Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Jornalismo de tiroteio

No processo histórico há sempre alguém perdido no meio de uma batalha cujo sentido não alcança. Há também os que têm percepção aguda e sabem apoiar-se nos fatos, quando não os criam. Entre os dois extremos, todas as gradações imagináveis. 

O clima do denuncismo é politicamente malsão. Não as denúncias em si (só possíveis graças à vigência do regime democrático), não a vontade de consertar, corrigir, sanear. Mas o clima, o ambiente político de tumulto, de produção cotidiana de fatos ou factóides novos. Nesse clima costumam emergir figuras que de outro modo não se destacariam. E aumenta a confusão dos mais ou menos desorientados. 

Por definição, não há como dissociar a imprensa do denuncismo. Nenhum jornalista tem a priori o direito de ignorar o tamanho da confusão em que está metido. 

Por definição, não sabemos onde o caso dos precatórios vai parar. Estamos condenados, como os remadores de Plutarco, a olhar para a popa enquanto impelimos o barco para a frente. Mas contemplar a história nos dá alguns instrumentos de reflexão quanto ao papel da imprensa. 

Fiquemos na República, e neste século. 

Em agosto de 1921, dois falsários ofereceram ao governador de Minas Gerais, Artur Bernardes, já lançado candidato situacionista à presidência da República, cartas forjadas em que ele supostamente chamava o marechal Hermes da Fonseca de "sargentão sem compostura" e referia-se aos militares assim: "essa canalha precisa de uma reprimenda para entrar na disciplina". Bernardes não cedeu à chantagem. Não quis comprar as cartas. Em outubro, o Correio da Manhã publicou em fac-simile uma das cartas, supostamente dirigida por Bernardes a seu correligionário Raul Soares. 

Foi nesse clima, com assembléias revoltadas no Clube Militar, que transcorreram as eleições de 1922. A questão política de fundo era o descontentamento dos chefes políticos gaúchos com o acordo que dava a Minas o mandato de 1922-26 e a São Paulo, na pessoa de seu governador, Washington Luís, o de 1926-30. Outros fatores – econômicos, sociais – alimentaram a crise, cujos momentos mais violentos foram as rebeliões militares de 1922 e 1924, quando o Exército chegou a bombardear a cidade de São Paulo. Mas é emblemático que a leviandade de um jornal influente tenha sido o marco inicial de uma crise à qual, como se sabe, Bernardes respondeu com o estado de sítio durante todo o seu mandato. 

Como se sabe, a Revolução de 30 derrubou Washington Luís. Como se sabe, brasileiros usando fardas se mataram na guerra civil de 32. Como se sabe, os conflitos entre estados e regiões foram um pretexto forte usado por Getúlio para dar o golpe do Estado Novo, em 1937, quando, como se sabe, o "Plano Cohen", forjado por um oficial fascista, Olímpio Mourão Filho, e amplamente divulgado, criou o ambiente para o governo obter da Câmara dos Deputados a aprovação do estado de guerra. 

Como se sabe, toda a onda de denuncismo depois da queda de Vargas, em 45, explorada pelo jornalista David Nasser, deu em rigorosamente nada. Como se sabe e nesta edição se rememora, Getúlio suicidou-se em 1954 após uma onda de denúncias em que quase todos os jornais deram-se as mãos. Como se sabe, o sinal para o golpe foram dois editoriais do mesmo Correio da Manhã contra o governo do presidente João Goulart: "Basta" e "Fora". 

Como se sabe, depois do golpe de 64 instituiu-se uma Comissão Geral de Investigações (CGI), chefiada por um marechal de nome Taurino (Estevão Taurino de Resende) para perseguir adversários políticos da ditadura militar. Como poucos sabem, o ex-presidente Juscelino Kubitschek foi arrolado num IPM. Levado para depor, um sargento-escrevente cumpre a formalidade de perguntar-lhe o nome. O ex-presidente responde: "Juscelino Kubitschek de Oliveira." O sargento: "Ku o quê?" Foi preciso tirar JK do Brasil para que ele não se suicidasse. 

Como se sabe, após a vitória democrática de 1982, o governador eleito de São Paulo, Franco Montoro, prometeu uma "devassa" contra seu antecessor, Paulo Maluf. Como se sabe, a devassa deu em nada e ainda forneceu a Maluf um atestado de "bons antecedentes" por exclusão. 

Como se sabe, o mesmo Antônio Carlos Magalhães de quem Maluf espera hoje socorro, para refrear desmandos da CPI de Requião, declarou em 5 de setembro de 1984: "Temos que eliminar para sempre da vida pública brasileira esse candidato [contra Tancredo Neves, nas eleições indiretas marcadas para janeiro de 1985] antipovo, ladrão, e que não representa a população brasileira". 

Como se sabe, Maluf declarou em seguida que já havia acionado seu advogado – não se chamava Saulo Ramos, mas José Aranha – para processar Antônio Carlos. Como se sabe, ambos, ACM – contra quem houve também, a seu tempo, pesadas denúncias – e Maluf, continuaram no proscênio. Como se sabe, dez anos depois o presidente Itamar Franco desmascarou publicamente, em pleno palácio, uma pantomima denuncista de ACM. 

Já se sabe mais do que o suficiente. Não se trata aqui de fazer ensaio historiográfico, de pressagiar conflitos armados, nada disso. Mudam-se os tempos, mudam-se os tiroteios. Trata-se apenas de reiterar que, se não há imprensa sem crise, não há crise sem imprensa. 

A imprensa que se cuide. O elenco deste tiroteio de holofotes, microfones e tinta preta já deveria bastar como escarmento: Paulo Maluf, Bernardo Cabral, Romeu Tuma, Roberto Requião, Espiridião Amin (que por lapso chamou inquérito de "inquisição", e trata cada depoente como "réu"), Eduardo Suplicy, Vilson Kleinubing, Antônio Carlos Magalhães, banqueiros, esquemas financeiros, funcionários traficantes de influência. Todos, gente de pele dura, curtida, que não perde o sangue-frio. Não exatamente uma tropa de escoteiros.