Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A guerra das palavras e das imagens

ISRAEL E PALESTINA

Leneide Duarte, de Paris (*)

Muito além dos tanques israelenses e das pedras e bombas humanas dos palestinos, a segunda Intifada se inscreve no conflito do Oriente Médio como uma batalha travada todo dia pela ocupação de espaço na mídia impressa, rádios e TVs do mundo inteiro.

Os israelenses controlam os jornalistas em seus menores movimentos. Os palestinos agem de maneira semelhante. Ambos os lados sabem que a verdade das imagens ou de uma reportagem pode causar mais estragos do que uma bomba. E em muitos casos, a versão oficial nem sempre está de acordo com o fato jornalístico apresentado nos textos ou veiculado nas imagens.

Para fazer um balanço desses últimos meses sangrentos na chamada Terra Santa, a organização não-governamental Repórteres Sem Fronteiras (RSF) organizou um volume intitulado Israel, Palestina ? O livro negro.

Desde o início da segunda Intifada, em setembro de 2000, os direitos humanos foram freqüentemente desrespeitados no Oriente Médio. E a liberdade de recolher informações e fazê-las circular mundo afora foi muitas vezes limitada, como mostra o livro ? um conjunto de textos e documentos de associações israelenses, palestinas e internacionais como Anistia Internacional, B?Tselem, Federação Internacional das Ligas dos Direitos Humanos, Human Rights Watch, Centro Palestino para os Direitos Humanos, Grupo Palestino de Vigilância dos Direitos Humanos, Comitê Público contra a Tortura em Israel e Repórteres Sem Fronteiras.

Mas como confiar em denúncias de fatos que relatam violações dos direitos humanos e da liberdade de informação quando as paixões que animam os dois campos podem levar a visões deformadas, omissões ou a distorções propositais com fins de propaganda?

A resposta é simples: os relatórios, tanto israelenses quanto palestinos, só foram utilizados quando denunciam violações no próprio campo dos autores do texto. No caso das instituições internacionais, como Anistia Internacional ou Repórteres Sem Fronteiras, as denúncias atingem os dois lados.

Um relatório da RSF intitulado "O exército israelense ataca a imprensa" afirma o seguinte:


"Desde o começo da segunda Intifada e mais ainda desde 29 de março de 2002, início da incursão do exército israelense às cidades palestinas, é enorme o número de jornalistas presos, ameaçados, maltratados, proibidos de se deslocarem de um lugar a outro, expulsos, feridos ou privados de credencial ou de seus passaportes. Apesar de o Estado de Israel ter assinado e ratificado o Pacto Internacional relativo aos direitos civis e políticos, cujo artigo 19 garante a ?liberdade de pesquisar, receber e difundir informações?, seu exército se dedicou a impedir os jornalistas de cobrir livremente as operações. A situação da liberdde de imprensa degradou-se como nunca na história do Estado de Israel ".


A mesma ONG, em outro relatório com o título "Violação da liberdade de imprensa pela Autoridade palestina", afirma:


"Após os atentados de 11 de setembro nos Estados Unidos, e as manifestações de alegria de palestinos nas ruas, a Autoridade palestina, com medo de ver sua imagem maculada, multiplicou as pressões sobre os jornalistas palestinos e estrangeiros para impedi-los de cobrir os acontecimentos. No dia 18 de setembro, por ocasião de uma reunião em Ramallah entre membros da Associação da Imprensa Estrangeira e o ministro palestino da Informação, Yasser Abed Rabbo, este declarou que a Autoridade palestina lamentava essas dificuldades. ?Em nome da Autoridade palestina posso dizer que garantimos a segurança de todos os jornalistas que trabalham nos territórios sob nosso controle?."


Documento histórico

O relatório prossegue dizendo que desde o início da segunda Intifada os meios de comunicação oficiais e privados se colocaram a serviço da propaganda da Autoridade Palestina. Além de vários casos de intolerância e cerceamento ao trabalho da imprensa pela mema Autoridade, o relatório conta que as cadeias de TV divulgam permanentemente programas "exaltando os mártires, incitando ao ódio e ao crime". Alguns jornalistas estrangeiros e colegas palestinos se autocensuram "por medo de sofrer ameaças, intimidações ou violências dos serviços de segurança".

A verdade é que os dois lados estão preocupados com a guerra das palavras e das imagens. Para ganhá-la, o ministério israelense encarregado do escritório público de radiodifusão e o gabinete do primeiro-ministro convocam a imprensa com freqüência a dar provas de "patriotismo". Os jornalistas do setor público receberam ordens claras de não se referir às colônias dos territórios palestinos como "implantações", mas como "localidades" ou &quoquot;vilas". Da mesma forma, quando se referirem aos palestinos, nunca utilizar a palavra "vítimas" mas, pura e simplesmente, "mortos".

Os relatórios do livro são detalhados, citando o nome de cada jornalista que sofreu limitações na cobertura de um fato; foi preso, ferido por balas do exército de Israel ou até mesmo expulso de Israel ou dos territórios sob a jurisdição da Autoridade Palestina.

Interdições de cobertura de incursões do exército de Israel ou de manifestações palestinas e confisco de imagens são narradas exaustivamente com detalhes do dia, local e nomes dos jornalistas envolvidos. Com a preocupação absoluta da objetividade presente no espírito dos redatores, os relatórios não foram escritos para serem lidos como quem lê um romance. Os textos têm o valor de documentos de arquivos para historiadores e pesquisadores da história contemporânea do Oriente Médio.

Um milagre

Dividido em duas partes, uma dedicada a Israel e outra à Palestina, o livro tem 16 capítulos, dos quais 4 tratam exclusivamente das limitações do exercício do jornalismo nos dois campos. Os outros enfocam as violações aos direitos humanos de uma maneira geral.

No prefácio, Rony Brauman, líder da ONG Médicos Sem Fronteiras explica que o livro é uma tentativa de construção de uma narrativa comum aos israelenses e palestinos a fim de frear "a marcha em direção ao abismo". Brauman se diz seguro de que esse livro negro irá desagradar aos que, nos dois campos, "crêem que a manipulação ou ocultamento dos fatos são indispensáveis à defesa de uma causa". O importante, segundo ele, é que a materialidade dos fatos se imponha sobre preconceitos e posições políticas.

Na excelente introdução, Jocelyn Grange faz um resumo da história da região desde criação de Israel até nossos dias, passando pelos acordos de Oslo e pela última tentativa de acordo em Camp David, de junho de 2000, entre Arafat e Ehud Barak, patrocinada por Bill Clinton.

O grande problema do Oriente Médio, ressaltado tanto no texto de Brauman quanto no de Grange é que, ao contrário da divisa sionista que impulsionou a criação do Estado de Israel ? "uma terra sem povo para um povo sem terra" ?, a Palestina era habitada por um povo árabe, os palestinos. E desde sua criação, o Estado de Israel teve que se confrontar com a realidade de um outro povo que também luta por uma terra e por um Estado.

Ao terminar a leitura do livro, de posse de tantos dados e tantas informações que mostram a complexidade da realidade de Israel-Palestina, tem-se a impressão de que só um milagre pode levar a paz a uma região em guerra há mais de meio século.

(*) Jornalista