Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A grandeza de um craque

CLÁUDIO SÁ LEAL (1926-2002)

Lúcio Flávio Pinto (*)

Isidore Feldenstein Stone não pôde ler o editorial ? o principal da página de opinião ? que o mais influente jornal do planeta, The New York Times, publicou em 1989, reconhecendo-o como o mais importante jornalista de todos os tempos nos Estados Unidos; e, provavelmente, no mundo. O editorial foi escrito no dia em que I. F. Stone morreu, depois de dedicar grande parte da sua vida a escrever, sozinho, um pequeno semanário (depois quinzenário) alternativo, o I. F. Stone?s Weekly. A tiragem máxima do newsletter de 8 páginas, em formato ofício, ao longo dos seus 19 anos de circulação, não foi além de 30 mil exemplares. Mas seu impacto era inversamente proporcional ao seu tamanho. Daí o reconhecimento, ainda que pós-morte, do NYT ao Davi de papel, que enfrentara com sua funda jornalística alguns dos monstros (sagrados ou não) do establishment americano, inclusive o diário novaiorquino da família Sulzberger.

Cláudio Augusto de Sá Leal morreu privado do mesmo prazer: ver sua foto pela primeira vez na primeira página de O Liberal, de Belém (PA), jornal ao qual dedicara quase 30 anos dos seus 72 anos de vida, merecendo um raro editorial na capa (a mesma capa que havia abrigado, por algum tempo, pequenos editorais, os sueltos, escritos por ele) e toda uma página interna a enaltecê-lo como o mais importante jornalista do Pará nas últimas cinco décadas.

Essa importância não podia ser medida com clareza e exatidão pela leitura dos textos que registraram o desaparecimento de Leal, vítima de um câncer que combateu com êxito notável, resistindo à doença por mais de 12 anos. As matérias, tanto as redacionais quanto as manifestações de entrevistados, não especificavam em que consistia a relevância da contribuição do morto à imprensa paraense. Limitavam-se a juntar cascatas de elogios fáceis ou repetir uma retórica que costuma mais servir de escada ao homenageador do que de reconhecimento à grandeza do homenageado (num certo artigo chamado a convalidar, já morto, fato até então inédito).

Uma resposta mais satisfatória deveria ter sido obtida através da observação das pessoas que compareceram ao adeus a Leal. Eram quase todas jornalistas, de várias gerações, subordinados e aprendizes em algum período de suas carreiras do antigo chefe de redação, vítimas às vezes do seu mau humor cíclico, mas beneficiárias do seu amplo conhecimento, transmitido não em aulas retóricas ou teóricas, mas na forja do fazer, na escola do cotidiano, ainda a melhor em matéria de jornalismo. Jornalistas que participaram do dia-a-dia de um jornal partilharam com Leal um dos maiores prazeres que pode ter um profissional, não apenas no jornalismo, mas em qualquer dos múltiplos ofícios humanos: o fechamento da edição diária de um jornal.

Era nesse momento que Cláudio Augusto de Sá Leal, nome de diplomata empenhado bissextamente com o direito, revelava sua maestria. Sem nenhum ranço de provincianismo, ele pode ser considerado um dos maiores jornalistas de retaguarda da imprensa brasileira moderna. O título se aplica a profissionais que sabem "fechar" uma edição, dando-lhe um desenho adequado na capa, impondo-lhe uma boa marca visual (que se encaixa harmoniosamente na memória), hierarquizando adequadamente as matérias, transmitindo-as com clareza e suficiência informativa.

Madrugada chegando, na fase anterior ao ritmo acelerado imposto pela escala industrial crescente, ou noite avançando, em período mais recente, de circulação antecipada, os que tiveram o privilégio de concluir a edição do jornal com Cláudio Leal partilharam com ele uma experiência enriquecedora e o verdadeiro prazer de um trabalho criativo.

Fonte proveitosa

Homem da cozinha da redação (e dos seus bastidores também), Leal nunca teve um texto brilhante e fez raras incursões pela linha de frente. Só no início da carreira andou trabalhando na reportagem. O que fazia bem, como poucos, era orientar a pauta da reportagem, para dar-lhe atualidade e consistência, submeter os textos a um verdadeiro critério de qualidade, ordenar a edição e espicaçar a criatividade da equipe, além de ser uma referência para as frentes avançadas da redação nas ruas (e, sobretudo, em missões de enviados especiais).

Homem discreto e tímido, Leal seguia uma rotina invariável, que seria massacrante ou mesmo mortal para um profissional da informação, se ele não fosse guiado por uma curiosidade insaciável, um apurado instinto dos fatos e uma preocupação com a qualidade incomum em sua geração (e, em grande medida, até hoje). Seu roteiro diário pouco variou durante as cinco décadas de trabalho (Sunab-Pedro Carneiro-A Província do Pará/O Liberal), não lhe possibilitando checar pessoalmente o que acontecia fora desse âmbito.

Mas era como se fosse a todos os lugares através dos repórteres, das fontes e dos amigos, aos quais formulava suas perguntas na saída e dos quais sugava o que haviam obtido, no momento da chegada. Como tinha na cabeça uma vasta matriz de entendimento e contextualização, o preenchimento dos claros desse quadro de referência pela matéria prima que lhe chegava garantia sua perene atualização, habilitando-o a manter-se à frente de qualquer redação (e do seu tempo).

Infelizmente, Leal não foi além da arena paraense. Poucas vezes saiu do Pará, nunca para trabalhar em centros maiores, mais exigentes e qualificados, onde o diálogo lhe permitiria crescer ainda mais. Manteve-se intramuros não por receio de enfrentar desafios, mas por temperamento. Mesmo sintonizado com o que ocorria fora do seu restrito círculo de atuação, haveria de sofrer algumas das seqüelas do isolamento e do provincianismo.

Se tivesse tido a iniciativa de seguir em frente, certamente a história do jornalismo lhe teria dado o reconhecimento que ele merecia, de um dos mais competentes profissionais do setor em todo o país, bem melhor do que algumas das estrelas que costumam ser colocadas no firmamento da mídia, por compadrio ou emulação.

Mas quem vinha dos grandes centros, de passagem ou para voltar a se estabelecer em Belém, encontrava em Leal um interlocutor ansioso por receber as novidades, mas exigente o suficiente para questioná-las, às vezes por azedume, às vezes para testar a consistência do mensageiro. Por suas qualidades, Leal sempre foi uma referência, não apenas do (e no) jornalismo paraense, mas de toda a vida pública no Estado. Quando travadas fora das fronteiras da redação, essas conversas, que o transformavam em fonte, eram ainda mais proveitosas. Pareciam libertá-lo de certas amarras, que, com o tempo, foram limitando-o.

Justa paz

Apesar do poder de que desfrutou nesse período, Cláudio Leal sempre foi pessoalmente honesto, exemplar no trato com dinheiro, modelar no desempenho de responsabilidades que lhe eram delegadas pelo patrão (acabando até por exagerar no exercício de tal delegação). Nesses aspectos, é um caso raro na imprensa do Pará, em todos os tempos.

Mas aos poucos sua cidadela começou a sofrer os embates do tempo e a lenta corrosão que lhe impunha o desempenho de cargo tão poderoso, como o de diretor de redação do maior jornal da Bahia para cima, o "Norte" do Sul monopolista. Começou a não separar, com a clareza mantida até então, os limites entre o jornalismo e o avanço da política e dos interesses comerciais, embora seja preciso sublinhar com ênfase: jamais tirou qualquer proveito de algumas decisões polêmicas que adotou, envolvendo essas duas dimensões do assim chamado quarto poder.

Era quase impossível que tal não ocorresse a uma pessoa que precisava equilibrar as duas balança numa estrutura como a de O Liberal. Com a morte do criador do império, Romulo Maiorana, tornou-se cada vez mais forte a tendência ao desequilíbrio entre os compromissos de manter bem informada a opinião pública e as exigências comerciais da empresa. Leal não pôde sustentar a paridade que precisava haver entre os compromissos de um órgão da imprensa respeitável e a compulsão para usá-lo mais em benefício corporativo do que para atender às necessidades da opinião pública. Orgulho-me de tê-lo acompanhado quando iniciou, em 1973, uma empreitada editorial que daria densidade ao jornal, e de haver deixado o barco, voluntariamente, quando esse produto começou a ser desvirtuado e, com o passar dos anos, desnaturado.

Cláudio Augusto de Sá Leal, porém, resistiu a todas essas intempéries como aquela pessoa que, a despeito de diferenças e divergências, conquista em nós o que não morre nunca: o afeto intelectual, o respeito profissional, a admiração que o bom trabalho provoca, como o bom combate, quando divergimos.

É uma pena ele não ter tido a oportunidade de receber, em vida, a justa homenagem que lhe foi prestada na morte, com o desacerto usual numa corporação que se distanciara dos parâmetros por ele definido. Costuma-se dizer em favor dessa omissão insanável que o próprio Leal não gostava disso e jamais permitiria que tal homenagem lhe fosse feita.

O argumento, porém, é preguiçoso, sonolento e cômodo. Leal recebeu com alegria e boa vontade estudante de Comunicação Social da UFPA, que a ele enviei com a missão de colher seu testemunho, quando orientava trabalhos acadêmicos. A resistência era apenas momentânea e, quando muito, uma tática para preservar sua intimidade, atitude coerente com seu enorme pudor. Valia a pena forçá-lo a encarar a tarefa ? necessária e relevante ? de assegurar que as gerações posteriores, já desprovidas de sua presença física, continuassem a se beneficiar de sua preciosa experiência e de seus valiosos conhecimentos sobre o jornalismo e a história do Pará.

Tal benefício poderia ser obtido através de um livro com o depoimento de (e sobre) Leal, ele vivo para receber a prova da nossa gratidão, afeto e carinho. Porque, como dizia o maior poeta popular da música brasileira, Nelson Cavaquinho, depois que a gente vira saudade o que interessa para quem se foi é a paz. A justa paz que deve ser o código da viagem eterna do grande jornalista Cláudio Augusto de Sá Leal até o destino que lhe cabe: a história.

(*) Jornalista, editor do Jornal Pessoal, Belém (PA)