Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A festa continua

Antônio Fernando Beraldo (*)

 

O

ano enfim começou, como sempre, em março, ao findar das chuvas – como diriam Bilac e Jobim. E começou bem mais animado que o Carnaval que passou, com El Niño global, dengue e desemprego federais, incêndios amazônicos, desabamentos localizados, frituras ministeriais, surpresas eleitorais e concertos de piano solo … vida que segue, como diria o saudoso João Saldanha. E a mídia continua, também como sempre, jocosa, assolando nosso pobre entendimento com sua “estatística” de má qualidade. Os exemplos sucedem-se aos borbotões, verdadeiras cascatas de meias-verdades, meias-mentiras, propagando-se através de todos (isso mesmo, todos) os jornais e revistas, como se o vírus da repetição, assim reproduzido e alastrado à la Goebbels, embotasse nosso senso crítico, já combalido diante do massacre. Caso haja ainda estômago e humor disponíveis, faça essa experiência: leia as notícias sobre um mesmo fato, que envolva números, na mídia disponível nas bancas. Veja, ilustre passageiro, o seguinte Estudo de Caso:

Alguns jornais de hoje (2 de abril de 1998) trazem os resultados de uma pesquisa do Ibope, encomendada pela CNI (Confederação Nacional da Indústria). A pesquisa foi realizada entre 13 e 18 de março, com 2.000 pessoas entrevistadas. A seguir, uns poucos exemplos de como a coisa funciona (ou não funciona):

Alguns resultados já estavam na Internet, na tarde do dia 1º de abril (que dia para se divulgar estatísticas!). A Agência Folha deu a seguinte manchete: “Para 79% dos brasileiros o desemprego é o maior problema”. O índice estava errado! Simples e vergonhosamente, errado! No dia seguinte, todos os jornais davam outra cifra, 69%. A Agência furou (nos dois sentidos). Na notícia posterior, os outros índices estavam, acredito, corretos.

À noite, na edição da Voz do Brasil, logo depois da altissonante abertura, entrou a notícia dos resultados da pesquisa, com ênfase nos índices que apontam a liderança de FHC na corrida eleitoral. Quase dois minutos de cifras e mais cifras, mostrando para sua multidão de ouvintes que não tem jeito, mesmo: vai dar FHC na cabeça.

O Globo caprichou na divulgação dos dados: no caderno O País, página três, quase inteira, sob a manchete “FH cai e medo do desemprego sobe”. No Jornal do Brasil, a pesquisa é divulgada na parte de Economia, sem gráficos, num texto coalhado de cifras percentuais, misturando os resultados da pesquisa Ibope/CNI com outra, sobre a inadimplência no comércio paulista (só faltou falar sobre a cotação da pimenta-do-reino em Cingapura). A manchete, incompreensível para os não-iniciados, é “Real seduz menos sem abalar FH”.

No jornal O Estado de S. Paulo, uma chamada na capa, embaixo de uma fotografia do papa João Paulo II ganhando uma bicicleta de presente (!): “Maioria crê na vitória de FHC”. Na página A4, parte de Política, sob o tema Sucessão, a manchete “63% dos eleitores prevêem reeleição de FHC”. Diante de tantos “erres ” e “ees”, não se sabe se isto é um aviso, uma ameaça ou uma lamentação.

Nível de erro sem margem de confiança

Ninguém se preocupou em informar ao leitor, ou ao ouvinte, alguns parâmetros que são fundamentais numa pesquisa de opinião pública: a margem de erro e o nível de confiança. Espero que a Folha o faça, nem que seja para se redimir da barriga. Margem de erro e nível de confiança são dois termos técnicos de Estatística, e a falta de sua divulgação perturba o entendimento dos resultados.

Supondo que o nível de confiança da pesquisa foi de 95%, como é usual, podemos calcular a margem de erro em cerca de 2%. Este cálculo é feito através de uma fórmula matemática, não é um chute. Dessa forma, os percentuais divulgados têm uma variação, para cima ou para baixo, de cerca de 2%.

Assim, se o resultado da intenção de voto para presidente foi de 36% para FHC, isto quer dizer que a intenção de voto em FHC é algum valor entre 34% e 38%. Com maior rigor técnico, pode-se dizer que, se fizéssemos a mesma pesquisa com outra amostra de 2.000 elementos, teríamos a probabilidade de 95% (nível de confiança) de que a intenção de voto em FHC estaria no intervalo 34%-38% (margem de erro de 2%). Será que é tão difícil entender isso? Talvez seja.

Com base nestes parâmetros, algumas frases perdem o sentido, tais como:

“… Ciro Gomes sofreu uma queda de 7% para 6%”(O Globo), “Lula subiu de 20% para 22%”,”O número de pessoas que acham que o Real não dará certo aumentou de 13% para 15%” (JB); O quase-presidenciável Ciro Gomes pode ficar tranquilo – não sofreu queda nenhuma, seu percentual está dentro da margem de erro da pesquisa, ou seja, continua na mesma. Aliás, dizer “sofreu uma queda” para uma diferença de só 1% está meio forte, não? É o mesmo que dizer que alguém teve uma fratura exposta ao acender um cigarro… Quanto ao Lula, é melhor que não fique muito animado, pois esta “subida” é apenas indicativa, e, estatisticamente, não significativa. O mesmo pode-se dizer do índice de confiança das pessoas no Real.

“A maioria absoluta dos entrevistados (51%) …”, (Estado). Em Estatística, não existe maioria absoluta, nem a grande maioria, nem ” … por uma pequena maioria”, como já foi escrito em uma revista. Maioria é 50%, mais um, dos votos. Não existe também uma maioria maior do que outra maioria, assim como não existem mulheres mais virgens do que outras.

O Globo foi o único que comentou que a “queda” do índice de FHC reflete-se no aumento do bloco dos indecisos, votos em branco e nulos, o que está correto. O texto também flui, é de fácil leitura, apesar de algumas inferências soarem um tanto forçadas.

Barras que são “uma barra”

Mas os gráficos, ah! os gráficos… Chegou-se ao ponto de representar “opiniões” sobre candidatos utilizando barras verticais em três dimensões, em perspectiva (!), sem plano de apoio, sem escala e, pior, as alturas das barras não correspondem às grandezas representadas.

Assim, a barra que representa a rejeição de Ciro Gomes (53%) é maior do que a da rejeição de Brizola (67%)! Como se não bastasse esse, digamos, desastre, nos gráficos de linha os pontos das linhas não correspondem à escala vertical – será que não existem régua e esquadro na redação do jornal? Isto é muito grave, já que as pessoas têm preguiça de ler textos com muitos números e percentuais. Passam a inferir as informações a partir dos gráficos, que são mais bonitos, práticos e de compreensão mais rápida. Daí que uma bagunça desse nível é imperdoável.

Tem gente que quer proibir a divulgação de resultados de pesquisas nas semanas próximas às eleições. Diante do exposto, acho até que a idéia não é assim tão má.

 

(*) Professor de Estatística na Universidade Federal de Juiz de Fora.