Tuesday, 16 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

A face oculta do Le Monde

LIVRO-REPORTAGEM

Leneide Duarte-Plon (*), de Paris

Carro-chefe de um poderoso grupo de imprensa que possui, entre outros, o Courrier International, a revista Cahiers du Cinéma e parte da revista Le Nouvel Observateur, o jornal Le Monde incomoda a muita gente.

"Le Monde causa medo", escreveu um dia seu atual diretor Jean-Marie Colombani. Seu enorme poder de formador de opinião dos formadores de opinião ? é o jornal lido pelos políticos, artistas e intelectuais ? o torna alvo de ataques de muitos que não suportam sua postura de intocável. A mais recente investida contra o jornal que é uma referência na França é o livro La face cachée du Monde (A face oculta do Monde), dos jornalistas Pierre Péan e Philippe Cohen, que chegou às livrarias na quarta-feira, 26/2. Para evitar qualquer vazamento, o livro de 600 páginas foi impresso fora da França. A tiragem inicial era de 20 mil exemplares ? mas depois que o livro virou um acontecimento político-midiático foram impressos mais 40 mil cópia. Os editores esperam vender 130 mil exemplares.

Uma semana antes do lançamento, a revista L?Express, em reportagem de capa exclusiva, anunciava "uma investigação sobre uma instituição acima de qualquer suspeita". O diretor da revista Denis Jeambar, como Cohen e Péan, acha que Le Monde se afastou do lema de seu fundador Hubert Beuve-Méry, que queria "lançar um olhar esclarecido e intelectualmente honesto sobre o mundo".

No livro, Cohen e Péan acusam o jornal de fazer denúncias sem ouvir as duas partes, de cinismo e de abuso de poder. Seus atuais diretores, Jean-Marie Colombani e Edwy Plenel são acusados de favorecimento pessoal, de fazerem lobby para o lançamento do jornal gratuito 20 Minutes, de usarem o jornal para campanhas de políticos, além de manterem a redação sob controle por meio de métodos autoritários. A lista de acusações não pára aí: sob a direção de Colombani, à frente do Le Monde desde 1994, o jornal falseia seu balanço como empresa. O salário de Colombani seria astronômico, fixado por ele mesmo. Além disso, ele teria tentado burlar o fisco estabelecendo domicílio na Córsega.

Colombani é descrito no livro como um "corso francófobo" e Alain Minc, o presidente do conselho de fiscalização do jornal e da Sociedade de Leitores, como um " financista internacional responsável pelo fato de o jornal adotar o ponto de vista das elites internacionais". Plenel é descrito como um ex-trotskista que fez parte da Liga Comunista Revolucionária e diz ter deixado o partido de extrema esquerda em 1979, quando, na realidade, ainda em 1985 falava num encontro de "jovens trotskistas da IV Internacional".

Segundo o livro, o que choca não é o fato de Plenel ter permanecido trotskista mas ter sido o responsável pela divulgação sensacionalista de que Lionel Jospin havia sido na juventude um militante trotskista. De acordo com os autores, Plenel teria prometido a Askolovitch, o autor de uma biografia de Lionel Jospin, um emprego na redação se ele lhe desse a prova de que Jospin fora membro do grupo trotskista OOCI. Além disso tudo, Plenel é acusado de "agente da CIA".

Comparado a uma "república mafiosa" o jornal é, na opinião dos autores, um "mau sonho orweliano em cuja redação reina um clima de medo".

Gosto pela polêmica

As fotos que ilustravam a reportagem do L?Express não deixam dúvida: quem decide lê o Monde. Políticos de direita e de esquerda são mostrados em plena atividade no Parlamento com o Le Monde nas mãos, completamente mergulhados na leitura do "jornal de referência da França", como os próprios autores se referem ao Monde. Cohen e Péan declaram-se velhos leitores do Monde, "nossa prece diária". Eles sabem, também, que os intelectuais franceses quando viajam para o exterior podem se privar do vinho e da cozinha francesa mas não do Monde, que buscam nas bancas e livrarias de Nova York, Tóquio ou Montreal para se sentirem realmente informados e poderem fazer um juízo sobre os acontecimentos do mundo.

Mas Cohen e Péan acham que o jornal mudou ? e muito. Eles acusam o Monde atual de francofobia indisfarçável : "Seja para falar da Guerra da Argélia, da memória da Segunda Guerra, do racismo e do anti-semitismo de hoje, do crescimento das idéias de extrema direita ou ainda, da Europa, o Le Monde, há uns dez anos, opta sempre pela interpretação menos generosa em relação ao país e seus habitantes".

O gosto pela polêmica vai custar a Cohen e Péan um processo na Justiça, conforme anunciou o vespertino. Além deles, o editor Claude Durand (responsável pela Fayard e pelas Éditions Mille et Une Nuits, que lança o livro) e o diretor do L?Express Denis Jeambar também serão processados por difamação. Le Monde viu em algumas passagens do livro grave atentado "à honra e à probidade do jornal e de seus diretores".

"Erros, mentiras, difamações e calúnias"

Desde a publicação de trechos do livro na revista L?Express especulava-se sobre a resposta do jornal. Ela veio num artigo de página inteira, num editorial e numa crônica ? publicados na edição de 27/2. O editorial "Uma paixão triste" dizia que Le Monde, que festejará 60 anos em dezembro de 2004, deveria felicitar-se por um livro que deve ser visto como uma homenagem ao sucesso coletivo de todos os que contribuíram para melhorar o jornal e construir um grupo de imprensa independente. "Hoje como ontem, Le Monde fica lisonjeado de ser objeto de tanta curiosidade, tantos questionamentos, tantas polêmicas que tomam a forma de livros. Porém, este [o de Pierre Péan e Philippe Cohen] não considera nem o projeto nem as convicções do jornal, limita-se a acusar seus principais responsáveis de impostores e mentirosos. O livro é dominado pelo ódio, a mais triste das paixões", diz o editorial.

O diretor de redação Edwy Plenel escreveu que o livro "acumula erros, mentiras, difamações e calúnias" e que, por isso, a Justiça será acionada. Em seu artigo, Plenel ironiza certos trechos do livro que, pelo absurdo, se tornam caricaturais e critica o rigor da investigação feita pelos autores. Ele reproduz acusações a ele próprio, a Colombani e a Alain Minc, entre as quais a de ter feito do jornal o porta-voz de um grande ódio à França. O título da matéria de primeira página perguntava: "Le Monde ameaça a França"?

Explicações à redação

Convocados pela Sociedade de Redatores do Le Monde (SRM), Jean-Marie Colombani e Edwy Plenel se reuniram durante cinco horas com a redação, na quarta-feira, dia 26, para responderem a perguntas sobre o livro que todos já tinham lido. O próprio jornal se encarregara de providenciar uma cópia para cada um. Cada jornalista comentou o que viu como erros no livro.

No jornal de sexta-feira, dia 28, o conselho de administração da Sociedade de Redatores do Le Monde publicou um balanço da reunião com o título "Os jornalistas do Monde pretendem solidariamente defender sua honra". Nele, a sociedade de redatores declara que "avaliando a gravidade do ataque contra o Monde, o conselho de administração da SRM está decidido a revidar em nome do conjunto da redação, sem excluir um processo na Justiça". Os jornalistas estão convencidos de que o livro é um ataque político com o objetivo de desestabilizar o jornal.

O escritor Philippe Sollers, que chama o Le Monde de "diário essencial ", vê no livro uma "tempestade cuidadosamente preparada num copo de água suja que passará depressa, apesar de ter sido longamente preparada". Ele pergunta: "Quem sonha destruir o Monde ? E responde: "Uma velha província mundializada, a quem o espírito francês incomoda".

Os autores contaram que resolveram reunir esforços e escrever um só livro ao descobrirem que ambos estavam escrevendo um livro que tinha o Le Monde como tema. Pierre Péan, um jornalista experiente, autor de um livro-reportagem sobre François Mitterrand, disse que eles decidiram fundir os dois projetos depois que viram que seus trabalhos se dirigiam para as mesmas conclusões.

Philippe Cohen se diz tranqüilo quanto à ação na Justiça, uma vez que em seu artigo Edwy Plenel não apontou nenhum erro importante de informação. "Nossa investigação foi relida, analisada e verificada, inclusive no plano jurídico. Ela se baseia em documentos e entrevistas. Vamos esperar o veredicto da Justiça".

(*) Jornalista

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