistados. Ok, revista é revista, livro é livro, mas, e os princípios da apuração? São os mesmos? Por quê?

P.M ? Difícil no caso de uma história como essa é selecionar quem deveria ser entrevistado. Há milhares de protagonistas do episódio ainda vivos. Cada um tem um detalhe a acrescentar e, sempre, uma versão completa dos acontecimentos repleta de enganos, lapsos e fantasias. Mas o princípio da apuração não é diferente. O complicado é montar o quebra-cabeça final, principalmente considerando-se que certas fontes continuam inacessíveis, como os documentos militares, ainda mantidos a sete chaves.

Para o que servirá 1961 ? Que as armas não falem?

P.M ? Duda e eu esperamos que o nosso livro sirva como um aperitivo que leve os leitores pouco enturmados com a história recente a buscarem mais informação sobre o período e seus personagens fascinantes. E para a academia, como um pontapé inicial para mergulhos mais profundos nesse ensaio geral para o golpe de 1964. Procuramos escrever um livro com o máximo rigor documental, mas capaz de ser saboreado como um bom romance. Se conseguimos? Os leitores que o digam, por favor.