Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A estrada de Damasco da TV Globo

TELEJORNALISMO

Paulo José Cunha (*)

Aos 18 anos, o cidadão romano Saulo, filho de fariseus, foi estudar Teologia em Jerusalém com Gamaliel, um dos grandes sábios de sua época. Tornou-se então feroz defensor da fé judaica, condição que o qualificou para chefiar um exército cuja missão era perseguir e dominar os judeus convertidos ao cristianismo. Isto, até o famoso episódio da estrada de Damasco onde, fulminado por luz intensíssima, ouviu da boca de Deus a questão que mudaria fundamentalmente a sua vida e os rumos do cristianismo ? "Saulo, Saulo, por que me persegues?"

Cego pela luz vinda do céu, Saulo é levado a Damasco, onde, batizado por Ananias, discípulo de Jesus, recobra visão. Desde então, convertido ao cristianismo, renega o nome judaico de Saulo e adota a denominação romana de Paulo. Daquela parte em diante, Paulo abraça e difunde a fé cristã, buscando a universalização da nova crença, transformando assim o cristianismo, até então um grupo desarticulado de fiéis entusiasmados, numa religião organizada.

Chama a atenção no episódio da estrada de Damasco, fartamente documentada nos Atos dos Apóstolos, o fato de Saulo não aguardar nem pretender a conversão. Ao contrário: era um soldado a serviço da perseguição aos cristãos. Prendeu, matou, torturou ou autorizou a tortura de centenas deles. A conversão se lhe impôs à força de intervenção divina. Portanto, foi contra a vontade que Saulo converteu-se em Paulo, o Apóstolo dos Gentios.

O povo não é bobo

Em 2003 a Rede Globo atravessou sua estrada de Damasco. E, tal como o rabino Saulo, não o fez por vontade própria. Foi, sim, obrigada à conversão por força de necessidade financeira e, também, pelo arejamento e o redesenho do mundo político. Tornou-se imperativa uma composição com os protagonistas do novo tempo, sem a qual ficaria mais difícil do que tem sido manter a liderança de audiência (leia-se: faturamento), abalada pela baixaria da concorrência e pela chegada da tevê segmentada. A iluminação que alcançou o Jardim Botânico chegou a bordo de uma formidável conjugação de fatos e circunstâncias que foram se avolumando até culminar na eleição de um metalúrgico para a presidência do Brasil. O mesmo metalúrgico que, 12 anos antes, passara pelo constrangimento de ver seu (já fraco) desempenho no debate eleitoral decisivo de uma eleição presidencial esboroar-se em tragédia por uma edição francamente tendenciosa no telejornal de maior audiência da América Latina.

É de justiça dizer que, se dependesse dos funcionários da Rede Globo, particularmente da redação, há muito mais tempo a emissora já teria cruzado a estrada de Damasco. A maioria deles queria, sempre quis a abertura. Mas é que a boca, torta por tanto uso do cachimbo, retardou ou impediu tal processo nas esferas superiores. Pode-se afirmar que a TV Globo foi a última instituição brasileira a entender que a abertura iniciada pelo ditador Figueiredo era pra valer. Ou que ela, pelo seu poder, podia ajudar a torná-la pra valer. Por conveniência (mas também pela convicção conservadora de seus dirigentes), nunca moveu uma palha para acelerar o arejamento democrático. Preferiu sempre o cômodo ou conivente imobilismo editorial quando o Brasil clamava por eleições diretas. Não entendeu nem se mexeu para ajudar o país a sair da letargia política quando o primeiro presidente civil ocupou o Palácio do Planalto após o regime ditatorial. Pior: avalizou a aventura política de uma das maiores farsas da história brasileira para depois, também por conveniência, chegar a tempo de posar para a história desmascarando-a. O ciclo da subserviência termina quando fornece todo o agenda setting da asséptica era tucana. Fulminada pela luz intensíssima das pesquisas e depois das urnas, a TV Globo livra-se agora da cegueira pelo batismo da realidade. Tal como Saulo, percebe enfim os ventos da mudança (que, aliás, chegaria de qualquer modo, com sua ajuda ou à sua revelia).

Oportunismo

Sim, é possível afirmar, como alguns analistas acreditam, que essa tardia conversão à democracia não passa de oportunismo político. Sim, é possível afirmar igualmente que tudo não passa de oportunismo financeiro, num instante em que o império corre o risco de perder até mesmo o direito quase consuetudinário de transmitir a Copa de 2006, tão profundo o rombo em seus cofres com a quebra da Globocabo. Mas é possível, sim, dizer também que, se não fosse a pressão interna do baixo clero e de uma geração de jovens jornalistas (ou de velhos jornalistas recém-desembarcados), desatrelados da conveniente complacência com o poder que mandou e desmandou até há bem pouco tempo, e até hoje o Jardim Botânico não cruzaria com a estrada de Damasco.

De qualquer forma, saudemos os novos tempos. Saudemos os que ajudaram, sobretudo lá dentro, sabe-se lá à custa de quantos sacrifícios, a abrir as janelas para a entrada da brisa fresca da mudança.

Como diz o professor de Telejornalismo Antonio Brasil, o problema da TV Globo é que, tal como os fugitivos de Sodoma e Gomorra, ela não pode olhar para trás, se quiser seguir em frente. Se o fizer, se ousar remexer o próprio passado, corre o risco de se transformar em estátua de sal, como a mulher de Lot. Está proibida por enquanto até mesmo de fazer mea culpa. Agora, é de bom conselho deixar correr o tempo, que tudo apaga e esquece, e avançar na árdua tarefa de reabilitar-se por ter sido porta-voz oficiosa da ditadura militar e do alinhamento automático com o poder da hora até outro dia. Purgar essas culpas e curar essas chagas levará tempo, eis que vários esqueletos em seus armários denunciam a Era da Conivência.

O diabo é que o excesso de salamaleques e mesuras ao novo governo, na ânsia da isenção recém-adquirida, também pode ser perigoso. Resta saber se a Globo resistirá firme em sua nova Fé, como Paulo, que terminou martirizado em Roma pelos mesmos que outrora pagavam seu soldo. Ou se ainda corre o risco de ser seduzida pelo exemplo de Nero (sob cujo império, aliás, Paulo foi sacrificado). Nero, lembre-se, não hesitou em tocar fogo em Roma para pôr a culpa nos cristãos.

(*) Jornalista, pesquisador, professor de Telejornalismo, diretor do Centro de Produção de Cinema e Televisão da Universidade de Brasília. Este artigo é parte do projeto acadêmico "Telejornalismo em Close", coluna semanal de análise de mídia distribuída por e-mail. Pedidos para <pjcunha@unb.br>