Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

A derrota do Diabo

FÉ NA MÍDIA

Entrevista de Marcia Benetti Machado a Victor Gentilli

Jornalista e professora, Marcia Benetti Machado doutorou-se na PUC de São Paulo em junho deste ano com uma tese intitulada Deus vence o Diabo. Como subtítulo, "O discurso dos testemunhos da Igreja Universal do Reino de Deus". Nesta entrevista, Marcia Machado fala de sua pesquisa.

De onde surgiu a idéia de pesquisar a Igreja Universal?

Marcia Benetti Machado – Eu sempre preferi a ciência, a política e a filosofia à religião. Em determinado momento, meados dos anos 90, comecei a ficar muito incomodada com o discurso da Igreja Universal. Percebi que meus argumentos não eram capazes de responder à força daquele discurso e que certamente era na esteira desse tipo de incapacidade que a igreja crescia. Decidi então que iria me debruçar sobre esse discurso para tentar entendê-lo. Pesquisar a Igreja Universal era uma necessidade pessoal que se encaixava muito bem no meu projeto de aprofundar os estudos do discurso. Os discursos dicotomizados, maniqueístas e reducionistas sempre me seduziram. Sem contar que estudar a mitologia do Diabo era fascinante.

Como a Igreja Universal configura o seu ideário? Se é que podemos chamar assim, a Universal se colocaria em que posição no espectro dos costumes e da moral?

M.B.M. – Toda religião é ideológica, portanto podemos falar de um ideário. Li muitos livros de ideólogos da Universal, entre os quais desponta o bispo Edir Macedo. Identifico três pilares, que sustentam todos os movimentos discursivos da igreja: as idéias de salvação, cura e prosperidade. Todas elas preenchem lacunas de outras religiões, especialmente do catolicismo, e são estratégicas para a expansão da Universal. A salvação não é mais privilégio a ser desfrutado apenas depois da morte. Ser salvo no Juízo Final é certamente uma promessa da igreja, mas a salvação está estreitamente relacionada à felicidade que o indivíduo pode conquistar ainda hoje, no plano terreno. A cura, por sua vez, mobiliza todas as dores humanas. Ela abrange não só a cura física, mas também a dos sofrimentos emocionais. O fim das desavenças familiares e do desejo de suicídio, por exemplo, estão no mesmo nível do fim das doenças físicas. Por último, o apelo à realização financeira e ao sucesso é extremamente forte na Universal.

Quanto à questão moral, a Universal é uma igreja conservadora que apenas parece ser liberal. Não cria normas sobre roupas, corte de cabelo ou uso de maquiagem, não impõe restrições e por isso parece liberal. Mas abomina o homossexualismo, visto como uma ação demoníaca, e posiciona a mulher como a responsável pelo sucesso do casamento. A Universal faz um discurso de fraternidade que tem muito apelo, mas é extremamente cruel com a diferença.

Como você vê o poder da palavra no uso de hoje das igrejas neopentecostais?

M.B.M. – É impressionante. Claro que a palavra ocupa um lugar central desde o início do protestantismo, como um retorno à essência da pregação. Mas parece estranho que no mundo de hoje, híbrido, imagético e veloz, a palavra tenha tanto poder. Eu reconheço nesse movimento a busca de respostas para questões existenciais: quem sou, o que faço neste mundo, quais são as razões de minha vida e de minhas dores, como percorro minha trajetória e construo minha identidade. Pode parecer paradoxal, mas é exatamente a lógica contemporânea fragmentária -
pós-moderna, se você quiser -
que acaba conferindo tanto valor à palavra. Mas não podemos esquecer que a palavra do discurso neopentecostal não é uma palavra qualquer: ao mesmo tempo em que ela toca no centro da fragilidade humana, ela também constrói um discurso fácil de ser circunscrito, um discurso circular e repetido à exaustão.

Qual a lógica do discurso da Universal?

M.B.M. – É uma lógica complexa, porque reside sob a aparência de uma excessiva simplicidade. O homem é dotado de livre-arbítrio, pode escolher seguir os preceitos de Deus ou não. Deus, por sua vez, está disponível para o homem, desde que este de fato queira suas benesses. Se o homem chamar e tiver fé, Deus atenderá. Bem, mas qual é a medida da fé? Não sabemos. O indivíduo pode pedir a Deus que atenda seus desejos e ainda assim nada acontecer. Nunca será culpa de Deus, e sim da falta de fé. Entra aí um segundo elemento complicador, que é a expressão da fé por meio do sacrifício financeiro. Doando mais do que poderiam, as pessoas "desafiam" Deus a cumprir os seus desejos. É uma espécie de "eu fiz a minha parte, agora faça a sua". Deus vira uma espécie de refém do fiel. Mas ainda assim pode ser que nada aconteça. De novo voltamos à falta de fé. Fica fácil para o bispo ou pastor convencer o adepto de que precisa crer mais. E desejar mais, pedir mais, doar mais.

Uma segunda linha da lógica da Universal diz respeito ao embate entre Deus e o Diabo. O que está fora do círculo sagrado traçado pela Igreja está sob o domínio de Satanás. Isso inclui literalmente tudo que é diferente ou o que podemos chamar de "outro": ateus, agnósticos, católicos, judeus, muçulmanos, espíritas, umbandistas, budistas, até mesmo os evangélicos de outras denominações. Absolutamente tudo. A demonização da diferença é altamente perigosa, porque elimina a tolerância. Acho que não estamos devidamente atentos para o risco que a expansão dessa lógica traz. Ficamos sem saber como combater esse discurso, porque não temos armas para enfrentá-lo. Tudo que dissermos poderá ser rebatido como demoníaco. Enquanto isso, a intolerância se instala.

Qual a diferença entre uma salvação futura e uma salvação agora?

M.B.M. – A morte é a maior angústia humana. Podemos crer em muitas coisas, mas crer na vida após a morte ainda é a única idéia em que podemos nos agarrar para enfrentar a dor da perda de quem amamos e o abismo de nosso próprio futuro. É duro pensar que a morte é o fim da existência. O catolicismo lidou com isso prometendo a salvação eterna para os justos, os humildes, os sofredores e os solidários. É a recompensa pela bondade e pela abnegação. Para a Universal isso também é importante, porque justifica a existência de Deus e de seu paraíso. Mas não basta. É preciso que o indivíduo se reconheça como uma pessoa especial, tocada pela mão de Deus, enfim, como uma pessoa "salva", que tem Deus no coração ainda nesta vida e o carregará depois dela. A diferença, portanto, é de perspectiva. Enquanto a salvação futura é apenas uma promessa, a salvação agora é um sentimento, uma convicção, uma certeza que ajuda a viver.

Quem não adere é endemoninhado? Como é esta lógica?

M.B.M. – Para a Universal, quem não adere a ela está sob o domínio do Diabo. Mas vale frisar que o inimigo não é o indivíduo possuído, e sim o Diabo que se apossou dele. Expulso o Demônio, o indivíduo pode ser salvo. Essa é a meta da Universal, arrebanhar os possuídos e libertá-los. Também é bom lembrar que, dentro dessa lógica, quem duvida da existência do Diabo também está sob seu domínio, ainda que não saiba ou não reconheça. O que inclui todos os que questionam a igreja, como eu.

Até que ponto o uso da Universal prejudica ou beneficia a Rede Record?

M.B.M. – Penso que a Rede Record conseguiu se posicionar diante da contradição de pertencer a uma igreja, e por isso ter um espaço precioso para a pregação, e ao mesmo tempo ser uma empresa que deve obedecer às leis do mercado. Seu quadro contempla programas tanto para os fiéis -
e principalmente para os futuros fiéis -
quanto para o público que passa ao largo das questões religiosas. Mas, de modo geral, a associação entre a TV e a igreja é inevitável, e sempre será muito difícil "descolar" a imagem da Record da figura controvertida do bispo Edir Macedo. É uma tarefa árdua para a área de marketing, mas vem sendo resolvida razoavelmente bem.

Fora da mídia, este tipo de igreja se sustentaria?

M.B.M. – Talvez sim, mas não cresceria em ritmo tão impressionante. O rádio e a televisão, especialmente, são veículos de massa que podem atingir os solitários, os desesperançados, os que se sentem abandonados e precisam de conforto espiritual. A mídia também é companheira na solidão e ajuda as pessoas a se reconhecerem nos outros e a encontrarem "suas tribos". Eu acredito que a Universal e outras igrejas neopentecostais utilizam a mídia de forma sábia. Embora o uso não seja sofisticado em termos de exploração dos recursos dos meios, o discurso é tocante, emociona e mobiliza quem de algum modo não sabe mais em que porta bater. O Estado, a ciência, a política e a filosofia não oferecem respostas para essas pessoas. E quem não consegue aceitar aquilo que Cornelius Castoriadis chamou de "abismo", o "sem fundo" da existência, fatalmente encontrará nessas igrejas um caminho a seguir, uma idéia a defender, um motivo para viver.

Existem outros casos de programas semelhantes de outras igrejas evangélicas?

M.B.M. – As televisões e as rádios têm uma série de programas religiosos com a mesma configuração discursiva dos programas da Igreja Universal. Basta rolar o dial e você vai se deparar com um bispo ou pastor pregando, com rituais de exorcismo e com fiéis prestando depoimentos. Eu costumo dizer que a Igreja Universal, por ser pioneira, criou uma espécie de "franquia discursiva". Todos a imitam, na retórica, na entonação, no alto teor de emotividade. Se o bispo Edir Macedo tivesse patenteado seu discurso, estaria ainda mais rico. A Renascer em Cristo é um bom exemplo, embora tenha um tom mais refinado e um cenário mais sofisticado. Lembro que uma vez vi a principal pastora dessa igreja dizer na televisão que Jesus era "uma coisa quentinha". Nenhum católico se atreveria a tanto, mas o exemplo mostra o nível de intimidade que as igrejas neopentecostais imprimem à relação entre os fiéis e o universo sagrado.

Como se deu o desenvolvimento das igrejas neopentecostais no Brasil?

M.B.M. – Os historiadores identificam três "ondas" no pentecostalismo brasileiro. A primeira surge por volta de 1910, com a chegada da Assembléia de Deus e da Congregação Cristã. A segunda acontece nas décadas de 50 e 60, com uma pulverização de igrejas. A terceira se dá a partir dos anos 70, e é aí que se incluem as neopentecostais. A Igreja Universal do Reino de Deus é criada em 1977, tem portanto apenas 23 anos. Com ela foram criadas muitas outras. Se olharmos a conjuntura brasileira, veremos que esse movimento se concretiza em um universo de despolitização e de expansão dos meios de comunicação. Também inclui uma grande parcela da população iletrada, já que sua força está na cultura oral. É difícil prever se essa onda sofrerá um refluxo com a intensificação do debate político ou se crescerá junto com o aumento das desigualdades sociais. Eu tenho apostado nessa última opção.

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