Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

30 anos do Jornal Nacional

Hugo Chávez dissolve a Assembléia Constituinte, após os trabalhos de elaboração da nova Constituição, e entra em choque com o Congresso Nacional: portanto, ou ele dá um golpe ou é derrubado por um golpe.

O cientista político francês Maurice Duverger, no livro Os Regimes Políticos, já afirmou que os presidentes, nas repúblicas latino-americanos, são ao mesmo tempo muito fortes e muito fracos. Fortes porque podem propor grandes mudanças e tentar executá-las via Executivo (e não via Parlamento, tradição européia com a social-democracia). Fracos porque podem ser derrubados ao tentar executá-las, ou, pelo menos, as propostas são bloqueadas pelo Congresso Nacional. O presidente não pode nem dissolver a Câmara dos Deputados nem convocar novas eleições, porque não há esse mecanismo no sistema presidencialista – além de estar sujeito a sofrer a acusação de ser golpista.

O coronel Hugo Chávez é mestre em ciência política, e está ciente dos riscos da dualidade entre Congresso Nacional e Assembléia Constituinte. A grande imprensa brasileira ainda não percebeu que a mentalidade presidencialista só permite resolver as situações das formas citadas anteriormente (casos raros, difíceis e excepcionais foram os impeachments de Fernando Collor de Mello, no Brasil, e de Carlos Andrés Pérez, na Venezuela).

Ou o sistema de governo é alterado ou voltaremos a ter soluções em que os militares atuem como Poder Moderador nos conflitos entre o presidente e o Congresso Nacional. O sistema político que mais se aproximaria das demandas das sociedades latino-americanas seria o sistema semipresidencialista (eleição direta para presidente e existência de um primeiro-ministro com maioria na Câmara dos Deputados, estando esta sujeita à dissolução e convocação de novas eleições).

O discurso de Bolívar

Em 15 de fevereiro de 1819, na cidade de Angostura, na Venezuela, Simón Bolívar fez o que é considerado pela crítica histórica o melhor discurso de sua vida. Perante o Congresso da Venezuela, que se instalava naquele dia, Bolívar discorreu sobre a efetiva criação da República, os conceitos de liberdade e Direito e as razões da Constituição. Além de dar conta de seus atos, o Libertador fez considerações sobre a proposta de estabelecer-se um Poder Moral.

O Poder Moral da República seria composto por um presidente e quarenta membros. Este Areópago (nome que era dado ao tribunal ateniense) seria responsável por guardar os costumes públicos e a educação. O Areópago seria dividido em duas Câmaras: de Moral e de Educação. O presidente do Areópago seria eleito pelo Senado e cada uma das Câmaras teria vinte membros. A Câmara de Moral seria responsável por castigar os vícios e a infâmia e a premiar as virtudes públicas com honras e glória. Sua autoridade seria independente e absoluta e sua jurisdição atingiria todas as instâncias do país. Livros e imprensa estariam sujeitos à censura, apenas após a publicação, se atingissem a moral e a virtude da República. A Câmara de Educação seria responsável por escolher as obras em língua estrangeira mais adequadas a serem traduzidas. Também seria sua função organizar e dirigir as escolas e planificar a educação.

A importância do discurso de Simón Bolívar não está apenas no Poder Moral, mas em como se expressou sobre liberdade, Direito e Constituição. Em um regime absoluto, não há limites para o poder. A vontade do déspota é a lei suprema e exercida com opressão. A importância do governo democrático é permitir a alternância no poder, pois, do contrário, um povo se acostuma a obedecer e o déspota a mandar, originando a usurpação e a tirania. Se há ignorância, tirania e vício não se adquire saber, poder e virtude. Bolívar foi sábio ao afirmar que custa mais manter o equilíbrio da liberdade do que suportar o peso da tirania.

Do caráter e dos costumes

Bolívar, em seu discurso, toma a iniciativa de propor uma reforma da Constituição. Ao citar O Espírito das Leis, de Montesquieu, defende que as leis devem ser relativas ao próprio país e ao povo que nele vive e, portanto, não deveriam ser copiadas da Constituição dos Estados Unidos. Antifederalista, defende uma República unitária e centralizada e afirma que a felicidade do povo americano deve-se não à forma em que se estabelece o governo, mas ao caráter e aos costumes do cidadão. A excelência de um governo não consiste em sua teoria, em sua forma nem em seu mecanismo, mas ser apropriado à natureza e ao caráter da nação para o qual se institui.

Segundo Bolívar, há uma mestiçagem do europeu branco, do indígena americano e do negro africano e, segundo a Constituição, há uma igualdade política. A função das leis é garantir que este princípio geral seja reconhecido e praticado por todos. As leis devem corrigir as diferenças porque colocam o indivíduo na sociedade para que a educação, a indústria, as artes, os serviços e as virtudes dêem uma igualdade fictícia, propriamente chamada política e social. O sistema de governo mais perfeito será aquele que produzir a melhor felicidade, com a melhor segurança social e com a maior estabilidade política. Para garantir-se a soberania popular, deve haver a divisão dos poderes, a liberdade civil, de consciência e de imprensa e a abolição dos privilégios. A igualdade é a base para se refundar o país, as opiniões políticas e os costumes públicos.

O presidente da República deve ter todos os poderes executivos e não reparti-los com a Câmara de Representantes e o Senado, como na Constituição dos Estados Unidos. Segundo Bolívar, o Senado vitalício deve ser composto por pessoas de educação ilustrada para servir de contrapeso ao governo do presidente e à pressão popular da Câmara dos Representantes. O presidente da República é o supremo magistrado e está encarregado de conter o ímpeto do povo e a propensão dos juízes e administradores em abusar das leis. O poder executivo deve ser mais forte pois uma pessoa sozinha deve equilibrar os poderes. O Judicário independente deve fazer com que se cumpram as leis, os tribunais devem ser reforçados pela estabilidade e independência dos juízes, a existência de um corpo de jurados e códigos civil e penal (deixando-se de lado a herança jurídica colonial). O Legislativo deve-se ater à sua jurisdição legislativa, como o presidente à sua jurisdição executiva. A legislação deve predominar sobre o Judiciário para haver um equilíbrio e não haver choque que atrapalhe a marcha do país.

A sociedade e o abismo

Simón Bolívar afirma, em sua conclusão, que formar um governo estável requer a base de um espírito nacional que tenha por objetivo uma inclinação uniforme em direção a dois pontos fundamentais: moderar a vontade geral e limitar a autoridade pública. Se não há o respeito sagrado pela pátria, pelas leis e pelas autoridades, a sociedade é uma confusão, um abismo, é um conflito singular de corpo a corpo (estado hobbesiano). A força do poder executivo, sua concentração de poderes, não quer autorizar que um déspota tiranize a República, mas impedir que o despotismo seja a causa imediata em que alterne a anarquia, a oligarquia e a monocracia. A autoridade do presidente deve ser suficiente para poder manter-se lutando contra os inimigos externos e internos. Todos os povos buscam a liberdade, uns pelas armas, outros pelas leis, passando alternativamente da anarquia ao despotismo e deste de volta à anarquia. Muitos poucos são os que se contentam com pretensões moderadas, constituindo-se de um modo de acordo com seus meios, seu espírito e suas circunstâncias. O desejo de Simón Bolívar era que todas as partes do governo e administração adquirissem o grau de vigor que unicamente pudesse manter o equilíbrio, não só entre os membros que compõem o governo, mas também entre as diferentes frações que compõem a sociedade.

Analisando o pensamento de Simón Bolívar percebemos que ele concentra os poderes de chefe de Estado e chefe de governo na figura do presidente. Este, ao mesmo tempo, deve agir como poder moderador (chefe de Estado) e poder executivo (chefe de governo). O principal problema do presidencialismo latino-americano foi que a tensão entre presidente (chefe de governo) e Câmara de Representantes (Câmara dos Deputados) não foi resolvida pela intermediação do Senado e nem poderia ser pelo chefe de Estado, por este ser o próprio presidente. O poder moderador acabou sendo sempre prerrogativa do Exército em atuar com o presidente ou contra ele. O sistema de governo presidencialista sempre apresentou este defeito histórico na América Latina.

Idéia impraticável

O Poder Moral foi considerado por alguns deputados da época como uma feliz idéia que poderia influir e aperfeiçoar as instituições sociais. Outros a consideraram uma inquisição moral, comparável a uma religião. Entretanto, todos concordaram com a dificuldade de seu estabelecimento. Era impraticável. A idéia virou apenas um apêndice da Constituição e publicada em homenagem ao chefe supremo da República.

Hugo Chávez sempre recorre à memória de Simón Bolívar, embora não queira retomar a estrutura do Poder Moral proposta por ele. Este Poder Moral pode ser, na verdade, a atuação do presidente (chefe de Estado) como Poder Moderador em relação aos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Apenas com a promulgação da nova Constituição saberemos se o sistema político vai funcionar como desejam ele e a soberania nacional.

Pretendo analisar este tema não apenas como uma preocupação em relação aos países hispano-americanos (aplicável em alguns casos), mas principalmente em relação ao Brasil. Apesar de estarmos separados pela fronteira física e pelos idiomas, vivemos todos uma mesma realidade latino-americana. Apenas agora a grande imprensa brasileira começa a dar atenção, além de aos Estados Unidos e à Europa, à América Hispânica, a qual sempre estivemos ligados territorialmente e dela, ao mesmo tempo, tão distantes.

A proposta de Hugo Chávez de instituir um Poder Moral na Venezuela deve ser vista como um recurso ao Poder Moderador (chefe de Estado separado do chefe de governo), para evitar golpismos ou populismos. Esse é o foco que deveria preocupar a imprensa. Se a tradição presidencialista (personalista, messiânica e salvacionista) for mantida nos próximos anos, vários países estarão permanentemente no fio da navalha e continuaremos nos perguntando o porquê, como em 1964.

(*) Mestrando em Ciência Política (IFCH/Unicamp)

 

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