Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A cada mídia o seu Hamlet

O CLONE

Gilson Caroni Filho (*)

O folhetim televisivo já foi tema de tão infindáveis quanto infrutíferas discussões. Instrumento político ou mero entretenimento? A alternativa nos parece pobre pela falsa antinomia que comporta. Desde quando algo elaborado para um simples jogo ficcional não pode reforçar uma visão de mundo? Não estamos aqui a dar desmedido crédito aos adeptos de teses manipulatórias, que vêem conspirações semiológicas em cenários e diálogos. Muito menos alimentamos a ilusão de um uso redentor da telenovela, a ponto de imaginá-la como núcleo incentivador de consciências críticas. Já estamos bem grandinhos para ingressar num "CPC da UNE " em VHF. Mesmo se tratando de bens simbólicos, é no marco de um processo industrial que devemos interpretá-la.

Os ingredientes do gênero são conhecidos.Tramas capazes de capturar a atenção do público, personagens que gerem empatia imediata, elenco heterogêneo, uma boa dose de maniqueísmo e edição competente. Só isso? Com média de 53 pontos no Ibope, a novela O Clone apresenta, além de um geneticista em "conflito ético" e sua criatura, mulheres árabes à beira de um ataque de nervos, fundamentalistas corâmicos a ameaçá-las com "as chamas do mármore do inferno", harams (pecados) de diversas naturezas e dependentes químicos de boa cepa. Há ainda o núcleo de suburbanos que habitam um "musical" em São Cristóvão e casais de classe média em conflitos permanentes. Acabou? Perpassando todas as tramas ? da clonagem que dá o título à novela às demais que se desenvolvem paralelamente ?, talvez o motivo central do sucesso de audiência esteja no recorrente etnocentrismo e nas pitadas de preconceito classista que dão "graça e sentido" aos personagens pobres. Ao reforçar mecanismos existentes na formação social para a qual destina seu produto, Glória Perez legitima esteticamente o olhar dominante sobre as classes subalternas e consagra a percepção caricata de uma cultura não-ocidental. Gol de placa da autora, sob o sorriso complacente de seu público-alvo. Ou seria cúmplice?

Segundo Summer, "etnocentrismo é a visão de mundo na qual o centro de tudo é o próprio grupo a que o indivíduo pertence: tomando-o por base, são escalonados e avaliados todos os outros grupos". Vejamos como Glória constrói seu universo mulçumano. Do Marrocos importa a dança, mas não os valores. Dos intérpretes do Alcorão, uma ranhetice contra a licenciosidade sexual do Ocidente. Nenhuma palavra sobre as estruturas sociopolíticas que os orientais tanto condenam. Das mulheres, uma mescla de libido em transe com subserviência cega ao provedor. As exceções são as disfuncionais. Tanto a híbrida Jade, formada no Ocidente, deformada no enevoado "lugar-nenhum" árabe, quanto a histriônica Nazira, dividida entre os preceitos da tradição e suas ambições casamenteiras, são ovelhas desgarradas a merecer o olhar severo de Alá e dos machos que o seguem. De tão caricatural, a novela deverá causar fúria às sempre citadas feministas do Cairo.

Os homens árabes merecem tratamento exemplar: ou são patéticos nas suas crenças ou movidos por um mercadejar incessante. O distinto público deve ficar tranqüilo. Daquelas plagas, Osama bin Laden não recruta um só quadro e, tirando o passional marido traído, dificilmente haverá alguém com vocação para explodir por qualquer causa.

Deixemos que o discurso da (in)desejada Jade, mais que nossas ilações, desnude a estrutura etnocêntrica da novela. Transcrevamos o que ela disse no capítulo que foi ao ar no dia 6 de abril:

"Nunca fui ocidental o suficiente para andar com as minhas próprias pernas. Nunca fui mulçumana o bastante para aceitar o que as pessoas determinaram para mim." Ante esse dilema, só nos resta a constatação de que cada época tem o Hamlet que merece. Ou seria cada mídia?

Os intérpretes do Alcorão estão ali para impedir que o verdadeiro amor se efetive. Sem véu, mesquita ou xador. Que se realize na única dimensão aceitável e compreensível: romântica e, acima de tudo, ocidental.

Bart, Jade e os macacos

Se o etnocentrismo é evidente, não menos pouco elaborado é o preconceito classista. Mulheres de rebolado provocativo e propensas a escândalos rasteiros, um trio que é movido a pequenos golpes e um candidato a gigolô que passa o dia a provar pastéis feitos no boteco sujo de seu objeto de conquista, convivem diariamente entre gritos e gargalhadas. Como são semelhantes o universo de O cortiço, de Aluísio Azevedo, e os pobres de Glória Perez. Sempre regados a cerveja e samba, os cantantes de São Cristóvão não têm preocupação alguma. Talvez sua existência se resuma ao bordão "não é brinquedo, não". Que soa tão raivoso como resignado.

Tal como em outras novelas, os dilemas existenciais a mobilizar o telespectador estão na classe média alta. Seus desejos, anseios e jogos amorosos merecem melhor resolução dramatúrgica. A dependência química de uma das personagens desse estrato desencadeia verdadeira "prestação de serviços", com ex-viciados reais dando depoimentos sobre os dissabores vividos no mundo das drogas. Aí o buraco é mais em cima e o "entretenimento" tem função pedagógica sem cair em moralismos vazios ou expedientes piegas.

Muito bem, talvez estejamos sendo excessivamente críticos. Quem sabe a nossa chatice seja desproporcional ao objetivo de uma mídia que pretende "apenas" vender um produto. Se reforça preconceitos, paciência, a demanda é do distinto público. Se assim for, estranhamos a reação ao episódio de um seriado produzido pela Fox que ainda não foi ao ar no Brasil. Nele, os Simpsons visitam o Rio, sofrem assaltos praticados por meninos de rua, são seqüestrados por motoristas de táxi e atacados por macacos que vêm de uma favela. Foi o suficiente para o secretário municipal de Turismo ameaçar processar a Fox Cable Internacional.

E se dissermos que a visão da produtora americana é movida por etnocentrismo? Preconceito em relação aos países pobres e que não contam para a configuração da nova ordem. Ou seja, a mesma matéria-prima usada por Glória Perez para tornar mais agradáveis as noites na TV Globo. Cria-se um ponto de inflexão: ou repensamos a mídia e seu processo criativo ou oficializamos o casamento de Bart Simpson com Jade, deixando a consciência crítica trancada no táxi com os macacos favelados? Mais do que nunca, caro leitor/telespectador, "você decide".

(*) Professor das Faculdades Integradas Hélio Alonso, Rio