Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A técnica do sensacionalismo

A Folha de S.Paulo publicou em 13/12/96, pouco acima da dobra da primeira página, o seguinte título, em português, para variar, estropiado: "Moradores de rua em S. Paulo crescem 32%". No texto da chamada, de onze linhas e meia, há ainda quatro porcentagens devidamente paramentadas com duas casas decimais depois da vírgula, velho truque usado para suscitar credibilidade. 

Remete-se o leitor à página 1 do 3o caderno, onde, depois de passar pela repetição das porcentagens no título e no antetítulo, é preciso chegar à primeira linha do segundo parágrafo para ler o número absoluto: "Foram contadas 5.334 pessoas vivendo nas ruas da cidade e nos albergues da prefeitura e do Estado." 

Coloque-se o leitor na posição de correspondente estrangeiro. De um jornal de Nova York, digamos. Ou de Los Angeles. Não faz muita diferença. O número de pessoas sem teto na gigantesca cidade de São Paulo não lhe despertaria o menor interesse. Zero. Porque em cada uma dessas duas cidades o número de pessoas sem moradia (homeless) é superior a 200.000. Repetindo, para não haver dúvida: 200.000 homeless em Nova York e outro tanto em Los Angeles. (1) 

Por mais que lamentemos que haja milhões de favelados, centenas de milhares de moradores em cortiços e milhares dormindo nas ruas e albergues de São Paulo (4.027 em 1991, 4.549 em 1994 – aumento de 13% em três anos -, 5.334 em 1996 – aumento de 17% em dois anos; em Los Angeles, entre 1986 e 1992, as taxas anuais médias de aumento foram de 17%), por mais chocante que seja ver todo dia essas pessoas em estado de miséria, não podemos ignorar que o número recenseado está longe de ser uma calamidade, ainda mais em país pobre. 

Uma análise mais fina mostra que a rua é passagem (e abrigo) para muita gente entre um emprego e outro, entre uma casa e outra (ou entre um casamento e outro), entre a moradia distante e o trabalho na rua (geralmente de catadores de papel). Mostra que o morador de rua renitente, irrecuperável, é, na maior parte dos casos, um alcoólatra (2). Trata-se e não se trata de uma questão social, porque mesmo nas mais prósperas e protegidas sociedades há indivíduos com dificuldades desse tipo. 

No Estado de S.Paulo, o assunto não ganhou uma linha na primeira página, e o subtítulo da manchete interna, no caderno Cidades, apresentava claramente os números absolutos de 1991 e de 1996. (Isto não prova nada além de que correr atrás de lebres não é uma lei da natureza.) Análises mais finas "derrubariam" a chamada da primeira página da Folha. Essa é uma das razões pelas quais o número absoluto – sem o qual a porcentagem é desprovida de qualquer sentido, para pessoas medianamente inteligentes – foi cuidadosamente ocultado na primeira página da Folha: a razão mais inocente, de "técnica jornalística". 

As outras razões são ideológicas e políticas. Entre as políticas, a dificuldade de extrair todas as conclusões sobre a incompetência de sucessivos prefeitos, de diferentes partidos, para lidar com um problema que, ao contrário do que sistematicamente se dá a entender, não está fora do alcance do poder público. 

Entre as ideológicas, a dificuldade de entender por que os eleitores nunca alcançaram grau de cidadania, ou grau de solidariedade humana e social, que lhes fizesse exigir mais das autoridades que elegem. 

O círculo se fecha: trata-se de avaliar a pesada contribuição da própria imprensa para este estado de coisas. Na primeira página, nem pensar.

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(1) Mais informações no arquivo do jornal The Christian Science Monitor. A reportagem consultada é de 23/12/92.  

(2) Para uma análise mais fina, baseada na primeira pesquisa do gênero feita pela Prefeitura de São Paulo (gestão de Luiza Erundina, maio de 1991), consultar População de rua – quem é, como vive, como é vista, obra coletiva organizada por Maria Antonieta da Costa Vieira, Eneida Maria Ramos Bezerra e Cleisa Moreno Maffei Rosa (São Paulo, Hucitec, 1992)