Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

A chocante parceria Globo-Folha

“O presidente da Venezuela, Hugo Chávez, tem encontro marcado terça-feira em Nova Iorque com o presidente Bill Clinton, aproveitando a sessão de abertura da Assembléia Geral das Nações Unidas, na qual deverá discursar. No mesmo dia Chávez verá empresários e congressistas americanos, e na quarta-feira viajará a Washington para reuniões com representantes da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, do Colégio Interamericano de Defesa e do Conselho Permanente da Organização dos Estados Americanos. Na pauta, um tema principal: a ‘imagem distorcida’ do processo político venezuelano.

Para os críticos, especialmente nos Estados Unidos, Chávez concentra poder em excesso e caminha para a ditadura, na mais estável democracia latino-americana. ‘É uma campanha selvagem de descrédito, que parte das oligarquias que jogaram o país numa situação traumática de exclusão e corrupção e agora vêem seus privilégios ameaçados’, disse Chávez em Caracas. ‘Convido a que nos visitem, analisem e tirem suas próprias conclusões.’

Crise – O governo considera urgente a mudança da imagem do país para conter a fuga dos investidores estrangeiros. O economista venezuelano Luis Henrique Ball, em artigo no diário El Universal, não vê motivo novo para esta fuga, que atribui à profunda crise venezuelana. Crise que não é produto de um evento fortuito. ‘É resultado da aplicação sistemática de um modelo de desenvolvimento equivocado, aliada a um péssimo gerenciamento das finanças públicas’, afirma. Ele reconhece que a incerteza da mudança e os conflitos políticos agravaram a situação. ‘Mas não podemos culpar o atual governo nem a Assembléia Constituinte pela magnitude da recessão. Esta começou há muitos anos.’

Ball situa em 1979, quando começou a desnacionalização da economia, o início das atribulações. ‘O processo de perda do controle nacional sobre as mais importantes atividades produtivas – a exploração do petróleo foi dividida com o capital transnacional, indústrias de aço e cimento, telecomunicações e bancos foram parcial ou totalmente privatizados – resultou em que a dívida externa quadruplicou, a capacidade produtiva caiu de 97% para 49%, o desemprego subiu de 4,3% para 20%, a inflação saltou de 8% para 40% (a moeda passou de 4,30 bolívares para 620 bolívares por dólar), o salário real caiu à metade e o patrimônio público e privado teve perda de quase 60%.’

Para o empresariado local, as disputas políticas entre Constituinte (governista) e Congresso (oposicionista), que duraram semanas, foram as grandes responsáveis pela má imagem do país. Em entrevista ao diário espanhol El País, Vicente Brito, 82 anos, presidente da Fedecámaras, que reúne 350 mil empresas, acha o processo de reformas de Chávez democrático, que deveria atrair investimentos estrangeiros ‘num país que é rentável, um paraíso’.

Brasil – Empresários brasileiros, por exemplo, concordam. Missão de 35 executivos viaja esta semana a Caracas, visando aumentar os negócios bilaterais nos setores de máquinas, metalurgia e mecânica para US$ 2,8 bilhões em 2000. Mas Vicente Brito quer medidas urgentes que atraiam mais estrangeiros.

Norair Hulian, articulista de El Universal, ironiza a preocupação com os capitais externos. ‘Os venezuelanos têm US$ 100 bilhões depositados no exterior’, diz. ‘Nenhum governo, inclusive o atual, se interessa em estender um tapete vermelho aos capitais nativos.’

‘A estabilidade é urgente, e também uma política econômica coerente de longo prazo’, insiste Brito. ‘De 70% a 80% das empresas estão no vermelho’, diz. Muitas fecham as portas. A Fiat acaba de anunciar que vai deixar o país. Brito defende também que os 20% da população venezuelana hoje na classe média sejam ampliados para 65% (algo próximo dos Estados Unidos), o que multiplicaria o consumo e elevaria o padrão de vida. O temor de Brito é que quando as reformas finalmente forem postas em marcha o setor privado esteja tão debilitado que se termine adotando um modelo econômico estatista. A nova Constituição estará pronta em 7 de outubro, mas ainda será submetida a referendo.

A preocupação com a imagem levou na semana passada três deputados da Constituinte, dois da oposição e um da situação, aos Estados Unidos, para maratona de visitas a funcionários do Departamento de Estado e a congressistas democratas e republicanos. Isaías Rodríguez (do Movimento Quinta República, de Chávez), Ricardo Combellas e Claudio Fermín contaram que em seu país ‘a Justiça não funcionava, se pisoteavam os direitos humanos, havia corrupção e impunidade’.

‘Para que as mudanças funcionem, porém’, disse Rodríguez, ‘a Venezuela precisa do apoio de todos os setores, inclusive dos partidos tradicionais e dos militares’. O problema é que Copei e AD, os partidos tradicionais, têm enviado emissários aos Estados Unidos para dar entrevistas qualificando o governo e a Constituinte de golpistas.”

Esvaziamento – E os Estados Unidos não estão sabendo interpretar a situação venezuelana. Estudo do Conselho para Assuntos Hemisféricos (Coha), organização sediada em Washington especializada em América Latina, afirma que a Casa Branca por enquanto está confusa: oficialmente apenas apreensiva, internamente teme que Hugo Chávez se transforme num Fidel Castro.

Para o Coha, essa confusão ocorre porque foi esvaziado o Birô de Assuntos Interamericanos, agora ocupado por pessoal de nível médio sem visão do contexto regional, preocupado apenas com relatórios econômicos quadrimestrais. Na administração Clinton, o Tesouro e o Escritório de Comércio ditam a política regional da Casa Branca. ‘A economia virou obsessão burocrática, que vê na América Latina povos compostos por homo economicus’, diz o estudo.

Erro – Os analistas do Coha afirmam que ver Chávez como um caso isolado é um erro ‘lamentável’ de Washington: ‘Ele foi levado ao poder pela revolta dos venezuelanos com o desemprego, os rombos financeiros, as violações aos direitos humanos e os infamemente corruptos sistemas político e judiciário’, presentes em outros países. Diz o Coha que a Casa Branca não leva em conta o ponto de vista dos pobres da Venezuela – os dois terços que elegeram o presidente – nem a história dos últimos 20 anos, em que o país, rico produtor de petróleo, mergulhou na pobreza.

Segundo o estudo, o Departamento de Estado, que nunca teve problemas em cooperar com ‘democracias’ como a do Chile de Pinochet ou do Peru de Fujimori, não se importava se a venezuelana ‘era mais aparente que real’. ‘O governo da alegada ‘mais antiga democracia da América Latina’ abusava do nepotismo, da corrupção e das barganhas venais, alternadamente dominado desde 1958 pela social-democrata AD e pelo democrata-cristão Copei. Aos eleitores eram oferecidos empregos em troca de voto, enquanto a maioria agonizava na pobreza.’

O Coha também questiona a fama de respeito aos direitos humanos da antiga Venezuela: ‘De outubro de 1997 a setembro de 1998, a polícia venezuelana matou 104 pessoas, torturou 40 e tratou desumanamente 313 sob sua custódia’, diz o trabalho. Mas Washington continuou contente, segundo o Coha porque o pagamento dos juros e o petróleo continuavam a fluir.

Tiro – A instituição considera ridículo prever-se um cenário em que Chávez buscaria criar uma nova Cuba. Dependente das divisas do petróleo (75% de suas exportações) e do aval do FMI para empréstimos externos, a Venezuela não pode assustar investidores nem multinacionais. ‘Seria como Chávez dar um tiro em cada pé’, diz.

O Coha acredita que se Washington tivesse noção do que ocorre na Venezuela estaria preocupada com outros sinais. Por exemplo, a tendência de Chávez a nomear militares para altos cargos. ‘A história da América Latina mostra que o envolvimento de militares no governo é que ameaça as instituições democráticas.’

O estudo pergunta: ‘Terá Chávez sabedoria para ver este perigo a tempo? Com disciplina, ele poderia ser o precursor de um novo modelo econômico para o hemisfério – capitalismo com coração, economia com crescimento equânime e justiça social. Mas se falhar seu país pode cair na guerrilha, replicando a tragédia da vizinha Colômbia.’”

“Chávez faz ofensiva para mudar imagem”, copyright Jornal do Brasil, 19/9/99

 

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