Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A guerra e o vazio do discurso

LIÇÕES DO CONFLITO

Ivo Lucchesi (*)

Resguardado momentaneamente o sentimento de repugnância que, como princípio, se deve ter em relação a qualquer guerra, percebe-se quanto de cada conflito também se pode extrair ensinamento. A guerra no Iraque, em particular, já insinua algumas lições. Aos cultores do poder hegemônico, vêm sendo ministradas amargas doses contra a doença da prepotência, da soberania racial, da proteção divina, da supremacia tecnológica etc. Ao imaginário colonizado, principalmente com o deslumbramento ante o suposto irresistível apelo ao american dream, impõe-se a fragilidade dos símbolos cristalizados pela massificadora indústria cultural, demonstrando quanto de enganoso é veiculado. Por fim, à mídia, viciada no modelito tecnicista, resta o desconforto diante da ameaça causada à fortaleza que protege o "mito da informação".

Se é verdade que setores da mídia impressa e eletrônica ansiavam pelo início do conflito, não será menos verdade que, a essa altura dos acontecimentos, a frustração os estará habitando. A despeito da avalanche de imagens, entrevistas, reportagens, cadernos especiais diários, tudo com o apoio de sofisticados equipamentos, constata-se total estado de desnorteamento. É óbvio que, em qualquer guerra, seja previsível o jogo entre informação e contra-informação. Até aí, nada de singular. Todavia, o que costumava ser estratégia entre as partes em conflito agora inclui no cardápio da desinformação a limitação do "olhar jornalístico" dominante.

Tanto o formato midiático, ao longo das últimas décadas, tem-se esmerado em ocupar-se da "objetividade da informação", associada à eficácia de sua "tecnicalidade", que agora se vê perdido em redundâncias, obviedades, ingenuidades e, por mais que se disfarce, censura, tanto interna quanto externa. Pelo menos, o controle fica evidente quanto ao comportamento das redes de notícia norte-americanas.

A mídia contra ela mesma

Em meio ao ambiente nervoso de noticiários que se sucedem na colisão de uns com outros, a mídia, a todo instante, tenta recorrer a analistas (cientistas políticos, economistas, sociólogos e afins) na esperança de algum deles oferecer um vislumbre de compreensão, à altura de minimizar a afliç&atildatilde;o de quem não sabe mais o que informar, ante crescente conturbação. Assim, espaços na imprensa e tempos em televisão e rádio acabam sendo preenchidos com discursos que, em comum, além dos enfoques quase consensuais, em sua maioria, não sobrevivem para além do dia seguinte.

Quem investiu na imagem administra o tédio entre cenários destituídos de sedução maior. O que era promessa de "grande espetáculo" a platéias sedentas de intensas emoções inspiradas pelo "horror" não passa de tímidos recortes que não impactam mais que as próprias coberturas de ocorrências lideradas pela violência urbana. O que sugeria tensões dramáticas, no melhor estilo das lutas ideológicas no auge da Guerra Fria, não ultrapassa a fronteira de um requentado e tosco maniqueísmo, até pela inexpressividade histórica das lideranças que protagonizam o acontecimento.

Algumas matérias tentam atrair o receptor para um clima de polarização em torno do medieval tema "o bem contra o mal". Contudo, mesmo aqueles que se empenham nesse investimento não convencem exatamente porque nem eles próprios, no mais íntimo, depositam nesse quadro maiores convicções. No máximo, tentam preservar rede de interesses. Enfim, o "mal-estar" percorre as consciências daqueles que, tendo a missão de dizerem coisas, não as dizem, seja por não poderem, seja por não saberem. O problema é que o "filme", inicialmente pensado para ser um "curta", já se inclina para tornar-se um "longa". Diante desse impasse, como perpetuar o preenchimento de espaços e tempos com o vazio? Este é o fator complicador que a mídia tem diante de si. É uma outra guerra: a mídia contra ela mesma.

Memória das tramas

Se a mídia pretende libertar-se do desconforto, só lhe resta um caminho: atravessar os atalhos tortuosos da guerra, recuperando, como temática, o drama da dimensão humana e civilizatória. Isto significa dizer que o acontecimento presente no enredo dessa guerra impõe uma angulação crítica e reflexiva que só cabe no horizonte do pensamento, e não na estreiteza da imprecisa (ou fraudada) informação. Por aí, alguns temas ricos poderão render belas pautas.

É pelo viés da dimensão humana que se pode perceber a requintada tecnologia, posta a serviço de uma causa dissociada de uma verdade existencial profunda, que inexiste em quem, em nome dela, se pronuncia, produzindo resultados pífios. É visível: quem maneja artefatos concebidos em pesquisa de tecnologia de ponta não traz consigo a verdade enraizada como valor. O desempenho das tropas da coalizão é ditado, pois, por impulsos inautênticos. Daí deriva grande parte dos obstáculos imprevistos.

Em sua maioria, comandantes e destacamentos comportam-se como "combatentes assalariados", "funcionários" da guerra. Eles sentem a artificialidade de tudo que envolve o conflito. As imagens quando focalizam rostos de soldados não escondem o olhar desapaixonado de cada um. Do lado oposto, porém, surgem seres que portam consigo a indignação, a memória do flagelo, a revolta dos injustiçados, o sofrimento dos humilhados e dos desprezados. Este fator em muito inibe a suposta força imbatível da exuberante tecnologia. É claro que a resistência iraquiana, até onde puder ser sustentada, não tem seu apoio na lógica do bem. Sim, não se pode ser ingênuo, a ponto de inverterem-se os critérios de valor, reconhecendo como "bem" o que é apresentado ao restante do mundo como a ordem do "mal". Assim procedendo, o pensamento continuaria confinado às grades do mesmo indesejado maniqueísmo.

A Divisão Medina (cinturão de elite, protetor do regime de Saddam) bem sabe estar servindo ao mal. Todavia, é um mal que não se vale da hipocrisia, com o intuito de ocultar a verdadeira face. É bom relembrar que, na guerra contra o Irã, enquanto o regime iraquiano recebia apoio bélico dos Estado Unidos, estes igualmente multiplicavam os lucros da indústria armamentista, municiando o adversário. Ou seja, os supostos representantes do "bem" agiam na mais absoluta traição.

Por outro lado, a resistência iraquiana tem suficiente memória histórica para saber que, quem inaugurou o uso de armamento para extermínio em massa é justamente aquele que, em nome do "bem", entra agora como invasor. A mídia também tem essa mesma memória. Ela sabe o que representaram as datas de 6 e 9 de agosto de 1945. No débito moral dos Estados Unidos consta a crueldade que, em 60 segundos, derreteu 100 mil vidas em Hiroshima e mais 70 mil, em igual duração, no replay de Nagasaki. O genocídio, de inspiração terrorista, ainda adquire assombro maior, se computadas as milhares no decurso das décadas. Faz parte também da memória o fato de o mundo saber que a invenção de armas químicas e biológicas tem sua sede nos Estados Unidos, afora outras tantas tramas…

Redirecionar o foco

No subtexto dessa guerra, outro ângulo desponta como objeto de rentável percepção. Vale, a título de reflexão, assinalar a possibilidade de, às necessidades econômicas e políticas com as quais o governo norte-americano conduz o plano em curso somar-se um componente de caráter simbólico: um imaginário perverso que se recusa a superar o trauma da orfandade.

Parece existir, na cultura americana, a fixação da "pureza" que remete ao sentido da "origem", ao nascimento mágico, sem herança, sem contaminação de um "mal" anterior. Assim, todo aquele que encarna o sentido da milenaridade, há de ser dominado ou destruído. As guerras contra Japão, Coréia, Vietnã, Afeganistão, Iraque, afora seus interesses políticos, econômicos e estratégicos, têm em comum contra tais culturas o fato de elas serem ramificações milenares, isto é, a marca de uma origem anterior que a tudo deu início, maculando o "reino da pureza". Apagar o sinal das origens que se perpetuam é a única forma de vingar-se do ressentimento de uma orfandade. Talvez, essa maquinação simbólica que a cultura americana expõe com tanta intensidade traduza o enredo no qual se assenta a neurose a alimentar-se do visual exuberante, excêntrico, por vezes infantilmente anedótico, como compensação do tanto que lhe falta em substância e história. Sim, aí pode ser o ponto crucial. Não tendo história própria, precisa construí-la. Para tanto, há de perseguir todos que a tiverem.

Como se vê, a mídia, se o desejar, pode bem redirecionar o foco de suas abordagens. Contudo, ela precisa ser crítica, ética e autônoma. Será?

(*) Ensaísta, doutorando em Teoria Literária pela UFRJ, professor-titular da Facha, co-editor e participante do programa Letras & Mídias (Universidade Estácio de Sá), exibido mensalmente pela UTV/RJ