Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A hipocrisia diante do álcool

CASO SONINHA

Edilton Siqueira

A Soninha é uma dessas raras grandes almas da televisão brasileira que têm a coragem de discutir assuntos relevantes, muitas vezes obscurecidos pela ignorância e a hipocrisia. E foi com propriedade integrar-se ao elenco da TV Cultura, um verdadeiro oásis no meio da quase total futilidade da televisão brasileira. O que é lamentável é que a emissora, que sempre primou pelo esclarecimento, pela discussão, pelo debate, pelo enriquecimento, tenha tomado uma atitude no mínimo intransigente. Afinal de contas, o propósito da entrevista foi unicamente de abrir a discussão e fazer pensar se o modo como as coisas estão postas é realmente o melhor ? e todos sabemos que não é, pois não funciona.

Não é novidade para ninguém que o uso da maconha, principalmente em grandes cidades, é muito mais comum do que se publica. Também não é novidade o fato de que muito mais vidas se perderam pelo uso do álcool do que pela maconha. O que acontece é que "beber é massa", enquanto "fumar é uma droga".

Indivíduos que tenham contato com a droga não têm espaço para conversar em casa, na escola ou em outros lugares, por medo de repressão, e por isso não há diálogo e o risco do uso descontrolado aumenta.

Dia desses a revista IstoÉ, em matéria de capa, apresentava o problema da discriminação aos fumantes ? de cigarro comum, que fique bem entendido ? e o cerco que se fecha ao seu redor. Enquanto isso é fácil ver propagandas chamativas e até mesmo geniais de cerveja em diversas revistas. Para não perder o fio da meada, a mesma IstoÉ publicou recentemente reportagem em que um padre católico teria supostamente defendido a descriminalização da maconha, numa atitude extremamente modernista frente à posição formal da Igreja. No exemplar seguinte, a revista publicou sucintamente carta de retificação do mesmo padre, corrigindo a matéria e informando que em sua opinião o usuário é que não deveria ser tratado como criminoso. Ou seja, na distorção da informação pela mídia, nem mesmo o padre foi poupado.

O mito em torno da maconha, de que seu uso leva necessariamente ao consumo de drogas mais pesadas e com isso ao vício e à morte, é bandeira usual de diversos grupos ditos "politicamente corretos" que buscam enterrar a discussão com o apoio fácil do povo simples. O que não se esclarece é que as estatísticas apresentadas dão conta apenas dos usuários efetivamente viciados, alguns em clínicas de tratamento, outros envolvidos em crimes e até mesmo mortos por overdose ou outros efeitos, ou seja, apenas os que passaram pelas estatísticas criminais e semelhantes. Os usuários eventuais ? que existem e são muitos, acreditem! ? nem sequer podem dar o ar da graça, para que não sofram sanções semelhantes à de Soninha ou ainda piores. Ou seja, segundo as estatísticas oficiais, fumou, morreu!

Por outro lado, há casos em que pais mataram os próprios filhos a pancadas porque estavam bêbados. Diversos crimes ocorreram devido ao uso excessivo de álcool combinado com discussões corriqueiras. Agora a pergunta: onde estão as estatísticas dos mortos por overdose alcoólica? E a repressão aos usuários contumazes de bebidas alcoólicas? Hoje há algum esforço para reprimir os bêbados ao volante. Mesmo assim o cantor Alexandre Pires, acusado de dirigir embriagado e atropelar um motociclista que ia ao trabalho, foi recentemente absolvido do crime. Onde estão as campanhas de esclarecimento de que o álcool é uma droga tão ou mais prejudicial que a própria maconha? Exagero? Então compare as facilidades em se obter uma ou outra. Compare os percentuais de mortos por usuário de cada uma. Veja os números. Os números reais, não os conduzidos e manipulados.

Para sempre Voltaire

Mas por que ninguém pensa assim, por que isso acontece? Porque a Ambev é um orgulho para o país. Porque adoramos propagandas cheias de mulheres e bundas e praia e bichinhos engraçados. Porque ninguém consegue ler o "Beba/consuma com moderação" escrito em letras microscópicas nos rótulos e propagandas de bebidas. Hoje já é possível perder um emprego porque se é fumante. No entanto, é comum sair para "beber uma" com a turma do trabalho na sexta após o expediente. Até exagerar às vezes, pois não há grandes problemas. Muitos pais encorajam os próprios filhos ? adolescentes ou mesmo crianças ? a beber uma "cervejinha" em sua companhia, enquanto a lei proíbe que se ofereça bebidas alcoólicas a menores de 18 anos. E todos sabemos o quão rigoroso é o controle da venda de bebidas nessas circunstâncias.

Mais uma vez um assunto de importância essencial será abandonado antes de promover novas posições. A Soninha, se tiver fibra e rezemos para que tenha, continuará uma baluarte da coerência e da busca pela formação de opinião, onde quer que venha a trabalhar. Senão, aprenderá a lição errada e nunca mais será tão autêntica. Perde-se no combate ao tráfico de entorpecentes, aos governos paralelos das favelas, aos seqüestros-relâmpago. Da mesma forma que ficam cada vez mais órfãos de público e interlocutores diversos outros assuntos como a reforma agrária, as greves e a corrupção na administração pública, o crime organizado, a evasão fiscal, o sistema tributário… a lista é imensa.

Assim a hipocrisia das cervejas conseguirá mais uma vez calar a boca dos que pretendem eliminar grande parte da violência física e social que cerca nossa vida, nossos pais e nossos filhos. E viva a burrice!

Nota de esclarecimento: o autor jamais fumou sequer um cigarro comum e não defende nem incentiva o uso da maconha, apesar de gostar de cerveja e já ter ficado bêbado e inconveniente ao menos uma vez. Apesar de tudo, acha fundamental que se pregue a frase de Voltaire: "Não concordo com uma só palavra do que dizeis, mas defenderei até a morte vosso direito de dizê-lo".