Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

A impotência dos números

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ESTATÍSTICAS

Antonio Fernando Beraldo (*)

Lembra do Poderoso Chefão, livro e filme(s)? O capo Don Corleone, no declínio, enfrenta as novas gerações de mafiosos (incluindo os filhos), retardando o mais que pode a "horizontalização dos negócios". A partir dos crimes "tradicionais" (jogo ilegal, extorsão, prostituição, corrupção, etc.,) os bambini arregalam os olhos para o tráfico de entorpecentes, muito, mas muito mais lucrativo. As drogas têm penetração (demanda) em todos os segmentos da sociedade (público-alvo), desde o moleque de rua que rouba um rádio de carro para seu crack de toda hora até a socialite que utiliza o disk-droga para entreter os convidados.

Globalizada a coisa, cá estamos nós, indefesos, encurralados, sem ter a quem apelar neste cenário de guerra, onde quem pode se encouraça em automóveis blindados e se homizia condomínios gradeados. Quem pode, paga fortunas por sua segurança. Quem não pode, tem que se conformar diante da "nova ordem" imposta pelos traficantes "do bem"(?), que fornecem remédios, transporte, comida, empregos… e os protegem dos traficantes "do mal" ( os inimigos nas guerras em disputa dos "pontos"). No meio de tudo, a gente que é assaltada, ferida, incapacitada, morta, amedrontada dentro de suas casas, ora resignada, ora revoltada diante da insensibilidade das "autoridades", que se preocupam em demasia com a "imagem do país no exterior", como se a beleza dessa imagem fosse a pontualidade nos pagamentos da dívida externa. Refiro-me às seguintes estatísticas:

** O país teve 578 mil assassinatos em 20 anos ? de 1979 a 1999: em 1979, eram, em São Paulo, 8 assassinatos por 100 mil habitantes. Em 1999, 58 homicídios por 100 mil sobreviventes. Isso no geral, porque em algumas regiões, como a da praça da Sé, são quase o dobro: 102 homicídios por 100 mil. Em 2001, o quadro evidentemente não melhorou. Note que estamos falando de homicídios notificados, sem levar em conta a evasão de dados (subnotificação) e as "tentativas de homicídio". Se compararmos com a mais prolongada guerra recente, a do Vietnã, não dá nem para o começo ? foram "só" 50.000 baixas entre os americanos, num exército de mais de meio milhão de combatentes. É claro que nem todos estes crimes ocorreram por conta do tráfico, mas é possível estimar que foram a maioria: basta ver os comentários sobre as chacinas de fim-de-semana.

** Em 1999, no estado de São Paulo, a criminalidade aumentou tanto que Secretaria de Segurança Pública passou a publicar trimestralmente os números no Diário Oficial. Foram 220 mil assaltos (25 assaltos por hora), apreendidas 26 mil armas de fogo e notificados 610 mil crimes contra o patrimônio (70 por hora). Policiais militares são proibidos de prestar serviço de segurança a particulares (os chamados "bicos"), mas, nos cinco primeiros meses de 2000, 41 PMs foram assassinados quando estavam de folga, contra 12 em serviço. Neste período, a PM matou 336 pessoas (mais de 2 por dia), sendo que 20% delas foram mortas por policiais de folga.

Balas traçadoras

Se você teve a paciência de ler estes artigos até aqui [veja remissão abaixo], talvez tenha pulado alguns parágrafos, diante da tediosa seqüência de números, cifras, percentuais, taxas… Todos esses números foram retirados dos jornais O Dia, O Globo, Folha de S.Paulo, Jornal do Brasil e O Estado de S.Paulo, em datas diversas. São números-notícia monótonos que trazem sua dosagem diária de anestésico para nossos corações e mentes, que já não se incomodam mais com o morticínio cotidiano a passar pelas páginas, distante de nós. Vez por outra acontece um crime mais, digamos, sensacional, e aí o anestésico falha ? seja pela cobertura mais abrangente da mídia, seja por uma certa "proximidade" recuperada.

Crimes chocantes, como o massacre de Carandiru, ou a recente rebelião dos presos em São Paulo, ou aquela menina morta num ônibus no Jardim Botânico, no Rio, para citar poucos exemplos, de vez em quando nos dão uma sacudida e servem de palco para as autoridades anunciarem medidas de combate à violência (geralmente uma verba extra, um fundo novo qualquer a ser criado e depois, diluído).

Pergunta-se: será que a mídia impressa perdeu a capacidade de chocar, de emocionar, de chamar a atenção para o estado de guerra que as grandes cidades estão vivendo? O texto objetivo, seco, carregado de números não é páreo para agilidade da imagem em movimento, veiculada pela TV. Há uma grande diferença entre a foto da chacina, na primeira página dos jornais expostos na banca, e a filmagem de uma perseguição a bandidos, feita de dentro do carro da polícia.

O que atrai mais? Uma tabela seguida de um gráfico bonitinho, colocados no meio do jornal, ou as cenas agitadas, meio fora de foco, de um combate entre traficantes, como o da semana passada, no Rio? A reportagem foi apresentada nos telejornais da noite, junto com as cenas da enésima briga entre soldados israelenses e palestinos. Pareciam a mesma batalha, com as balas traçadoras, as bombas, as explosões. As filmagens do dia seguinte, tanto na favela do Rio quanto na cidade da Palestina, mostravam as mesmas casas metralhadas, carros incendiados, e a angústia dos moradores.

Fazer pensar

A TV trata a violência urbana como um filme de ação, uma espécie de mocinhos contra bandidos ao melhor estilo hollywood. A Record prefere a ação desenfreada, a Band vai mais ou menos por esse caminho de correrias. A Globo prefere um estilo mais sóbrio, mais voyeur, onde as pérolas são as gravações de imagens às escondidas, uma espécie de flagrante televisivo. Sai do sério quando o crime ocorre no seu meio, como na cruzada vingativa da escritora Glória Perez contra o casal assassino de sua filha. Ou como na série de reportagens que faz sobre as trapaças fiscais do diretor da LBV (ficou-se sabendo, muito em off, que há planos da LBV de entrar no mercado de TV fechada, contrariando os interesses de muita gente). E toda a mídia televisiva fatura horrores com essa linha, estilo "A Cidade contra o Crime", num show de emoções superficiais, ao qual não faltam patrocinadores e dinheiro.

Análises aprofundadas das causas do que está acontecendo, nem pensar. O telespectador continua mantido na ignorância, acreditando que os "maus" são assim porque são gente malvada ? há que se ter bandidos para jogar pedras. Enfim, faz parte do maniqueísmo televisivo, igual ao das novelas, que usa e abusa da potencialidade da imagem. E imagem com patrocínio, é claro. Estes filmes de ação, ou videogames, vendem. É muito dinheiro, desde que você se atenha ao distanciamento que faz com que a caçada a um traficante, como a que ocorre atualmente com Fernandinho Beira-Mar, seja como episódios de um folhetim, como naqueles enlatados policiais em que a gente torcia por Eliot Ness, ou Batman, ou o Superman.

Uma coisa é a arrogância de um ex-senador saindo da cadeia em uma Mercedes, cena vista na TV; outra coisa é o mesmo fato, descrito em duas linhas no meio dos jornais. Um jornal é para fazer pensar. Ou não? A mídia impressa pode fazer uma análise infinitamente mais abrangente e profunda das causas da violência que avança. Será o melhor serviço a prestar a nós, que somos mais do que consumidores ? somos, ou éramos, cidadãos. Números abundantes nas páginas dos jornais, se não revelarem o que está por trás da cultura do crime, serão só isso: apenas estatísticas.

(*) Professor do Departamento de Estatística da Universidade Federal de Juiz de Fora


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