Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

A espetacularização da morte

MÍDIA & MERCADORIA

Marcelo Salles (*)

É interessante observar como a mídia grande rompe com certas regras por ela própria convencionadas, sempre que lhe convém. Um breve exemplo: na capa da Folha de S.Paulo (3/2/03) uma foto de meia página ilustra o desastre com o ônibus espacial Columbia. A legenda anuncia sete mortos. Logo abaixo, uma foto pequena mostra um edifício que explodiu no Senegal, matando 30 pessoas. Dentro do jornal, duas páginas dedicadas à espaçonave, contra um quarto de página sobre o acidente ocorrido no país africano.

Admitamos, entretanto, que os EUA sejam um país mais importante do que o Senegal; conseqüentemente, o interesse jornalístico é muito maior. Assim é que um segundo exemplo se faz necessário. Um amigo trabalhava no Jornal do Comércio, em Porto Alegre, quando presenciou o seguinte diálogo (entre o editor e um jornalista): "Um trem acaba de descarrilar perto de Santa Maria, vou escrever a matéria e te enviar já, já", disse o repórter. "Já sabe quantas vítimas?", retrucou o editor. "Nenhuma, o trem era de carga." "Então esquece a matéria."

Ou seja, além de estar totalmente banalizada, a morte virou vendedora de jornais. Não pense que estou criticando o editor, nem os jornais citados. Gostaria apenas de entender quando foi que as pessoas passaram a ter mais interesse num acidente com dezenas de mortos do que em outro isento de vítimas.

Então, cabe perguntar: é essa a imprensa que queremos? É essa a mídia que escolhemos? É para esses veículos, que necessitam tanto da morte quanto a indústria bélica, que abrimos as portas das nossas casas?

Terapias alternativas

Devo deixar claro que não peço que a mídia esconda ou deixe de publicar acidentes com vítimas, mortes etc. O que estou querendo é que ela mostre a notícia com o devido respeito, e que siga rumos diferentes do da espetacularização com que vem manipulando os fatos ao longo dos últimos anos. Nas palavras do filósofo francês Guy Debord:


"O espetáculo é o momento em que a mercadoria ocupou totalmente a vida social. Não apenas a relação com a mercadoria é visível, mas não se consegue ver nada além dela: o mundo que se vê é o seu mundo."


Em nosso caso, a mercadoria é a notícia. E como uma das notícias mais interessantes é a morte, chegamos à triste e reveladora conclusão: a mídia grande vende morte. E o pior é que nós compramos seu produto, todos os dias. Só que as conseqüências estão sendo terríveis e podem piorar ainda mais se as coisas continuarem do jeito que estão.

Por compreender este processo, nunca me chocou a imagem de alunos atirando em colegas ou professores. Nem mesmo filhos planejando a morte dos pais me causou espanto. Essas tragédias eram, de certa maneira, até previsíveis. E o problema não acaba aí. Na verdade, só tende a crescer, pois se transformou em verdadeira bola de neve: é sabido que as notícias veiculadas pela mídia têm grande capacidade de influenciar as pessoas. Assim, se o receptor da mensagem se depara com conforto, alegria, educação, diversão (sadia, é bom ressaltar) etc., ele devolverá ao mundo exatamente o que recebeu. Entretanto, se recebe cada vez mais morte teremos, como resultado, os mesmos assassinos brutais que a mesma mídia exibirá (ou venderá, entenda como quiser) cada vez com mais orgulho, em função dos altos índices de audiência que alcança com este diabólico desenrolar dos fatos.

A saída que apresento para tentar inverter este processo pode ser entendida pela seguinte analogia: um médico aumenta progressivamente a dose do remédio, mas não alcança bom resultado. O ideal, na maioria dos casos, seria interromper o tratamento para que o paciente recorra a uma terapia alternativa.

Em nosso caso, antes que o paciente morra de overdose, talvez fosse interessante procurarmos algum tipo de terapia alternativa… E quem sabe a resposta, ou pelo menos parte dela, não esteja numa outra alternativa, chamada imprensa?

(*) Estudante de Jornalismo da Universidade Federal Fluminense