Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1280

As alças do caixão

Era 1968 e havia o camarada Caldas. No dia 28 de março, o estudante Edson Luís foi morto pela tropa de choque da PM da Guanabara. Também estudante e repórter do Jornal do Brasil, chocado e tenso como tanta gente, fui ao velório na Assembléia Legislativa. Tumulto à beira do caixão, os oradores discursavam sem ser ouvidos. Um amigo meu da Nacional de Medicina tentou impor silêncio com um urro lancinante e interminável que ninguém ouviu e eu nunca esqueci. Ele não era muito bom da cabeça mas eu nada sabia disso e pensei que fosse o efeito da hora. Aos poucos, em meio àquela mistura de comoção e histeria, algum tipo de ordem prevaleceu no pandemônio e os líderes, erguendo a camisa ensangüentada do estudante morto, falaram. 

Ouvimos emocionados dezenas de discursos, no velório e depois. O camarada Caldas também ouviu, mas não perdeu o senso crítico, que naqueles anos se convertia logo em senso político. "Treparam no caixão", acusou. Isto significava que tinham aproveitado a emoção para fazer passar idéias de resistência à ditadura que, em sã consciência, poucos aceitariam. Trocando em miúdos, incursões precursoras da luta armada. Caldas estava certo. Depois que o movimento trepou no caixão de Edson Luís a exaltação conduziu os estudantes à derrocada de Ibiúna, em outubro. Dois meses depois já era o AI-5. 

Nos quase trinta anos que me separam da frase do camarada Caldas vi gente trepar em caixões, nem sempre impelida por sentimentos nobres como os de 1968. Mas nada parecido com o Sr. Roberto Campos manipulando a mise-en-scène outonal de Paulo Francis para repetir serôdios ataques ao Estado e às empresas públicas (Folha de S.Paulo, 9/2/97). No final do artigo, o deputado substitui a máscara da compunção pela face nua do desprezo: 


"As crônicas que publicou, ao longo dos anos, sob a rubrica 'Diário da Corte' eram um esquisito buquê de crítica literária e artística, análise política, palpitologia econômica e saborosa psicanálise de amigos e inimigos. Seu estilo era inconfundível e inimitável. Afinal de contas, há muitos escritores, mas poucos pugilistas de idéias…"

***

P.S. – No texto sobre Mario Henrique Simonsen, publicado uma semana depois, Roberto Campos é mais objetivo e respeitoso, embora não perca a oportunidade da vanglória: "Prescientemente, escolhi para expositores [em seminário que organizou em 1967, destinado a atualizar os conhecimentos de economia do general Costa e Silva…] Simonsen, Delfim Netto e Reis Velloso, todos os quais se tornaram depois ministros de Estado." 

Uma correção à margem do texto: a epígrafe usada por Roberto Campos é de um poema falsamente atribuído a Jorge Luis Borges. Trata-se de uma das fraudes mais curiosas das últimas décadas. Mas, se se quer Borges, o grande argentino escreveu, no epílogo de Los conjurados (1985), numa suposta "Enciclopedia Sudamericana, que se publicará en Santiago de Chile, el año 2074", seu próprio verbete biográfico, no qual se lê: "El renombre de que Borges gozó durante su vida, documentado por un cúmulo de monografias y de polémicas, no deja de asombrarnos ahora. Nos consta que el primer asombrado fue él y que siempre temió que lo declararan un impostor o un chapucero [incompetente] o una singular mescla de ambos. Indagaremos las razones de ese renombre, que hoy nos resulta misterioso"…