Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

"Corretores" ortográficos

Estadão publicou uma nota no Caderno de Informática em 17 de fevereiro. O Jornal do Brasil, em entrevista de Napoleão Mendes de Almeida publicada no dia 22 de fevereiro (1), também se refere ao assunto. A Folha deu capa do caderno Informática. Trata-se dos "corretores" ortográficos. 

Estadão JB abordam o tema acriticamente. A Folha, no caso mais cautelosa, faz críticas mornas, mas usa a palavra crucial: erros. Pois é. Os "corretores" estão cheios de erros. A falta de senso crítico tem sido a atitude mais freqüente sobretudo diante do mais usado de todos esses programas, o Microsoft Word, do poderoso Sr. Bill Gates e associados. Que é, até a versão incluída no Office 95, com perdão da palavra, uma bela porcaria. 

Vejam o que se escreveu no Estadão
"Uma das vantagens do computador sobre a máquina de escrever é a capacidade de apontar erros de ortografia. Nesse caso, o micro pode até sugerir palavras alternativas. Mas o Word vai além. Com o processador de textos da Microsoft é possível incluir em um dicionário pessoal palavras que, embora corretas, não são reconhecidas. Desse modo, quando as palavras de um texto não constarem do dicionário oficial, a lista de palavras cadastradas pelo usuário será levada em conta." 

Guardem a expressão "dicionário oficial". 

No JB
"Os corretores ortográficos, programas de computador que corrigem a grafia das palavras, são um instrumento cada vez mais difundido para diminuir os erros de português em textos." 

E, com erros, quanto mais difundidos mais erros produzirão ou reproduzirão. É assunto da maior gravidade. Não para mentes frívolas, bem entendido. 
Antes de passarmos à gravidade, vamos aos exemplos. 

Uso há anos editores de texto Word da Microsoft, em diferentes "versões" (2.0, 6.0, 7.0). Nos últimos tempos, tenho sistematicamente incorporado palavras que o "corretor" ortográfico da Microsoft desconhece. Facilita minha vida, porque não preciso acionar toda hora o comando "ignorar" desse programa ignorante. 

No início de março de 1997, a lista continha 2.189 vocábulos. Desses, cerca de 1.400 não são nomes próprios. Até aí, tudo normal, porque repositórios de palavras são incompletos por natureza. O que não é normal: 

1) A lista da Microsoft do Sr. Bill Gates seguiu durante vários anos a ortografia de Portugal, embora estivesse sendo vendida no Brasil, para a opção "Português do Brasil" (conferir em "Ferramentas", "Idioma"). 

2) Abrigava grafias erradas e formas de conjugação verbal erradas (tipo "poderia-se"), esvaziando o esforço de legiões de professores de português. Isto melhorou na versão do Office 95, mas centenas de milhares de pessoas ainda têm versões anteriores. 

3) Contém ainda hoje palavras inexistentes e omite palavras de uso corrente. Vamos ficar nas omissões. Das 1.400 palavras que não são nomes próprios, selecionei apenas 37 para dar uma idéia do desastre. Ei-las: 

adotar, afetar, agora, atração, atual, colônia, conosco, cotidiano, crônica, genocida, guerra, idéia, incontido, inercial, inibidor, itinerante, matriarcal, mim, máfia, neoliberal, nossa, objetivo, oficialismo, outrora paulista, por (prep.), pronto, refletir, sediar, suspeição, tablóide, terciário, tranqüila, treva, urbana, usa-se, vendagem.

Recapitulando: as palavras acima não estão no "corretor". Quando são escritas, nas versões mais modernas dos editores de texto, imediatamente aparecem sublinhadas em vermelho ondulante, para que o distinto usuário confirme-as ou as substitua. Notar que a seleção corresponde a menos de 3% das palavras que eu acrescentei ao "corretor" ortográfico da Microsoft (sem contar os nomes próprios). 

Dessas 37, três, bem conhecidas, lamentavelmente também não constam do Dicionário Aurélio: "genocida" (adj. s. 2g.), "neoliberal" (adj. s. 2g.), "sediar" (v., ter sede, estar instalado), todas encontradas noVocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa – Academia Brasileira de Letras, Rio de Janeiro, Bloch, 1981. 

Aurélio, diga-se de passagem, também não é a Brastemp que muitos imaginam, apesar de seus méritos. Eis alguns poucos exemplos de palavras inexistentes em sua versão eletrônica mais moderna: "formalização"; "modernizador"; "tanta" (apesar de ser usada na primeira abonação do verbete: "Nunca vi tanta dedicação"); "fielmente" (apesar de haver 198 palavras terminadas em "mente", na esmagadora maioria dos casos advérbios, e alguns de raro emprego, como arcangelicamente, farfalhosamente, irreverenciosamente, quentemente ou virgemente); "lhas" (aqui, o erro está no próprio verbete "lho", contração de "lhe" com "o", onde a indicação de flexão repete "lha", omitindo "lhas": "Flexão – lha, lhos, lha"; deveria estar escrito "lhas"), "tua" (sim, isso mesmo, o feminino de "teu"; esta, porém, existe no verbete). 

Leitor que teve a pachorra (ou terá sido curiosidade malsã?) de me seguir até aqui: firme, falta pouco. Falta denunciar a omissão de autoridades (que possivelmente se imaginavam patrióticas), de intelectuais e de jornalistas diante do fenômeno. 

Só a cegueira dos responsáveis pela política de informática desde a época da ditadura, seu despreparo, poderia ter-se acomodado com as agressões cometidas contra a língua portuguesa – um dos raros verdadeiros patrimônios comuns do povo (embora seu uso seja extremamente desigual) – por todos os programas de computador que aqui aportaram, sem tradução (acomodação, por isso mesmo, verdadeiramente criminosa), ou com tradução parcial ou defeituosa – em geral, defeituosíssima! 

Já temos problemas de ensino e de aprendizado. Os jornais (e revistas, emissoras de rádio e televisão, livros didáticos, páginas na Internet, literatura e subliteratura etc.) agridem todo santo dia a língua, que resiste precariamente, desfigurada, esfarrapada. Não estou me referindo à necessária vivificação da língua, que Caldas Aulete sabiamente já preconizava quando foi editado seu dicionário, há mais de 100 anos (2) , mas aos erros crassos, pura ignorância, criatividade zero. 

O prestigioso Estadão, por exemplo, passou muitos anos sem acentuar palavras proparoxítonas, devido a um problema de oficina gráfica (máquinas compradas no exterior sem a necessária adaptação para nossa língua portuguesa). 

Cada vez que um leitor, nesse longo período, lia uma proparoxítona que nunca tinha ouvido, forçosamente pronunciava-a mentalmente como paroxítona se terminada em "a" – fúlgida, por exemplo, "e" – ágape – ou "o" – âmbito -, ou como oxítona se terminada em "i" – álibi. (Com final em "u" eu não conheço proparoxítona, nem se encontra alguma entre as 1.301 palavras terminadas com essa letra, simples ou compostas, que oAurélio registra). 

Que medonho desserviço prestou o Estadão à língua pátria. E tinha, na época, tradição de se preocupar com o texto… 

Se o ataque à língua ocorre cotidianamente, imaginem então o tamanho do problema quando os "corretores" são vendidos cheios de erros clamorosos. E quando as pessoas que os apresentam imaginam que eles contenham um "dicionário oficial" (3), como fez o redator do Estadãocitado no início deste texto. Estamos feitos. 

Trata-se de um caso de sinal trocado. Bons vocabulários ortográficos ajudariam, e muito, a muita gente. Maus vocabulários prejudicam muita gente, e muito. Quantos são capazes de usá-los criticando-os? 

O mesmo se dirá dos dicionários. O melhor que existe no Brasil é o mencionado Aurélio eletrônico, que incorporou um corretor ortográfico(4). Mas ele custa R$ 150,00 reais. Quando se chega a um programa verdadeiramente útil (que, entretanto, pede e merece aprimoramento), consegue-se a proeza de tornar o produto eletrônico mais caro do que o impresso! 

Mas o que interessa aqui é que os meios de comunicação, que vivem de trabalhar com palavras (escritas ou faladas), calaram-se a respeito durante anos. E ainda não começaram a falar o que deve ser dito com toda a clareza: economias mesquinhas e pressa em contexto competitivo produziram danos profundos contra o conhecimento da língua pelos filhos do país e outros interessados.

[Mauro Malin, jornalista]

***

(1) Singular entrevista, em que o preceptista gramatical mais rutilante das últimas décadas reapresenta algumas de suas idiossincrasias e consegue realizar, entre outras, a proeza de citar, como bons autores em português, apenas Alexandre Herculano e Ruy Barbosa… Com todo o respeito que merece o venerando professor de latim e português e gramático metódico, cujos livros e artigos costumo consultar, para concordar ou, modestamente, divergir, há quase trinta anos: será falta de leitura, falta de memória ou falta de juízo? 

(2) "Só não admitem neologismos as línguas mortas. Uma língua pode morrer, mas não envelhecer" (F.J. Caldas Aulete, Diccionario Contemporaneo da Lingua Portugueza, Lisboa, Imprensa Nacional, 1881, vol. I, pp. XXII). 

(3) Não existe "dicionário oficial" nem "gramática oficial" no Brasil. O máximo a que se aventurou o governo foi o Vocabulário Ortográfico, da Academia Brasileira de Letras, cuja versão mais recente é a que citei acima. 

(4) O Lexikon, onde há, entre outros (como os casos de "lhas" e "tua" acima mencionados), um problema com o critério de maiúsculas e minúsculas das palavras compostas. O Lexikon pede, por exemplo, que se substitua Grã-Bretanha por Grã-bretanha, embora o topônimo esteja corretamente grafado no Aurélio. Sempre que há uma palavra composta, ainda que seja Brasil-África, ou Argentina-Brasil, o corretor aponta a ocorrência de um erro. 

P.S. – Como se pode imaginar, as palavras "acriticamente", "malsã", "defeituosíssima", "reapresenta", "cotidianamente" e "preceptista" também não estão no repertório do "corretor" ortográfico vendido pela Microsoft. Acrescentei-as a minha lista pessoal – que passou a ter 2.195 palavras – quando terminei de escrever este artigo… ("Preceptista" não tem registro no Aurélio. Mas o Vocabulário Ortográfico acolhe. Vem de preceptismo, imposição de preceitos, ou regras.)