MÍDIA & DEMOCRACIA
José Arbex Jr.
Introdução de O jornalismo canalha, de J.A.Jr., Editora Casa Amarela, São Paulo, 2003; telefone (11) 3819-0130; título e intertítulos da redação do OI
A cobertura da invasão do Iraque pelos Estados Unidos, praticada em março de 2003, equivocadamente qualificada como "guerra" pela mídia ? uma guerra pressupõe uma certa equivalência de poder destrutivo entre as forças em luta ? introduziu algumas novidades no campo do jornalismo. Uma delas foi a figura do jornalista embedded, ou "acamado" em tradução livre do inglês. O jornalista embedded é aquele que aceitou submeter-se a uma série de cinqüenta normas estabelecidas pelo Exército dos Estados Unidos, como condição para acompanhar as tropas. As normas previam, entre outras coisas, que ele não poderia reportar nada que não fosse aprovado pelos chefes do regimento em que se encontra, o mesmo valendo para as transmissões de imagens. Tampouco poderia deslocar-se para áreas consideradas perigosas. Em resumo, não teria a menor independência, nem sequer para observar os fatos. Essas normas foram descritas como censura e restrição à liberdade de informação, pela organização Repórteres Sem Fronteiras [http://www.rsf.org]. É provável que a melhor descrição do correspondente embedded tenha sido feita pelo jornalista israelense Uri Avnery:
Os médicos estão comprometidos pelo juramento de Hipócrates a salvar vidas na medida do possível. Os jornalistas estão forçados pela honra profissional a dizer a verdade, da maneira como a vêem. Nunca tantos jornalistas traíram tanto o seu dever como na cobertura. O pecado original deles foi aceitar o acordo de participar de unidades do exército. O termo estadunidense embedded soa como sendo posto a cama, e a isso corresponde na prática. Um jornalista que aceita a cama de uma unidade do exército se torna um escravo voluntário. É agregado aos subordinados ao comandante, é levado para os lugares que interessam ao comandante, vê e escuta aquilo que o comandante deseja. É pior do que ser um porta-voz oficial do exército, por pretender ser um repórter independente. O problema não é que você só vê uma fração pequena do grande mosaico da guerra, mas sim transmitir uma visão falsa daquela pequena fração. Na guerra das Malvinas e na primeira do Golfo, foi vetado o acesso dos jornalistas às áreas de conflito. Parece que desta vez alguém brilhante no Pentágono teve uma idéia: "Para que afastá-los? Deixemos que entrem. Diremos o que escrever e transmitir, e comerão em nossas mãos, como mascotes." Desde os 19 anos, sou jornalista. Sempre tive orgulho de ser jornalista. Hoje, estou envergonhado, ao ver um grande grupo de jornalistas sentado diante de um general cheio de estrelas, escutando avidamente o que chamam de "informações", sem formular nem a pergunta mais simples. E quando um repórter coloca alguma questão real, ninguém protesta quando o general responde com fórmulas de propaganda banais. Quase todos os relatos jornalísticos desta guerra formam um espelho deformado. Nele nós vemos um quadro manipulado, deformado e mentiroso. Devemos elogiar os poucos que, como Peter Arnett, estão dispostos a sacrificar a sua carreira no altar da verdade. [Jornal Brasil de Fato n? 6, p.10]
Uri Avnery refere-se à demissão, no dia 31 de março, do jornalista Peter Arnett, até então correspondente da rede de televisão NBC e da empresa National Geographic, que edita a revista de mesmo nome. Arnett teria feito declarações inaceitáveis, durante uma entrevista concedida à emissora de televisão iraquiana. Arnett disse aos iraquianos que o plano inicial de invasão de seu país tinha fracassado, e que o número de mortos civis iria estimular manifestações pacifistas em todo o mundo. Nada de muito estrondoso, portanto. Apenas uma constatação bastante razoável. Como explicar, então, a desproporção entre o "crime" e o castigo, ainda mais em um país que se vangloria de preservar a total e absoluta liberdade de expressão e comunicação? A resposta remete a uma árdua discussão sobre o papel dos meios de comunicação no mundo contemporâneo, e mais especificamente sobre a importância e a função do correspondente de guerra.
Na TV, tudo é show
A televisão adquiriu um enorme poder de transformar quase tudo em show, espetáculo, diversão. Assim, por exemplo, nos vários episódios de invasões e guerras civis ao longo dos anos 90 (Somália, Haiti e Bósnia, apenas para citar alguns), as câmaras de TV chegaram aos locais de combate antes dos soldados. Em nossas casas, vemos tudo pela televisão, e temos a impressão de estar testemunhando "a" verdade dos fatos, e não apenas "uma" verdade, isto é, uma simples versão que alguém filmou, editou e veiculou. O imenso poder adquirido pela televisão foi evidenciado durante a primeira Guerra do Golfo (que nunca foi uma guerra propriamente dita, pois não havia o menor equilíbrio entre o poder dos dois lados em luta), em janeiro de 1991, quando o mundo acompanhou a cobertura feita ao vivo e em cores, 24 horas por dia.
Pela primeira vez, um conflito era mostrado em tempo real por uma rede que tinha alcance planetário (CNN), graças a um satélite retransmissor estrategicamente colocado em órbita polar estacionária. Também foi a primeira vez que se utilizou, em larga escala, a técnica de transmissão de imagens digitalizadas (isto é, criadas por um processo de simulação). O "detalhe" perverso e terrível é que, segundo a cobertura, ninguém morreu. O âncora da CNN, por coincidência, era Peter Arnett. À época, a rede mostrou ao mundo um espetáculo de vídeo game: "armas cirúrgicas" que, supostamente, não matariam nenhum civil, atravessavam os céus noturnos de Bagdá. Sabe-se, hoje, que pelo menos 150 mil morreram ou foram gravemente feridos na "guerra sem sangue". [Não há uma estimativa consensual. As cifras variam entre 30 mil e 200 mil, embora a maior parte das pesquisas e estudos sobre o tema adotem um número oscilando em torno dos 150 mil.]
Como foi possível à CNN falsificar as imagens e os cenários de um conflito transmitido ao vivo? E mais: se a televisão adquiriu a capacidade de falsificar algo dessa dimensão, o que mais ela pode fazer? Não é possível esclarecer tudo isso nesse espaço, mas é possível identificar alguns pilares básicos desse processo [sobre isso, ver José Arbex Jr. Showrnalismo: a notícia como espetáculo, São Paulo: Casa Amarela, 2000.]. No caso da "guerra sem sangue", apenas a cegueira produzida pelo preconceito, pelo ódio e pelo fanatismo religioso permite explicar que a opinião pública ocidental tenha acreditado na fábula absurda. Foi, de fato, insignificante o número de vítimas estadunidenses (menos de trinta, e todos militares): os "exóticos" árabes não atingiram ainda, plenamente, o estatuto do humano, se é que algum dia chegarão lá, e por isso suas mortes não produziram impacto.
Além disso, a grande personagem da guerra, ao contrário daquilo que, apenas em certa medida, havia caracterizado a cobertura da Guerra do Vietnã, nos anos 60 e 70, não foi o homem, os horrores, os ódios e esperanças provocados pela destruição, mas as armas "inteligentes", as operações "cirúrgicas". A cobertura da Guerra do Golfo foi um espetáculo destinado a celebrar a tecnologia, em duplo sentido: a da sofisticação das armas utilizadas e a instalação definitiva da "televisão planetária".
Outro ingrediente é a construção de uma narrativa que cria e identifica o Bem e o Mal, o Santo e o Pecador. Assim, no caso da "segunda guerra do Iraque" (que tampouco deveria ser qualificada como guerra), toda a vez que alguém falava em Saddam Hussein, logo acrescentava o termo "ditador". Até aí, tudo bem. Só que ninguém fazia questão de lembrar que George Bush é fraudador de urnas e fanático religioso protestante, envolvido até o pescoço em escândalos de corrupção. Ninguém dizia: Bush, o trombadinha eleitoral, ou o fanático religioso protestante. E ninguém lembrava que o seu governo promove a perseguição de qualquer cidadão que ouse contestá-lo.
Finalmente, intervém a figura do correspondente. Com o passar do tempo, os telespectadores se acostumam a identificar nele uma fonte conhecida de informação, alguém que apresenta explicações em um cenário desconhecido e muito complexo, uma espécie de vizinho honesto e confiável. As emissoras, por sua vez, escolhem os correspondentes mais adequados a esse papel. Eles são "produzidos" como artistas em um show, quase que da mesma forma os candidatos a eleições ficam muito mais preocupados com a aparência do que com os programas políticos que deverão apresentar.
Sedução é a palavra-chave. Em um mundo tão complexo e conturbado, é bastante confortador ver uma face conhecida explicando aquilo que não conseguimos entender, colocando uma ordem lógica nos fatos e, sobretudo, mostrando para nós mesmos como somos bons e corretos.
O "crime" de Peter Arnett
Isso explica o "crime" de Peter Arnett, o grande pecado pelo qual foi punido com a demissão da rede NBC. Ao dizer algo que não estava de acordo com o consenso formado em torno do Bem e do Mal, ao dizer algo que não estava no roteiro da telenovela criada pelos meios de comunicação, Arnett cometeu uma imperdoável traição. Sua declaração abriu uma brecha na cobertura completamente parcial e patriótica, cujo eixo era a formação de um consenso segundo o qual os Estados Unidos estariam "libertando" o Iraque (no primeiro dia da invasão, a vinheta da rede CNN dizia: começou a libertação), mediante a derrota da ditadura de Saddam Hussein.
A garantia de que os correspondentes fariam cobertura "adequada" foi providenciada pelos executivos das grandes corporações da mídia dos Estados Unidos. A CNN criou um sistema de script approval (aprovação do original) que obriga os seus repórteres a enviarem todos os seus textos a responsáveis em Atlanta (sede da emissora), antes de serem transmitidos ao mundo. A nova política da CNN foi sintetizada no documento "Memorando da política de aprovação do original" (Reminder of Script Approval Policy), divulgado em 27 de janeiro: "Todos os repórteres devem submeter seus originais à aprovação. Os textos não podem ser editados até que os originais tenham sido aprovados… Todos os textos originados fora de Washington, Los Angeles ou New York, incluindo todas as redações internacionais, devem ser encaminhados a Atlanta para aprovação". Assim, um burocrata confortavelmente sentado à sua mesa, nos escritórios da CNN, tem o poder de alterar completamente o texto enviado pelo correspondente que atua na frente de batalha, de forma a torná-lo compatível com a linha oficial da emissora. Qualquer semelhança com o comportamento de ditaduras e estados totalitários ? exceto pelo fato de que se trata de empresas privadas ? não é mera coincidência.
Jornalistas são o alvo
Outra novidade introduzida pela cobertura da invasão do Iraque foi a tremenda hostilidade demonstrada pelo Exército dos Estados Unidos aos jornalistas que não aceitaram a cama da caserna. Não se discute, aqui, o bombardeio das emissoras de televisão Al-Jazira e a estatal do Iraque, pois nisso não há novidade alguma. A Al-Jazira já havia sido bombardeada durante a Guerra do Afeganistão (2001) ? aliás, outra guerra que não foi guerra ?, assim como Bill Clinton ordenara a destruição da emissora de televisão da Iugoslávia durante o ataque à Sérvia, em abril de 1999.
O fato novo é o ataque militar contra jornalistas dos próprios Estados Unidos e de países "aliados", como aconteceu no dia 10 de abril. Pela manhã, aviões estadunidenses destruíram os escritórios da Al Jazira situado no hotel Palestina, centro de Bagdá, onde estavam hospedados os cerca de 150 correspondentes estrangeiros. Quando houve o bombardeio contra a Al Jazira, o correspondente Tareq Aiub estava no topo do prédio com seu segundo cinegrafista, o iraquiano Zuheir. Quatro horas depois, outro petardo, disparado por um tanque estadunidense, matou o cinegrafista ucraniano Taras Protsyuk, 35, da agência Reuters, e feriu o cinegrafista espanhol José Couso, 37, da TV Telecinco, que morreria depois, no hospital. O jornalista Robert Fisk faz o seguinte relato:
O ataque seguinte veio logo depois, quando um tanque Abrams apontou seu canhão em direção ao hotel Palestine, onde jornalistas estrangeiros estão hospedados na capital iraquiana. A munição explodiu entre a equipe da agência de notícias Reuters e atingiu o cinegrafista ucraniano Taras Protsyuk, o britânico Paul Pasquale e dois outros jornalistas, incluindo a repórter libanesa-palestina Samia Nakhoul, além de José Couso, do canal espanhol Telecinco. Os americanos se justificam com o que todas as evidências provam ser uma clara mentira. O general Bufford Blount, da 3? Divisão de Infantaria, afirmou que seus veículos estavam sob fogo de francos-atiradores instalados no hotel Palestine. O testemunho do general não é verdadeiro. Eu estava passando por uma rua entre os tanques e o hotel no momento em que ele foi atingido ? e não havia nenhum tiroteio.[Robert Fisk. "As mentiras que os EUA contam". Folha de S. Paulo, 9/4/2003]
Quatro dias depois, 13 de abril, a CNN seria responsável por outra novidade: a rede contratou um serviço privado de segurança para proteger os seus repórteres, medida duramente criticada pela organização Repórteres Sem Fronteiras. Trata-se, obviamente, da "privatização da segurança": em vez de lutar para que as autoridades se responsabilizem pela segurança coletiva dos correspondentes, a CNN preferiu adotar a política do "salve-se quem puder", confiando em suas boas rela&ccedccedil;ões com os generais estadunidenses e com o seu poder econômico. O problema veio à tona em Tikrit, no norte do Iraque, cidade natal de Saddam Hussein, quando um guarda de segurança contratado pela CNN disparou sua metralhadora contra um posto de controle militar.
"Esse comportamento cria um precedente perigoso, que pode colocar em situação de risco todos os outros repórteres que cobrem este conflito", disse Robert Menard, secretário-geral do RSF. "Há o risco real de as forças beligerantes acreditarem que todos os veículos de imprensa estejam armados." Matthew Firman, porta-voz da CNN em Atlanta, respondeu que "nós fazemos tudo o que podemos para garantir a segurança de nossos jornalistas. Se isso significa ter de contratar guardas armados ou consultores de segurança, nós o fazemos. A segurança de nossa equipe é prioridade absoluta." No total, doze jornalistas morreram durante os 19 dias de combate mais intenso.
Capacidade limitada de manipulação
Entretanto, apesar de toda a censura exercida pelo Exército e pelas corporações, apesar do patriotismo ter marcado toda a cobertura, e apesar da agressão e dos assassinatos dos jornalistas que não se deixaram prostituir, qualquer análise minimamente crítica, mesmo se rápida, terá que notar a grande diferença entre as coberturas dos ataques imperialistas estadunidenses praticados contra o Iraque em janeiro/fevereiro de 1991 e o de março de 2003. Em 1991, simplesmente não apareceu a população civil iraquiana. Agora não. Sabemos, pelo menos, que crianças iraquianas foram cruelmente assassinadas; que as forças estadunidenses causaram a destruição de sítios arqueológicos (incluindo a omissão durante o saque do Museu Nacional do Iraque, quando foram pilhadas ou destruídas peças de milhares de anos); que as bombas atingiram civis e que não existem "armas cirúrgicas", como notou enfaticamente o enviado especial da Folha de S. Paulo, na edição de 23 de março.
E mais: todos sabem que Bush filho não ataca o Iraque por "motivos humanitários", mas por petróleo (em 1991, Bush pai teve um sucesso bem maior, ao vender a versão de que atacava Bagdá para liberar o Cuait e salvar o mundo do "novo Hitler" que surgiu no Oriente Médio); sabem que Saddam Hussein não tem "armas de destruição em massa" ? fato atestado pelos enviados da Organização das Nações Unidas, e amplamente divulgado pelos meios de comunicação, e comprovado pela ausência de evidências após a ocupação do Iraque. Sabem também que Bush despreza solenemente a ONU, os tratados internacionais, os mais elementares princípios humanitários. Em 1991, nada disso estava muito claro. Não que fosse exatamente um "segredo". Não era. Mas tampouco era um fato tão claramente estabelecido.
Assim, apesar de tudo, a capacidade de manipulação das notícias pela mídia é agora, sem dúvida, muito menor e mais limitada do que em 1991. Como explicar a diferença? Simples: ao longo dos últimos dez anos, houve uma rearticulação profunda e monumental dos movimentos sociais e organizações de trabalhadores, em todo o mundo. Essa rearticulação, que permitiu a realização de três sessões do Fórum Social Mundial, e que foi por ele fortalecida, levou milhões de pessoas às ruas, em 15 de fevereiro (alguns falam em 6 milhões, outros em até 30 milhões), nas maiores manifestações contra o imperialismo, pelo menos desde os anos 60 (quando a opinião pública mundial derrotou o Exército dos Estados Unidos, na Guerra do Vietnã). Em 1991, quando Bush pai atacou o Iraque, o mundo, impotente e sem iniciativa, ainda engolia o pó levantado pelos escombros do Muro de Berlim.
Fracassa o neoliberalismo
Bastou uma década para o "vitorioso" neoliberalismo mostrar sua falácia quando se trata de oferecer respostas aos problemas básicos levantados pela humanidade; sua falência moral, como sistema que estimula e multiplica grandiosos esquemas de corrupção; sua absoluta crueldade, por condenar 11 milhões de crianças à morte por fome, a cada ano (ou 60 milhões de seres humanos, se também computados os adultos, isto é, um número equivalente ao total de mortos na Segunda Guerra).
Em dez anos, o "fim da história" propagado por Francis Fukuyama ? um espertalhão funcionário do governo vendido pela mídia como se fosse filósofo ? foi transformado, no máximo, na agonia do império estadunidense. É disso, finalmente, que se trata. O império agoniza. Verga sob o peso de seu próprio poderio bélico e contradições internas. A distância entre o império no seu auge e a sua posição no mundo contemporâneo pode ser medida pela mera comparação entre Franklyn Delano Roosevelt ? arquiteto do New Deal e da versão estadunidense do estado de bem-estar social ? e o débil mental fundamentalista que agora ocupa a Casa Branca. Não, ninguém está dizendo aqui que Roosevelt era um Lênin ou líder humanista; mas não há como compará-lo ao macaco precariamente amestrado que agora joga os mísseis sobre Bagdá.
Os sinais da decadência multiplicam-se por todos os lados: as empresas estadunidenses perdem competitividade para as européias e japonesas; a agricultura só sobrevive às custas dos maiores subsídios públicos do planeta; a economia depende, cada vez mais, de um Estado super protecionista. O quadro foi ainda piorado, para os Estados Unidos, com a criação e introdução do Euro na economia internacional, tirando do dólar a sua condição de moeda universal e meio de parasitar as riquezas do planeta. Os Estados Unidos queriam mais dinheiro? Fabricava-se dólares, e o mundo que pagasse a conta. O Euro criou uma alternativa ao dólar e começou a colocar um fim na orgia financeira.
O conflito entre as potências do império, verificado durante os preparativos do ataque ao Iraque ? notadamente, França, Alemanha e, secundariamente, Rússia, de um lado, e Estados Unidos e os estados vassalos Grã-Bretanha e, secundariamente, Espanha, de outro ? refletem a nova realidade internacional construída pelo Euro. Em 1991, não houve nem sequer a remota idéia de um conflito. Os Estados Unidos mandaram, a Otan e o G-7 obedeceram. A União Soviética tinha acabado de desaparecer, e a Rússia nada tinha a declarar.
A decadência é tão acelerada, que em poucos meses foi esvaziado o consenso em torno de Bush, artificialmente criado após o atentado de 11 de setembro de 2001. Agora, apesar das perseguições policiais, do clima de caça às bruxas, da histeria patriótica que funciona como uma espécie de cimento psicossocial responsável pela frágil coesão da classe média puritana dos Estados Unidos, apesar de tudo isso a oposição toma de novo as ruas. Intelectuais, estudantes e trabalhadores denunciam o debilóide texano. Artistas consagrados boicotam a cerimônia do Oscar, visitam Bagdá, desafiam o "sistema".
Os barões da mídia captaram essa nova realidade mundial. Eles dependem da credibilidade de seus leitores e telespectadores. Sabem que não podem mentir sempre, impunemente. O monumental fiasco representado pela cobertura do golpe na Venezuela, em abril de 2002 ? apresentado, durante escassas 48 horas, como se um Hugo Chávez isolado e desmoralizado tivesse renunciado, até que a sua volta ao palácio presidencial provasse a escandalosa farsa midiática ? deixou suas marcas e lições. Os barões da mídia são finalmente obrigados a admitir que há seres humanos no Iraque, e que as armas estadunidenses não são cirúrgicas.
Ainda é pouco, mas esse pouco pode ser suficiente para estimular novas e maiores demonstrações. Tampouco a cobertura da Guerra do Vietnã, nos anos 60, foi um show de democracia, como muitos querem acreditar. Muito longe disso. Os grandes jornais tentaram, até o fim, manter o patriotismo em alta, até serem obrigados a engolir os fatos. Bastou o mínimo de informação correta ? plasticamente representada pelos famosos sacos de lona preta que embalavam os corpos dos soldados mortos ? para que a população dissesse não.
Vamos analisar, nos próximos capítulos, as relações entre as corporações da mídia, o poder instituído e a capacidade de reação e resistência dos povos. Enfocaremos, particularmente, os Estados Unidos e a mídia estadunidense, por representarem o auge do poder capitalista, assim como o parâmetro para o modo de fazer e divulgar notícias. Analisaremos também os seus reflexos no Brasil, e as conseqüências para a cobertura dos movimentos sociais.