Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Joel Silveira

"(….) Oitenta milhões de cruzeiros de dote; duzentos mil cruzeiros para umsouvenir oferecido à noiva pelos diretores do grupo Matarazzo; um núncio e três bispos; coral com a melhor música sacra de Palestrina – tanta coisa mais, meu Deus, que teria acontecido com o conde Francisco Matarazzo Júnior? Que teria acontecido? Antes tão pacato, metido lá com os seus negócios, de casa para suas fábricas, das fábricas para o maciço arranha-céu do viaduto, e de repente, por artes diabólicas, o demônio da ostentação toma conta do seu espírito e o obriga àquele espalhafato todo. 
'Não sei não, meu senhor, mas acho que o conde Chiquinho está gastando dinheiro demais', foi o que me disse, na redação do Diário de São Paulo, dona Olívia Figueira Ramos, mãe de uma outra noiva, imensamente mais modesta. Ela fora ali, atraída pela publicidade que o jornal vinha dando ao imponente casório, e nos aparecia armada de uma lógica ingênua e simples. Disse: 
– Leio todo dia notícias do casamento da filha do conde, e pensei que os senhores podiam publicar uma notinha qualquer sobre o noivado de minha filha. Ela se casa sábado. (….) Moço, será que só a filha do Matarazzo tem o direito de ver o seu casamento noticiado pelos jornais? Gente pobre também não casa?', perguntou dona Olívia ao repórter. E lá fomos nós para o casamento da filha. 
[Joel Silveira narra em seguida o casamento, "em humilde casa da Vila Romana, de Nadir Figueira Ramos, operária de uma das fábricas Matarazzo, com o rapaz José Tedeschi, torneiro-mecânico".] 
Era, afinal, uma compensação, um tanto melancólica, para quem não pode romper a terrível e impraticável parede que separa o mundo dourado do palácio da Avenida Paulista e o mundo prosaico da rua, o nosso mundo. E de tais compensações vivem os repórteres otimistas." 
-"A 1.002ª noite da Avenida Paulista", reportagem publicada originalmente no jornal Diretrizes em 1945, republicada na coletânea Tempo de contar, Rio de Janeiro, José Olympio, 3ª edição, 1993, e reproduzida em A Arte da reportagem, livro organizado por Igor Fuser, São Paulo, Scritta, 1996.) 

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Marcelo Leite
"Mais luz, mais ilusões" 

Deixo de ser ombudsman da Folha depois de 831 dias no cargo e 107 colunas como esta. Já vou tarde, pois exercia a função interinamente desde final de setembro, quando motivos de saúde impediram Mario Vitor Santos de assumir. A partir de amanhã, ele é o novo ombudsman, mas não um novato (já frequentou este pelourinho moral entre 1991 e 1993).

Prazer e pesar se misturam, nesta despedida. E otimismo. 
Alívio: sábia é a regra adotada na Folha que fixa o mandato do ombudsman em no máximo dois anos. Muito mais tempo no liquidificador, desandaria a liga delicada com leitores e Redação, como ovos, azeite e limão na maionese. A acidez prevaleceria, degradando uma invenção civilizada em grumos e azedume. 
Aflição: afastar-se com a inevitável sensação de que muito mais deveria ter sido feito, tantas são as deficiências do jornalismo diário praticado no Brasil -e daFolha como seu expoente, para o bem e para o mal. Resta o consolo de reconhecer que tão importante quanto espremer limões é obter os ovos gordos da reportagem e o azeite fino da pesquisa. De volta à feira, portanto. 

Certeza: Mario Vitor Santos atuará novamente com competência no papel de guardião do livro de receitas (o "Novo Manual da Redação"). 

Menos mercado 
Em lugar do tradicional balanço de final de mandato, ofereço um brinde. Um brinde ao futuro do jornalismo, que se encontra numa encruzilhada. Meus votos são de que siga pelo caminho certo, escolhendo a informação e não o entretenimento, equilíbrio em lugar de sensacionalismo, a opinião pública antes do mercado. 

De um ponto de vista abstratamente ético, moral, ou mesmo moralista, as alternativas parecem fáceis de decidir. Não são; nunca foram. Diversão, emoção e valor de troca são inseparáveis da informação, um bem de consumo. A questão está em discernir que tais atributos, apesar de tudo, não a governam. São condições necessárias da notícia, não suficientes. 

O país está terrivelmente necessitado de mais relevância, mais critério, por parte do jornalismo. 

O sucesso mais econômico do que político e social do governo Fernando Henrique Cardoso engendra consensos aparentes: Plano Real, privatização, reeleição. Não se trata de fazer oposição, e sim de apontar-lhes as fissuras, alternativas, motivações, bastidores. Indicar suas limitações, sem omitir as realizações, que no entanto cabe ao próprio governo propagandear. 

Não é e não será simples resistir ao charme dos tucanos. Em primeiro lugar, porque eles traficam com as informações, como fazem todos os governantes. Depois, porque "pessimismo" e "negativismo" viraram estigma mercadológico. 

Por fim, há o complicador adicional dos interesses empresariais de todos os grandes grupos de comunicação nas áreas de telefonia e privatização. Tais interesses deixam as publicações com um desconfortável "handicap" de independência perante o governo federal. 

Mais exemplos 
Há muito mais coisas por fazer do que feitas, no Brasil. É disso que os jornais têm de falar, sem a pieguice de socialite que acabou de descobrir a miséria ou o preconceito de sulista que se envergonha dos grotões do país. Não é só fazer caminhões de reportagens sobre saúde e educação, ou continuar fomentando a psicose coletiva da segurança na classe média. É preciso mudar organicamente a relação dos jornalistas com suas fontes tradicionais, nesses campos. 

A reforma mais urgente de comportamento diz respeito à polícia, talvez a mais bruta, inepta e corrompida instituição brasileira. É imperioso começar a confrontá-la, mesmo sob o risco de ficar sem informações. Enquanto o método básico de investigação for a tortura, a imprensa deveria renunciar unilateralmente à divulgação das identidades de suspeitos. Sem atitudes como esta, jornalistas continuarão deitando lágrimas de crocodilo depois de casos como o da escola Base e do bar Bodega. 

A imprensa não presta para nada se não se atribuir uma missão civilizatória. Para desempenhá-la com credibilidade, precisa dar exemplo de competência, a começar por escrever certo e de forma compreensível. A Folha, com o programa de prevenção de erros desenvolvido nos últimos dois anos, tem marcado pontos importantes. 

Falta habilidade e senso crítico no trato com números e estatísticas, enquanto sobra fetichismo. Todo cuidado é pouco com relatórios "vazados" pelo governo, mas também por institutos de pesquisa comerciais e até pelas aparentemente santas ONGs (organizações não-governamentais). Isso para não falar de estudos de órgãos internacionais, que descobriram há muito mais tempo o filão das cifras escandalosas. 

Menos marketing 
É preciso também coragem para pôr no devido lugar as ferramentas de marketing e as pirotecnias industriais. Depois do extraordinário ganho de massa circulatória propiciado pelos "anabolizantes" (fascículos), e superados os problemas mais graves do novo Centro Tecnológico Gráfico-Folha (CTG-F), o jornal parece suficientemente provisionado para a tormenta da qualidade, que se avizinha. 

O diesel jornalístico ainda é informação exclusiva e bem apurada. Sem ele, o transatlântico não sai do lugar. Para chegar a bom porto, porém, a Folha precisa de rotas menos aventurosas do que as que conduziram aos fiascos de distribuição de 9 de outubro de 1994 e 3 de março de 1996. 

Duas datas inesquecíveis para o ombudsman, assim como para qualquer jornalista que tenha compartilhado a tarefa de fazer um bom jornal todos os dias, nesta época turva. 

Mais ilusões 
Para escrever este texto, reli boa parte das colunas dos últimos 27 meses. O tom que predominou foi mais que ácido. Deve ter deixado nos leitores -sobretudo os da Redação- a certeza de que escrevia sob inspiração do terrível epigrama de Karl Kraus reproduzido no início do "Novo Manual da Redação" da Folha: "A missão da imprensa é espalhar espírito e, ao mesmo tempo, destruir a capacidade de absorvê-lo". 

Não é nada fácil convencer-se da injustiça da frase de Kraus, mas é imperioso iludir-se. É o tipo da ilusão que todo jornalista, e a rigor todo leitor de jornal, deve voluntariamente acolher. Não têm saída, a não ser apostar na perfectibilidade do jornalismo. 

Os defeitos congênitos da informação e da esfera pública só encontram remédio em mais informação. Por isso também é inaceitável, ainda que verdadeira a seu modo, a maldição proferida por personagem do magistral "Ilusões Perdidas" de Honoré de Balzac: "Se a imprensa não existisse, seria preciso não inventá-la". 

Uma democracia, ainda que débil, subdesenvolvida e injusta como a brasileira, está condenada à imprensa. A maior parte dos defeitos do jornalismo daqui decorre do pouco caso com essa vocação. Para fazer a coisa certa, é preciso reencontrar a determinação de contribuir para o desenvolvimento e o esclarecimento da opinião pública, provando a todos que ela pode ser algo mais do que uma quimera.