Saturday, 27 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

A guerra não acabou

NORMAN MAILER

Lúcia Guimarães

Copyright Visão, Lisboa (n? 528, 17/4/2003, págs.
100-101)

No dia 4 de Julho do ano passado, durante a parada da Independência, um jovem ("parecia um destes advogados liberais") aproximou-se de Norman Mailer. A cena passou-se numa rua de Provincetown, a cidade costeira de Massachusetts adoptada pelo escritor e porto de entrada da primeira leva de imigração portuguesa nos Estados Unidos, em 1853. O jovem estendeu a Mailer uma pequena bandeira americana. O escritor olhou para o estranho e limitou-se a sacudir a cabeça. Momentos depois, confessou ter ficado furioso porque perdera a oportunidade de dizer que não era preciso acenar uma bandeira para se ser patriota. "O patriotismo indiscriminado", disse ele,"é como a ansiedade indiscriminada." O episódio é recordado nas primeiras páginas de Porque Estamos em Guerra?, o novo livro de Mailer cuja data de lançamento quase coincidiu com o tão emblemático derrube da estátua de Saddam Hussein. A publicação do livro, de 110 páginas, foi apressada pela editora Random House e o autor,presciente, especula no epílogo que quando a obra chegar às prateleiras das livrarias, a guerra já deve ter acabado.

Mas a guerra a que ele se refere no título vai além da ofensiva militar encerrada pelo general Tommy Franks. "A guerra é um estado mental, uma série de eventos marciais", explica. E, por isso, acredita que os Estados Unidos continuarão "em guerra".

Como nos tempos do Vietname

Porque Estamos em Guerra? é a versão expandida de uma palestra proferida por Norman Mailer em Fevereiro deste ano. O texto, com o título Só na América, foi publicado pela New York Review of Books e recebido como um ataque contundente ao flanco neoconservador da política americana. Mailer completou 80 anos em Janeiro, com o lançamento de The Spooky Art (ensaios sobre a arte de escrever) e, durante a maratona de entrevistas e homenagens, parece ter recuperado a verve política que alardeava na década de setenta. "É o nosso velho Norman de volta, como nos tempos do Vietname", comemora Jason Epstein, o editor lendário, responsável pela publicação de autores como o próprio Mailer, Gore Vidal, E.L. Doctorow e Vladimir Nabokov. Epstein e Mailer, que no passado se engalfinharam nos seus papéis literários complementares, partilham hoje da mesma convicção sombria: o 11 de Setembro libertou o desejo imperial entre os conservadores americanos. Mailer distingue os conservadores da velha guarda dos neocons de George W. Bush, bem representados por Dick Cheney, Donald Rumsfeld e Paul Wolfowitz. Os conservadores tradicionais, diz ele, acham que o país deve resolver os seus problemas internamente, são religiosos, acreditam na família, no trabalho honesto e num orçamento doméstico equilibrado. Os conservadores de Bush vão à igreja ao Domingo e na segunda-feira voltam à prática capitalista amoral: "Tomam a quinta de uma viúva."

A besta e a força

O país que marchou em direcção ao Iraque, segundo Mailer, é uma democracia em franca erosão. George W. Bush chegou à Casa Branca numa manobra de advogados. A economia já estava em declínio. Os escândalos das grandes corporações como a Enron e o espectáculo da pedofilia na Igreja Católica enfraquecem o tecido moral do país. O enriquecimento da década de 90 produziu uma elite com rendimentos tão distantes da maioria da população que Mailer não acredita ser possível participar na vida cívica através dos meios constitucionais disponíveis. A corporação, denuncia, "é a vaca nojenta que emite os gases malcheirosos da mendicidade e da manipulação através do ênfase extremo na propaganda. Invista menos no produto mas faça reverência ao marketing. O marketing foi a besta e a força que conseguiu conquistar a América da maioria de nós".

Este tipo de eloquência, fruto do estilo literário e da disposição de pôr dedos em feridas, é um fenómeno raro, hoje, nos Estados Unidos. Certamente não tem sido encontrado na bancada Democrata do Congresso. O jornalismo contundente parece ter sido sequestrado pela direita, mas boa parte dele vem numa versão bastarda que mistura o sensacionalismo do talk-show com um namoro ao medo. E o medo introduzido pelo 11 de Setembro é visto por Mailer como um grande inimigo da democracia americana. "O nosso ego foi esvaziado", afirma, ao argumentar que o "patriotismo promíscuo", além de ser o famigerado "último refúgio dos canalhas ", nas palavras de Samuel Johnson, foi a reacção previsível de uma nação em crise maciça de identidade.

O 11 de Setembro não tem ligação circunstancial com o derrube de Saddam Hussein, escreve o escritor, no começo do ensaio central de Porque Estamos em Guerra?. Mas foi o álibi ideal para um movimento que teria começado um ano depois da extinção da União Soviética. Mailer cita o colunista Jay Bookman, doAtlanta Journal-Constitution, que lembrou a supressão de um documento do Departamento de Defesa, no Governo de George Bush pai. Eufóricos com a oportunidade de emergência militar oferecida pela queda do comunismo, os conservadores, sob o então secretário de Defesa e hoje vice-Presidente Dick Cheney, traçaram as linhas de um colosso americano que imporia o seu poderio económico e militar no planeta. O autor do documento, intitulado Projecto para o Novo Século Americano, era Paul Wolfowitz, hoje subsecretário da Defesa. O texto provocou um tal mal-estar que foi repudiado pela Casa Branca. Mailer vê o texto de Wolfowitz hoje como o guia político de Bush filho. No "horizonte histórico estavam não só o Irão, Síria, Paquistão e Coreia do Norte como também a China". A China? Mailer não prevê para os chineses uma ofensiva militar convencional. Imagina antes uma realidade em que os chineses se tornam "escravos gregos para os romanos" (americanos). E cita uma estatística: 43% dos diplomas em ciências exactas das universidades americanas, no ano 2000, foram conferidos a estudantes estrangeiros. Aqui entra em cena o Mailer operático, quando aponta para o avanço dos cérebros da Ásia sobre a vida académica americana. "Os estudantes asiáticos nasceram para a tecnologia. Aqueles que levam uma vida oprimida adoram tecnologia. Eles não têm muito prazer, de qualquer modo, então, gostam da noção do poder cibernético ao seu alcance. " Os chineses ficariam com o conhecimento e os americanos com o poder de subjugar pelas armas. A comparação com o Império Romano pode ser reduzida a uma imagem literária, mas é difícil questionar Norman Mailer quando põe o terrorismo como um inimigo impossível de subjugar por meios conhecidos. Até hoje, as guerras mais sangrentas ofereceram a perspectiva de uma conclusão. "O terrorismo, no entanto, não é atraído pela negociação", lembra. E como o terrorista não pode triunfar, não deixará de ser terrorista. Mailer admite o apoio de liberais à guerra. Mas invalida a expectativa bem-intencionada de que a democracia possa ser "implantada" no Iraque. Aos que lembram os exemplos da Alemanha e do Japão, depois da Segunda Guerra, Mailer replica que o Iraque nunca foi uma nação verdadeira e "as únicas defesas da democracia, em última instância, são as tradições da democracia".

Mailer vê nesta campanha de exportação da democracia um estímulo ao fascismo em casa. Acredita que os Estados Unidos vivem em clima pré-totalitário e iniciativas como a do Departamento de Segurança Doméstica são, para ele, um sinal deste avanço sobre as liberdades individuais. "A segurança é inimiga da democracia", afirma, ao sugerir que os americanos precisam de conviver com a possibilidade de novos ataques terroristas sem entrar no pânico que resulta no sacrifício da liberdade. "A situação é séria. Se cairmos numa depressão ou entrarmos em tempos de desespero económico, não sei o que vai manter o país coeso. Há raiva de mais aqui, choque de mais, crise de identidade de mais. E, o pior de tudo, patriotismo de mais. O patriotismo num país que está a fracassar tem uma tendência lógica de se tornar fascista, assim como o excesso de sentimentalismo corrói a compaixão. O fascismo na América não virá com um partido político. Nem com camisas pretas. Mas vai haver repressão às liberdades. (…) As pessoas que lideram o país, não têm, a meu ver, o carácter ou a sabedoria para defender o conceito de liberdade, se sofrermos horrores."

Pessismismo

É difícil encontrar vozes públicas americanas que divisem um cenário tão pessimista. O país entrou em guerra com números expressivos de apoio público, revelado nas pesquisas de opinião. Mas Jason Epstein, o ex-editor de Mailer, não se comove com este apoio popular, notoriamente baseado em noções genéricas de guerra e paz. "Todas as guerras começam assim", diz Epstein à VISÃO, enquanto os ruídos da cozinha revelam que ele concilia entrevistas com a confecção do jantar. "Acho que voltámos a 1914 e o problema está apenas no início. Tudo mudou depois do 11 de Setembro e a verdadeira guerra do nosso tempo não se trava de uniforme e com tanques." Epstein acaba de publicar um ensaio, Leviatan, na mesma New York Review of Books que ajudou a fundar há 40 anos. Nesse texto, compara as desaparecidas Torres Gémeas à perna que falta a Ahab, o obsessivo protagonista de Moby Dick, de Herman Melville. As perdas são comparáveis na reacção que provocaram. Epstein não reduz Bush ao monomaníaco a perseguir a baleia, mas considera-o um instrumento útil na mão de missionários ideológicos numa cruzada para americanizar o mundo. "Estamos, realmente, a posicionar-nos como um império", diz Epstein. Já Norman Mailer conclui o seu ensaio Só na América, com um alerta para aqueles que não querem viver sob o poder da prece, como o actual Presidente americano: "A democracia, repito, é a mais nobre forma de governo já desenvolvida e devemos perguntar se estamos prontos a sofrer, até morrer por ela ou preparar-nos para a existência rebaixada de uma monumental república de bananas com um governo sempre ansioso para se curvar a grandes corporações enquanto elas fazem o possível para se apropriar dos nossos sonhos frustrados com sua enorme presunção." Palavras fortes do velho pugilista das letras. O autor que tratou de duas guerras em Os Nus e os Mortos e Os Exércitos da Noite admitiu, com o lançamento recente do seu livro de ensaios, a frustração por não ter escrito o grande romance americano. Aos 80 anos, Norman Mailer pode n&aatilde;o Ter chegado ao destino, mas não se esqueceu da importância da viagem.