Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

A candidata e o repórter

A BELA E A FERA

Sandra Seabra (*)

Ainda não pude avaliar se a entrevista realizada por Kennedy Alencar ("Rita admite renúncia em caso de problema", Folha de S.Paulo, 24/5/02, pág. A6) com a candidata a vice-presidência na chapa de José Serra, a deputada Rita Camata (PMDB-ES), prestou um serviço ou desserviço aos leitores/eleitores.

É verdade que Camata poderia ter respondido que sim, que possivelmente a escolha do PSDB tenha recaído sobre ela por ser mulher e bonita, afinal estamos em um país onde a eleição se decide na televisão e, mais do que nunca, uma imagem vale mais do que mil palavras ou propostas; em um país onde a mídia, essa mesma que paga o salário do repórter, aprova e reforça o culto à beleza física. Então, nada mais apropriado que uma candidata bela.

Também é verdade que ela poderia ter dito que, além de mulher e bonita, tem um currículo invejável, com quase duas décadas de vida dedicadas ao exercício no Legislativo e, a partir daí, engatar na descrição de uma série de feitos seus.

Ao ser questionada sobre a autoria da frase "de salto alto e maquiagem, só eu", poderia ter sido direta, algo como: "Sim, é do Nizan e eu confio no trabalho dele". Ou: "Sim, o Nizan sugeriu e eu gostei. Porque remete ao novo, ao original, ao poder feminino no jogo político". Mas não, ela caiu no jogo do repórter, e parecia estar fazendo a defesa da Carla Perez.

À pergunta-armadilha acerca da desistência de seu marido, quando governador do Espírito Santo, de fechar o jogo do bicho diante de pressões de bicheiros e a infeliz relação feita pelo repórter com o narcotráfico no Rio de Janeiro (como se algum político, polícia ou qualquer instituição tivesse, no Brasil atual, poder para erradicar o jogo do bicho e o narcotráfico), ela poderia ter seguido em seu raciocínio iniciado com "é uma analogia meio louca essa…". Bem, ela tentou!

Também é verdade que, após a interferência da assessora, ao ser questionada se comentava ou não declarações do marido, ao invés de sussurrar ela poderia ter virado o jogo, mandado às favas a assessora, o marqueeteiro, e ter dito: "Comento sim, acho que meu marido é um excelente senador", e desfiar o rosário com todos os feitos do marido.

À batelada de perguntas sem sentido do repórter sobre dietas, cigarro, idade e, pasmem, virgindade, ela deveria continuar rindo (o texto frisa suas risadas como reação a algumas perguntas) e devolver a pergunta ao repórter: "Se no meu lugar estivesse o Pedro Simon, você questionaria seus vícios, suas vaidades?".

(É muito engraçado imaginar o repórter perguntando ao senador Simon o que ele pensa da virgindade. Quem sabe ousar um pouco mais e perguntar: "O Sr. casou virgem?")

Mas não, ela optou por responder! Aliás, para ter uma assessora como essa, era melhor um assessor que, como homem, talvez para parecer moderno, não se atrevesse a interferir tão ostensivamente na entrevista. Essa assessora ainda pode mudar o rumo da história, apoiar a deputada, chegar a um consenso entre as determinações da cúpula masculina e o estilo da deputada. Arranjar uma maneira para que Camata se sobressaia nessa mixórdia. Mas seria um milagre ? afinal, de tudo o que falam sobre as mulheres, uma afirmação é verdadeira: falta solidariedade entre nós.

E falta vergonha na imprensa brasileira.

Não sou peemedebista. Graças a Deus e a mim mesma, sou petista. Mas sou mulher! E embora jamais vá mudar meu voto por uma questão de gênero, se a desistência de Roseana Sarney me aliviou, essa "fritada" do repórter para cima de Rita Camata soa tendenciosa. Assim como o título, que remete ao episódio Roseana Sarney. Faz até suspeitar de que Camata tenha tratado de outros assuntos mais interessantes, que foram devidamente cortados, o que às vezes pode acontecer por falta de espaço.

Sou jornalista e essa entrevista me trouxe dupla frustração. Primeiro, a lembrança de infindáveis reuniões de pauta, com maioria masculina. Momentos em que a hora da "descontração" era providenciada por meio de piadas machistas, às vezes racistas. Por sinal, na época da eleição da Marta Suplicy, as piadinhas foram fartamente utilizadas a ponto de fazer avançar o horário das reuniões. Uma farra só! Nem é preciso dizer que tamanha "descontração" acaba por transpirar na edição das matérias, nos títulos e na angulação de pautas sobre o universo feminino. Obviamente não posso dizer que isso ocorre em todos os meios de comunicação. Entretanto, a entrevista aqui comentada é prova contundente de que a sociedade está longe de abandonar o ranço machista.

A segunda frustração é a de ver o despreparo de uma mulher que começou na política aos 24 anos e, aos 41, não sabe convencer, dobrar um repórter e colocá-lo em seu lugar.

Mas há esperanças. Temporariamente de "férias forçadas" do jornalismo, resolvi dar aulas em um dos cursos oferecidos pelo Senac para jovens que, tendo terminado o Ensino Médio e ainda sem fôlego e recursos para enfrentar o vestibular, tentam aperfeiçoamento para aumentar as chances no mercado de trabalho. Minha função é estimulá-los a buscar informações por meio de leituras, sobretudo de jornais diários. Discutimos a entrevista. E uma garota de 17 anos abriu a discussão dizendo: "É, mulher no poder é bom, mas não para ficar de enfeite". E outra garota arrematou: "É… mas esse repórter fez tanta pergunta besta!".

(*) Jornalista