Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A Globo se perde na selva da omissão

Marinilda Carvalho

U

m helicóptero transportando uma equipe do programa Globo Ecologia caiu segunda-feira, 14 de setembro, em plena Floresta Amazônica. Os primeiros sobreviventes foram resgatados 36 horas depois do acidente. Os últimos, 48 horas depois. Mas a TV Globo está até agora perdida na selva.

Lilian Wite Fibe, âncora do Jornal da Globo, começou bem: cumpriu corretamente seu dever de informar ao aparecer na tela antes da meia-noite de segunda-feira anunciando o desaparecimento do helicóptero em edição extra. Minutos depois, ela estava de volta, dando início a um show de desinformação: o “desaparecimento” teria sido apenas um “susto”.

Quando o jornal entrou no ar, por volta de 1h30, a matéria era espantosa: sem qualquer menção à chamada tranqüilizadora que fizera uma hora antes, Lilian reafirmava o sumiço do helicóptero, e dizia que dele não se tinha notícia desde a manhã de segunda-feira. Ficou a impressão de que Lilian cumpria orientações desencontradas. (Ver texto abaixo.)

O mais estranho: as informações que citava não vinham de um repórter da emissora em Roraima, nem da afiliada local, sequer da Base Aérea do estado. Os informantes eram as mulheres de dois dos passageiros do helicóptero, Elsa, casada com o diretor do programa, Cláudio Savaget, e Laura, casada com o ator Danton Mello.

Elsa dizia que estava tudo bem. Laura garantia que algo estava errado.

Na terça-feira de manhã, o Bom Dia, Brasil da Globo tinha optado pela versão otimista, sem nenhum vínculo com a realidade dos fatos. Esse espírito influenciava até as Forças Armadas locais (ou alguém duvida do poder da TV?). Foi Ana Malin, mãe de Laura, que convenceu por telefone um oficial da Base Aérea de Boa Vista, o comandante Sechi, a iniciar a busca do helicóptero.

À noite, confirmado o acidente, a maioria das emissoras de TV reproduziu entrevista do jornalista Mauro Malin, redator-chefe do OBSERVATÓRIO DA IMPRENSA e pai de Laura, na qual contava que a Globo se deu conta da gravidade da situação graças à insistência de sua filha quanto ao “algo errado”.

Mesmo na quarta-feira, conhecidas as proporções da tragédia – morte do operador de áudio Ricardo Cardoso e três sobreviventes feridos seriamente -, Lilian Wite Fibe, no Jornal da Globo, minimizava o acidente, ou a gravidade dos ferimentos dos passageiros. Sobre o ator Danton Mello, por exemplo, disse: “Ele teve uma pequena hemorragia”. Bem diferente das notícias veiculadas pelo canal a cabo Globo News, segundo as quais o cirurgião do hospital de Boa Vista que operou o rapaz dizia que os ferimentos eram muito sérios.

Lilian pelo menos falava do assunto. Da Fundação Roberto Marinho (FRM) – que contratou a equipe -, veio primeiro um otimismo equivocado – “Todos estão bem e voltarão logo”. Depois, silêncio.

Aliás, a FRM merece atenção. Como são feitas as matérias para seus muitos programas? Aparentemente, só com frilas. Uma produtora, contratada, contrata por sua vez as equipes – ou seja, um esquema quarteirizado. O que a FRM tem a ver com o peixe, portanto, é nada: nada de seguro, nada de assistência, nada de nada.

Nota triste: o papel de alguns profissionais da Central Globo de Jornalismo. Repórteres que ligavam pedindo informações ouviram mais de uma vez o seguinte “esclarecimento”: “Olha, esclarece aí que eles não são da Globo não, são contratados da Fundação Roberto Marinho.”

Ficou bem esclarecido. Mais que a empresa, quem discrimina prestadores de serviço são os próprios coleguinhas. Cada um deles deve rezar muito para não ser demitido e ter que aprender a língua do nada.

Nota feliz: a Central Globo de Novelas, que já mostrou sua capacidade de ser solidária na tragédia do ator Gerson Brenner, não se perdeu na selva, e está dando apoio total a Danton Mello.

 


Mauro Malin


M

inha filha, Laura Malin, que tem agora quase metade da minha idade e entrou na vida profissional há muitíssimo menos tempo, me deu nos últimos dias algumas lições sobre como o uso lúcido e crítico da informação permitiu-lhe ajudar a salvar a vida de seu marido, Danton Mello, e outros sobreviventes da expedição que foi gravar um documentário do Globo Ecologia no Monte Roraima no fim de semana de 12/13 de setembro.

Primeiro, ao recusar-se a aceitar a versão da Produtora Savaget – “está tudo bem com eles, estão esperando numa aldeia indígena” – na tarde do dia 14, segunda-feira, quando Danton já deveria estar no Rio gravando sua participação na novela Torre de Babel.

Horas depois, ao telefonar para Lilian Wite Fibe depois de ouvir, numa chamada do Jornal da Globo, a mesma versão imobilizante. Durante o telejornal, Lilian, advertida, não descartou a informação otimista da produtora, que dera antes, mas acolheu também a de Laura.

Isto significou o lançamento de um alerta pelo meio de comunicação mais abrangente do país, a TV Globo, vista ao mesmo tempo no Rio de Janeiro – onde ficam as sedes da produtora, da Fundação Roberto Marinho, que encomendou o trabalho, e da TV Globo, que exibe o Globo Ecologia -, em Brasília e em Roraima, onde as autoridades poderiam assim mobilizar-se imediatamente para salvar vidas em risco.

Às quatro da madrugada de terça-feira, dia 15, Laura teve certeza de que algo grave acontecera ao receber telefonema do prefeito de Uiramutã, Venceslau Brás: “Eles não pousaram em nenhuma aldeia indígena. O helicóptero não voltou do Monte Roraima”.

Na manhã de terça-feira, a versão otimista – partida do governo de Roraima e encampada pela produtora, pela Fundação Roberto Marinho e pelo jornalismo da TV Globo -, perdurava. Ao assistir ao Bom Dia, Brasil, que nem aludia à hipótese de acidente, fiquei aliviado e ainda participei, em São Paulo, de uma mesa-redonda na PUC, antes de viajar para o Rio. (Ver em Interesse Público, nesta edição.)

A delegada Sueli Goerisch, ex-superintendente da Polícia Federal em Roraima, amiga da família que na primeira hora se engajou na busca de informação, recebera relatório de dois vôos à procura do helicóptero sumido: nada avistado na ida e volta até o Monte Roraima (inclusive) pela rota principal e por uma rota alternativa. Até então mantivera o sangue-frio necessário nessas situações. Daquele momento em diante, ficou preocupada.

Na tarde de terça-feira, telefonei para Evandro Carlos de Andrade, diretor de jornalismo da TV Globo, meu chefe no jornal O Globo em 1983, e disse-lhe que Danton é meu genro e que eu agradeceria toda informação que me pudesse ser dada. Evandro, solidário, manifestou a preocupação de todos com a equipe desaparecida e garantiu-me resposta tão logo dispusesse de dados.

Uma ou duas horas depois tivemos a terrível notícia de que havia um morto (não se sabia quem) e cinco feridos.

Em seguida, recebi dois telefonemas – de Luís Erlanger, do jornalismo da TV Globo, e de Andréa Bacha, porta-voz da Fundação Roberto Marinho – que me transmitiam a mesma informação errada: parabéns, felizmente está tudo bem, a equipe está a salvo e logo será levada para Boa Vista.

Três horas depois, o Jornal Nacional mostrou Danton arrebentado, aos prantos, entrando num vôo para Boa Vista, e o repórter Fernando Parracho no hospital da cidade. Laura passou mal. Sueli Goerisch embarcou de Brasília para Boa Vista. Na manhã de quarta-feira, viajava num avião-UTI com Danton para o Rio. Os outros sobreviventes haviam esperado um dia inteiro pela remoção.

Nessa noite, apesar de eu ter declinado de oferecimento de Luís Antônio Costa, produtor do jornalismo da Globo, para que Laura viajasse até Boa Vista, porque Danton já estaria voltando, Lilian Wite Fibe, horas depois, noticiou: "Laura, mulher de Danton, está a caminho de Roraima".

A Folha de S. Paulo registrou na quinta-feira, dia 17, manifestação da própria Globo: "O Departamento de Divulgação da Rede Globo informou que, de fato, houve algumas informações desencontradas sobre o acidente".

A revista Época (21/9/98) fez reportagem impecável, sob o título: "Pânico na montanha. Intuição da mulher do ator Danton Mello deu início às buscas da equipe da Globo em Roraima".

A maior lição que recebi de Laura retoma uma antiga fábula: quando o rei está nu, é preciso que alguém o diga. Ela disse. Eu assino embaixo. Traduzida modernamente, a fábula fala de condições de trabalho – antes, durante e depois – de uma equipe que foi gravar um documentário nos confins do Brasil.

A lição está no jornal O Estado de S. Paulo (18/9/98, pág. C3):

“O ator [Danton] recebeu a notícia da morte do operador de áudio Ricardo Cardoso por sua mulher. ‘Ele ficou muito chateado’, contou Laura. Ela voltou a criticar ontem a Savaget Produções (….): ‘Se a produtora tivesse dado o alarme mais cedo e o socorro tivesse sido acionado antes, as coisas poderiam não ter sido dessa forma’, afirmou, referindo-se à morte de Cardoso.”

E na revista IstoÉ (23/9/98, seção A Semana):

“Cardoso não resistiu aos ferimentos e morreu pouco antes da chegada do resgate (grifo meu). (….) Odete Gomes, viúva de Cardoso, diz que ‘todos fizeram o que puderam. O acidente foi horrível’. A família de Danton responsabilizou a produtora do programa, a Savaget Produções, pela demora na tomada de providências. A mulher do ator, Laura Malin, falou a IstoÉ:

IstoÉ – Por que você responsabilizou a produtora?
Laura – Ela foi irresponsável. Demoraram muito para agir e essa calma custou uma vida’.”

 


Graça Caldas

 

N

o dia 15 de setembro, fiquei indignada com a cobertura dada pelo Jornal da Globo ao acidente do helicóptero Esquilo com a equipe do programa Globo Ecologia, no Monte Roraima, na divisa com a Venezuela. O trecho da matéria que foi ao ar naquela madrugada e que me chocou foi a entrevista com o ator Danton Mello.

Visivelmente machucado e contorcendo-se de dor, o ator dava seu relato sobre a queda do helicóptero. Foi uma cena horrível. Imediatamente perguntei-me se o tempo gasto pela reportagem com o helicóptero parado, em lugar de levantar vôo imediatamente para levar o ator ao hospital mais próximo, não se constituía risco para a saúde do ator.

Nos dias seguintes, nos noticiários dos jornais e de emissoras de televisão, a resposta: o ator submeteu-se a uma cirurgia. “Foi feita uma laparotomia (incisão na cavidade abdominal) para conter uma hemorragia interna no abdômen” (FSP, 17/9/98, Cotidiano, p. 9).

A questão que coloco para reflexão neste OBSERVATÓRIO é sobre o papel dos jornalistas na busca da audiência pela cobertura sensacionalista. Casos como o do ator Danton Mello repetem-se diariamente na mídia. A notícia vem sempre em primeiro lugar, mesmo que às custas da vida de alguém? Creio no entanto que, antes do exercício da profissão, o indivíduo é um cidadão. Deve, portanto, conduzir sua carreira com postura ética e sensibilidade para discernir entre o momento adequado para o registro completo dos fatos com os depoimentos relevantes para a matéria ou excluir alguns depoimentos quando pode colocar em risco a vida de uma pessoa.

No caso Danton, felizmente não aconteceu o pior. Quem garante, no entanto, que aqueles minutos de entrevista à Globo não eram preciosos para conter a hemorragia interna mais tarde diagnosticada?

Na dúvida, cabe ao repórter preservar a vida do acidentado, em lugar de buscar, a qualquer custo, uma imagem de impacto como aquela que presenciei, perplexa, no Jornal da Globo. Fica no ar uma pergunta. O que pensam de tudo isso os leitores deste OBSERVATÓRIO e principalmente a jornalista Lilian Wite Fibe, que comanda o noticiário da emissora?

 


Lira Neto, ombudsman de O Povo

“A imprensa sensacionalista trabalha com emoções,
da mesma forma que os regimes totalitários
trabalham com o fanatismo”
Ciro Marcondes Filho, em O capital da notícia

 

A

primeira página é a vitrine de um jornal. Ela reúne e resume as notícias mais importantes do dia. Assim, pela primeira página se conhece a personalidade e a linha editorial de uma publicação. Jornais sensacionalistas costumam trazer cores berrantes na capa, manchetes apelativas, assuntos frívolos, fotos bizarras. Valorizam o escândalo, a fofoca, o exótico, o folclórico em detrimento da informação. Jornais sérios costumam ser mais sóbrios na escolha dos títulos, não confundem diagramação arrojada com fotos gigantescas e letras garrafais, selecionam para a manchete e para a primeira página os assuntos de maior relevância. Investem na informação equilibrada, na distribuição racional dos espaços. Não misturam notícia e entretenimento. O Povo é um jornal sério. Ao longo dos seus 70 anos de existência, soube construir uma imagem de credibilidade junto aos leitores cearenses. É hoje, sem dúvida, um dos maiores e melhores jornais regionais do Brasil.

Tem bons repórteres, bons articulistas, bons colaboradores. Apesar de todas as limitações econômicas, típicas da imprensa regional, consegue fazer um jornalismo de qualidade inegável. Por tudo isso, a nossa primeira página de ontem, domingo, 13 de setembro, não fazia jus a um jornal com o perfil editorial do O Povo. A começar pela manchete escolhida para aquela edição: “Cabra é presa política no Interior do Ceará”. A manchete referia-se a uma certa “Caetana Leiteira”, uma cabra que foi presa pela polícia, no município de Santa Quitéria, porque estava atrapalhando um comício de uma deputada estadual candidata à reeleição.

O episódio, pelo inusitado do fato, possuía evidente interesse jornalístico. Mas daí a ser escolhido para a manchete do jornal vai uma enorme distância. Destacar, em manchete, a história prosaica de uma cabra que foi presa pela polícia significa dizer que O Povo considerou, do conjunto de matérias que trazia ontem, aquele o assunto mais importante do dia. Ou seja: apelamos para o folclórico, apostamos na irrelevância.

Como se não bastasse, a foto da tal cabra Caetana ocupava quase a metade do tamanho total de nossa primeira página de ontem. Justamente no dia em que os principais jornais brasileiros dedicaram os melhores espaços de suas edições domingueiras para discutir, de forma mais aprofundada, a crise econômica que o país está enfrentando.

 


Tablóides ingleses contagiam O Povo

 

Logo acima da manchete sobre a cabra presa em Santa Quitéria, O Povo publicou um quadro colorido, onde destacava a repercussão do relatório do promotor Kenneth Starr sobre as relações de Bill Clinton com a estagiária Monica Lewinsky. No documento, o promotor narra, com detalhes, as cenas de sexo entre o presidente e a estagiária. A chamada do O Povo dizia que “a imprensa do mundo inteiro deu destaque ao relatório”. Entretanto, na foto ao lado do texto, o que os leitores viram foi uma pilha de tablóides britânicos, famosos pelo sensacionalismo de sua linha editorial.

Em vez de analisar o caso Lewinsky e a crise política americana sob um enfoque mais responsável e racional, O Povo preferiu reproduzir a capa dos pasquins ingleses, que por sua vez sempre estiveram muito mais interessados na fofoca explícita do que em fazer jornalismo. “Arruinei o homem que amo”, era a manchete de um desses jornais, o The Express, que estampava uma foto imensa de Monica Lewinsky. “Presidente Pinóquio”, dizia por sua vez o The Mirror, que exibia uma fotomontagem em que Bill Clinton aparecia de gorro amarelo e nariz descomunal. “Digam a Bill que me perdoe”, lia-se na capa do Daily Star, que também trazia a foto da estagiária. Pelas manchetes, o leitor pode imaginar o nível das matérias.

Naquela primeira página do O Povo de ontem, as capas dos tablóides ingleses casavam perfeitamente com a manchete e com a foto da cabra Caetana. Pareciam feitas umas para as outras. Afinal, eram inspiradas numa mesma concepção de “jornalismo”. Um “jornalismo” que privilegia o sensacional e que apela para as reações emocionais dos leitores. Uma imprensa epidérmica, que não tem maiores compromissos com a informação e que, por isso, prefere chafurdar no entretenimento dispersivo, no espetáculo fácil, na transformação do banal em manchete. Que os tablóides sensacionalistas vivem de alimentar a insanidade coletiva, isso todo mundo já sabe. O que espanta é um jornal como O Povo se deixar contagiar pelo mesmo delírio.

(*) Copyright O Povo, 14/9/98.