Tuesday, 16 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

O 'release' domingueiro

O apresentador Fausto Silva já foi um gênio. Depois de passagem marcante pela reportagem esportiva, Fausto criou o mais inovador programa de rádio da década passada, o Balancê, que ia ao ar de segunda a sexta, do meio-dia às 13 horas, pela então rádio Excelsior, de São Paulo. Era um programa de auditório como não havia mais no rádio, transmitido ao vivo desde o Teatro Piolim. Reunia na platéia os empregados em horário de almoço e a fina flor do universo de desocupados do centro da cidade. Desopilava-se o fígado com o talento de Fausto Silva. Ele era uma grata novidade, um outsider com espaço na mídia e exímio contador de piadas. Era obrigatório ouvi-lo. Estamos em 1983. 

Em meados dos 80 o apresentador Fausto Silva ainda era um gênio. O sucesso do Balancê levou à formulação de sua versão televisiva, denominada "Perdidos na Noite". O espírito folgazão do rádio baixou primeiro na TV Gazeta e depois na TV Bandeirantes, ambas emissoras paulistas. Na nova mídia, Fausto começava o programa tarde da noite e rompia madrugada. Em meio à precariedade escancarada dos recursos de produção, a criação e o bom-humor nunca estiveram tão bem contemplados na telinha. De quebra, os ouvintes e telespectadores se reconheciam na defesa de causas populares – eleições diretas, por exemplo, o que para a época já era avanço. Assistia-se com grado ao programa do Fausto, isso em meados dos 80. 

Faustão, agora, só é tratado no aumentativo: Fausto Silva migrou para a Rede Globo e foi reconvertido com auxílio do marketing controlador das verbas de promoção de grandes anunciantes. Foi fazer parte do esforço de guerra contra a concorrência do SBT, onde no mesmo horário pontifica ou inefável Sílvio Santos ou sua versão de calças curtas, Gugu Liberato. A operação deu tão certo que a Globo renovou o contrato de Fausto Silva até o próximo milênio. 

Em sua nova casa, Fausto chegou demonstrando apoio radical à tese do impeachment de Fernando Collor e reproduzindo no programa a indignação das ruas. Introduziu na Globo algo que a emissora pouco experimentara: o improviso e a ausência de papas na língua. Um palavrão discreto de vez em quando até que passava, dava molho. Mas o máximo, para os padrões globais, ainda estava por vir: o nome do jornalista Roberto Marinho passou a ser levado ao ar envolto em uma intimidade jocosa, capaz de ruborizar os mais antigos funcionários da casa. Estamos na metade do primeiro lustro dos anos 90. 

Hoje Faustão continua um piadista de mão cheia. Certamente uma pessoa cativante e cercado de bons amigos, mas seu programa não passa de umrelease eletrônico, de um pasticho do transgressor que anos antes invadira o rádio e depois a TV. O que lhe deu maior notoriedade – a reprodução bem-humorada do sentimento das ruas, a crítica veraz e escrachada – transformou-se, nos domingos globais, em bajulação pura. 

Todos os convidados de seu programa têm indulgência plenária. Os entrevistados do apresentador são todos excelentes filhos, profissionais ímpares, pais amantíssimos e, quando é o caso, metade de casais exemplares. O mito que o público vê e ouve, e que leva a platéia ao delírio, é feito só de harmonia, felicidade e bom-mocismo. (Nada de contradições: a digestão dos almoços de domingo deve se dar sem sobressaltos…) Nenhum convidado deixa de receber elogios candentes e de ter seu caráter sobrelevado. O Domingão do Faustão é uma reprodução aumentativa de mitificação de personalidades, de interesses mercadológicos e de sentimentos vazios. 

Há deslizes mais graves, como a recente exibição do "menino-gabiru", no melhor estilo O Povo na TV. A atitude mereceu repulsa em uma matéria de capa da Veja, alter ego impresso das classes médias brasileiras. Mas o corriqueiro, nas tardes de domingo, tem sido amarrar o programa à apresentação de personagens de forte apelo popular. Quando o convidado é do porte de uma Xuxa, todavia, a babação de ovo atinge o paroxismo. Estamos em 10 de novembro de 1996 e também foi assim nesse dia.

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[Luiz Egypto, jornalista]