Saturday, 27 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

A epidemia e a guerra

MÍDIA & DENGUE

Muniz Sodré (*)

Na foto, o militar exibe numa das mãos o frasco com o inimigo aprisionado, um mosquito Aedes egypti. Várias dessas cenas repetiram-se um pouco por toda a mídia ? jornais, revistas, televisão. Na Folha de S.Paulo (7/2), essa mesma imagem figurou na primeira página, sob o chapéu "guerra". A dengue tem sido conotada pela imprensa como uma guerra verdadeira, com inimigo, tropas, armas e batalhas. Até mesmo um movimento de mobilização de civis ? 480 mil voluntários, 70 mil guardas sanitários, soldados do exército e marinha, bombeiros e servidores da Defesa Civil ? foi batizado como "Dia D".

Até certo ponto, nada demais. Comparações e metáforas são freqüentes em textos publicitários e campanhas públicas. A idéia de uma guerra contra a dengue parece socialmente bem aceita.

O problema começa quando a imaginação publicitária confunde a informação jornalística. Assim, quando se faz do Aedes egypti (mosquito de poder de ataque limitado a curtos períodos do dia e com capacidade de vôo inferior a dois metros de altura) uma espécie de inimigo público número 1, está-se reificando um processo e escamoteando-se as suas causas. O mosquito termina colocado na mesma série paradigmática e negativa do traficante de drogas, do assaltante de bancos, do estrangeiro predador etc.

A dengue (ou o dengue, como queiram) não é uma doença assim como, digamos, uma gripe ordinária, ainda quando seja esta muito forte ou perigosa. Por quê? Porque se trata de uma doença social, epidêmica, com causas político-sociais. O mosquito não é, com efeito, a causa única e exclusiva da doença, mas o seu agente transmissor. As causas devem ser buscadas no conjunto de fatores de natureza sanitária, administrativa e política. Em outras palavras, o mosquito tem cúmplices por omissão.

Como os sanitaristas não se cansam de repetir, o agente transmissor pode estar em toda parte, até mesmo no Primeiro Mundo. O problema não é a sua existência pura e simples, e sim a sua proliferação ? portanto, a sua "incidência" sobre o povo ? devido a uma falha sanitária, conseqüente à incúria político-administrativa. Em grego, os dois termos que compõem a palavra epidemia (epi+demos = sobre o povo) falam de um relacionamento social: aquilo que incide sobre o outro diretamente, por contágio de proximidade e mediações políticas, é epidêmico. Pode ser uma relação humana ou uma enfermidade.

Cortina de fumaça

Há muito tempo, os milhares de mata-mosquitos da Fenasa demitidos pelo governo federal, muitos dos quais chegaram a montar um longo acampamento de protesto na Cinelândia, centro do Rio de Janeiro, advertiam sobre a possibilidade de epidemia por falta de responsabilidade política para com a preservação da cidade. Vale lembrar que o ex-ministro da Saúde Adib Jatene defendia a CPMF como um recurso para a erradicação do Aedes egypti. E ainda no ano passado, a médica e deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ) prognosticava a ocorrência de uma epidemia de dengue no Rio. O que fez o governo? Concentrou-se no que dá boas imagens midiáticas e garante plataformas publicitárias seguras.

Aqui se densifica o problema. É como se o mundo das imagens, televisivas ou escritas, fosse a própria realidade histórica. O maior volume de informações parece fazer-se acompanhar de um aumento exponencial da mitificação, e o déficit de ação político-racional busca compensação no emocionalismo difuso da retórica midiática, que vive de figuras tecnicamente adequadas.

Em suas irradiações, o fenômeno envolve governantes, jornalistas e grande público. A metáfora da "guerra" é tomada como a coisa real. Mas é tão animador assistir-se à mobilização da sociedade quanto soa estranho o anúncio de um "panelaço" contra a dengue, isto é, contra o mosquito, o grande inimigo, a quem pelo visto se atribuem bons ouvidos.

Esse "inimigo", semiotizado como vilão de filme-catástrofe norte-americano, serve para desviar os olhares que politicamente estariam dirigidos aos grandes responsáveis, instalados em seus gabinetes de governos e de fato preocupados apenas com o processo eleitoral. Uma vez mais, como no caso do racionamento de energia, o povo é midiaticamente adulado como "herói" de uma "guerra&qquot; de fancaria, em razão de um problema sobre o qual não tem responsabilidade alguma.

Um jornalismo argumentativo ? aquele voltado não para ajudar o leitor a "matar" o tempo, mas para instalá-lo criticamente ? deveria poder levantar questões politicamente pertinentes a um problema como essa epidemia de dengue em curso. A mitificação generalizada, apenas sedutora, reduz a realidade complexa a dicotomias fáceis (amigo/inimigo, bom/mau etc.) e contribui para esconder causas embaraçosas para a coalizão dominante.

É assim que se bloqueiam a inteligência das perguntas e a operacionalismo das informações junto às comunidades concretas. "Guerra" é, no fundo, uma cortina de fumaça midiática mais eficiente na mistificação das consciências votantes do que as muitas toneladas de fumacê larvicida contra o mosquito nas ruas da cidade.

(*) Jornalista, escritor e professor-titular da UFRJ