Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Paulo Francis gostou do show de necrológios?

Waal ou Pfui?

Francis adorou, não tenham dúvidas. A tragédia de uma vida ceifada no auge da sua vitalidade foi em parte neutralizada por dois fatores:

* morreu sem sofrer;

* foi louvado ad nauseam (como costumava dizer).

Carente, tudo nele denotava ansiedade por reconhecimento. A ação judicial dos diretores da Petrobrás e o livro de Fernando Jorge, quase simultâneos, agravaram suas premências e inseguranças. Sentiu-se vulnerável – a impotência é a pior poção que se pode receitar ao onipotente.

Abundantes em número e extensão (no meio do ano os editores seriam mais parcimoniosos), exuberantes na adjetivação, os obituários e noticiários estiveram à altura daquilo que Francis sempre esperou dos pares e contemporâneos. Entediado, blasé e terrivelmente insatisfeito com o tipo de sucesso que alcançou, agora Franz Paul Heilborn descansa em paz. Merece. O gênero humano, sobretudo aquele das cercanias do trópico, é impiedoso. Abaixo do Equador evaporam-se tanto a noção de pecado como o senso trágico, nestas paragens vaia-se até o minuto de silêncio.

Francis em vida batalhou arduamente para ter tudo o que merecia. Conseguiu. Na morte também: luto oficial, bandeira a meio-pau, nota oficial da Presidência, pétalas de rosa jogadas do helicóptero, sucessão de inserções no mesmo Jornal Nacional, inclusive a última (privilégio dos grandes assuntos ou personagens).

A morte não concerne aos mortos mas aos sobreviventes. Neste caso, o Brasil esculachado (do qual o próprio Francis foi exemplo em alguns momentos), deu um passo adiante em matéria de compostura e respeito. Assim dói menos.

A esquerda rangeu os dentes, engoliu o enfezamento e perfilou-se perante o defunto tão enaltecido. Acostumada a apanhar, convivendo desde sempre com a intolerância, a esquerda (inclusive os petelhos, inventados por Francis), tem mais cancha de solidariedade. Caso de Eduardo Suplicy, senador-agora-gentleman que ignorou as penosas alcunhas e injúrias, um dos primeiros a apresentar pêsames. Não foi o caso de Brizola, Vicentinho e Lula, que assumiram de vez o padrão rastaqüera de cara-pintada.

 

Jornalista morre duas vezes

Como pessoa e como matéria jornalística. Francis foi sepultado com todas as honras. Mas a extravagância da cobertura do seu passamento desvendou em toda a extensão a precariedade atual das nossas redações quando se trata de assuntos mais densos, imperiosamente reflexivos, pesquisados e contextualizados.

Obituário ou necrológio, apesar da etimologia, pertencem ambos ao gênero biográfico, narração de vidas, a busca do Outro, um dos esteios mais tradicionais do jornalismo. Curioso e significativo: o novo biografismo brasileiro (começado junto com a década de 80 graças à contribuição de alguns jornalistas autônomos), não conseguiu influir na qualidade do material biográfico ou necrológico produzido nas redações.

No mundo anglo-saxão, o obituarismo é exercido pelos mais qualificados profissionais, não apenas os mais encanecidos mas aqueles com capacidade de enxergar a Historia através do cotidiano. (Convém folhear o The Economist com seus obituários exemplares; O Globo é o único dos Quatro Grandes que mantém um, regular).

A prática do obituário nada tem de fúnebre, não é "para baixo", ao contrário, é uma celebração de vidas. Difere da acelerada fabricação de celebridades com que os jornalistas-marqueteiros de hoje alimentam o nosso depauperado Quem é Quem.

A cobertura do recente suicídio do último filho de Getúlio Vargas, Benjamim Vargas, é um exemplo de como o jornalismo brasileiro passa ao largo da Historia e desperdiça sua capacidade formadora.

A morte de Mário Henrique Simonsen na segunda-feira de Carnaval (quando o Jornal do Brasil exibiu a sua velha capacidade de perenizar os acontecimentos) mostrou o potencial referenciador do gênero. Graças aos obituários de Simonsen as novas gerações e os desmemoriados puderam reencontrar-se com Delfim Netto in natura, com as suas estripulias a-éticas (neologismo que o nobre deputado suscitou), hoje vestal da moralidade e do bom senso. Na edição de Veja de 19/2, Marcos Sá Corrêa traçou brilhantemente um perfil com todos os dados relevantes e nenhum detalhe irrelevante.

Através das suaves notas de Moacir Werneck de Castro a propósito de Francis (JB, 11/2), ficaram os leitores de hoje conhecendo o desvario e a "porra-louquice" das esquerdas na véspera do golpe de 64. Moacir flagrou na redação da Ultima Hora do Rio um excitado Francis, ao telefone, dando conselhos militares a um dos generais do esquema de Jango.

Horas depois de anunciada a morte de Francis, este Observador foi procurado por quatro profissionais de empresas diferentes com a mesmíssima e estúpida pergunta: qual o papel desempenhado por Francis na imprensa brasileira?

Queriam informações ou gancho para títulos? Nem eles sabiam, ficaram sem resposta.

Um bom obituarista, ligeiramente mais velho do que a idade média das redações, saberia evitar a vexaminosa enquête. Pauteiros com alguma experiência e conhecimento da realidade brasileira saberiam onde os repórteres poderiam encontrar as informações mais palpitantes de uma vida tão rica e uma morte tão repentina.

Resultado: os jornais, mais uma vez, sustentaram-se na opinião e no opinionismo, com custo zero, através da mobilização dos amigos mais desolados. E outros que, na expressão do mais discreto deles, Ivan Lessa, apenas disputavam a honra de segurar o caixão do defunto.

Francis foi velado jornalisticamente por artigos, os repórteres como sempre em segundo plano. O opinionismo e os excessos cometidos pelos opinionistas são a mais recente desgraça da imprensa brasileira. Quando se trata de matéria política jogam-se todos na insana e inútil tarefa de tirar o sono do presidente da República disputando injúrias ou o olímpico fastio. Na louvação, canhestros em lidar com fatos, também apelam para a retórica (somos mais franceses do que os próprios).

Paulo Francis, na sua última fase, infelizmente, foi apenas um opinionista exaltado. O patrulhamento de que foi vítima levando-o a transferir-se para o O Estado de S.Paulo e o sucesso que fez em seguida realimentaram sua veia panfletária e o seu pendor para a pasquinada, aposentando o observador-ensaísta das fases anteriores.

A generosidade, o refinamento alemão, a escolástica jesuíta, a grandeza de espírito e seus atributos culturais esvaíam-se magicamente quando Francis se sentia na ribalta compelido a dar a palavra final. Abusava do "imbecil" como se esta adjetivação fosse sinônimo de ousadia e independência.

Alguns de seus amigos, sinceramente emocionados, mimetizando seus modos, também excederam-se nos encômios (abaixo, em "Corifeu do entretenimento", um painel do que foi dito). Não é por acaso que na edição de 6/2 um leitor da Folha comparou Francis a Machado de Assis – impropriedade que ambos rejeitariam com veemência se vivos fossem.

O subproduto básico do opinionismo é a injustiça, igualmente onerosa para juízos favoráveis ou não. Pródigo de qualidades, esbanjando talento, Paulo Francis dispensava as indevidas. Eis alguns destes desmandos:

* Francis não foi o editor da revista Senhor. Quem o lançou na revista foi o diretor Nahum Sirotsky, hoje em Israel, onde atua como correspondente de jornais brasileiros que poderiam tê-lo localizado para depoimentos.

* Francis não revolucionou a imprensa brasileira. Foi, sempre, solista. Não gostava de redações, não tinha gosto pelas tecnicalidades, abominava a hierarquia. Jornalismo foi uma oportunidade que aproveitou magnificamente.

Hoje, malgré lui, pode provocar movimentos salutares.

* Francis não era fanático pela qualidade da escrita. Ao contrário, não escondia uma impaciência com a elaboração vernácula. Durante muito tempo adotou o sistema de não rever os textos, no pé adicionava uma errata, o redator que se virasse. A descontração da linguagem, as interjeições, o coloquialismo e o deboche foram recursos engenhosamente engendrados para valorizar a inspiração e desleixar com a transpiração. Seu último livro, Trinta Anos Esta Noite (Waal é uma coletânea de escritos anteriores), deu muito trabalho ao editor.

 

Maniqueísmo mata

Atento aos exageros encomiásticos e com mais alguns dias para elaborar melhores perspectivas, o novo ombudsman da Folha (9/2) tentou colocar as coisas no seu lugar e dimensões. Conseguiu penetrar na complexidade daquele adorável vergastador mas, por conta de um maniqueísmo da sua geração, cometeu com outros injustiças imperdoáveis. A saber:

* Carlos Lacerda e Hélio Fernandes não podem ser classificados apenas como jornalistas de tribuna. Por coincidência donos da Tribuna da Imprensa em diferentes momentos, foram homens de redação, exímios editores e comandantes. Carlos Lacerda escreveu um dos melhores e mais deliciosos manuais de redação (em seguida ao de Pompeu de Souza) e a sua Tribuna foi um vespertino exemplar, vivo, criativo, tecnicamente melhor do que a rival, Última Hora. Pela mão de Lacerda passaram profissionais como Hermano Alves, Carlos Lemos, Zuenir Ventura, Itamar de Freitas, Luís Lobo, Paulo Henrique Amorim.

* Hélio Fernandes, além de polemista, foi um dos pioneiros do jornalismo de revista, primeiro na Revista da Semana e, depois, na Manchete. Não pertence a uma geração segmentada: sabem escrever, fotografar, editar e inovar. Como Janio de Freitas, confinado ao grupo dos que fizeram revoluções nas redações, mas igualmente exímio duelista.

* Na lista dos comandantes e revolucionadores (na qual teve a cortesia de incluir este Observador), o ombudsman Mario Vitor Santos cometeu imperdoável omissão – esqueceu Cláudio Abramo, o grande regisseur de jornais, a figura exponencial do jornalismo pós-1964, o homem que reverteu a hegemonia jornalística do Rio de Janeiro em favor de São Paulo transformando, a partir de junho de 1975, uma folha que sequer tinha página de opinião num dos mais discutidos formadores de opinião que o país jamais teve.

* Cláudio Abramo montou um formidável plantel de colaboradores, a maior coleção de ex-diretores num mesmo jornal (a maioria oriunda do Rio): Samuel Wainer, Mino Carta, Oswaldo Peralva, Luís Alberto Bahia, Newton Rodrigues, Janio de Freitas (e este Observador). Francis foi uma das primeiras contratações de Cláudio Abramo na nova fase da Folha (1975). Esquecer Abramo pela segunda vez (a primeira foi na "história oficial" da Folha encomendada a Carlos Guilherme Mota) mostra como os obituários e, em última análise, a História continuam sujeitos a imponderáveis critérios e maquinações.

Neste carnaval biográfico onde Francis sambou sozinho como sempre sonhou faltou mencionar a causa mortis: o stress que o consumiu (junto com os dois dissabores mencionados) foi causado pelo absurdo regime de trabalho a que foi submetido. Sobre isso ninguém falou, nem poderia. O sistema que entronizou Francis e o sistema que o destruiu deve ficar na moita.

Pagavam-lhe muito bem, conseguia tudo o que queria e mais alguma coisa, Francis vendia, griffe de sucesso. Mas tiravam-lhe o couro sem dó. E acabava saindo barato porque suas colunas eram revendidas pelo Brasil afora. Duas páginas inteiras por semana, sem férias, pura pauleira, emoção de xingar e emoção de arrepender-se – o mercado queria, as pesquisas exigiam, os painéis dos leitores intimavam – este convívio constante com a violência e o violentar-se acabam com ânimos mais empedernidos.

O garboso gladiador, pago para ensandecer a galera e destripar impiedosamente meia dúzia de adversários por semana, desmoronou, corroído pela gratuidade dos combates. Sua última surpresa, sua diatribe mais eloqüente.