Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A fúria do furo

O sabor da primazia é indescritível na arena do jornalismo. Feras têm orgasmos profissionais quando ultrapassam o concorrente (externo) e o oponente (interno). A fúria do furo é esta: vender qualquer peixe em qualquer embalagem de qualquer jeito, contanto que seja o “primeiro a dar”. Significativo termo de conotações sexuais chulas. Na sociedade que prima pela competição, o topo, o vencer a qualquer custo, o estar por cima, na frente, o ser o primeiro é um ritual iconoclasta do totem sucesso. Ser o primeiro provoca constrangedores leilões de virgens em bordéis (fato já “incentivado” em novelas de TV). O hímen é o lobo do homem (rico, coroné e sob a ameaçadora perda da virilidade).

O furo-notícia amplia o impacto da mercadoria jornal a ser vendida. Altera a posição no ranking do jornalista. Interfere no mercado interno dos “eleitos” da redação. Determina a carreira. Acidentais, raramente, e cultuados, os furos pagam preços indiretos altíssimos por ter um veículo fonte privilegiada para (quem sabe?) novos furos. O Cony disse em entrevista na Playboy, sobre o vazamento do diário de JK, que “você se transformar em fonte fidedigna, discreta, tem vantagens. Não vou dizer dinheiro, mas vantagens”. E vantagem também é moeda como privilégio, cacife, na hora do tráfego-tráfico de influência. Que vantagens são estas percebe-se na “agricultura de equívocos” que a plantação de notícias resulta.

Vencer o concorrente externo pelo espetáculo de ser o primeiro (dane-se a apuração, esquente-se e dramatize-se o que seria chocho como notícia simples e real). E isto se vende como credibilidade. E isto provoca delírios de “veículo bem informado”. Vencer oponente(s) interno(s) fica por conta da fogueira das vaidades natural em toda profissão pós-moderna e na perversidade com que seres humanos negociam a essência de sua pessoa (mais ampla que a ascendência profissional) no mercado da empresa.

A obsessão pelo furo lembra a frase do personagem de Orson Welles em Cidadão Kane: “Faça a manchete de primeira página em três linhas, imensa, e teremos uma grande notícia”. É confundir fome com vontade de comer. Para um leitor narcotizado pela sensação da novidade, volúvel e volátil ao primeiro que oferecer a aparência mais bonitinha e de impacto, convenhamos, é uma tentação na hora de embalar o produto jornal e sua mercadoria-notícia: onde está o fato, faturamos. Furo a qualquer custo mesmo que pelo tal furo alguma coisa escape: o comprometimento com a apuração.

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