Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A imprensa e a "interdição" imaginada

MANIFESTO DOS ECONOMISTAS

Paulo Roberto de Almeida (*)

Desde o início do atual governo, estamos assistindo a curiosos movimentos paralelos em torno de temas irrelevantes, tanto por parte da imprensa, de um lado, como por parte da chamada "inteligentsia", de outro. A primeira recolhe a menor manifestação de descontentamento ou de crítica às atuais diretrizes de política econômica provindas de representantes minoritários e os amplia como se traduzissem uma enorme corrente de opinião dispondo de apoios extensos nos quatro cantos do país. A agrupação dos "intelectuais", por sua vez, comparece regular e ruidosamente nos principais veículos da mídia mas reclama de forma insistente de que tem havido um "cerceamento" do debate econômico e político em torno das grandes escolhas de governança, exigindo ser mais escutada por parte das autoridades políticas e dos responsáveis econômicos.

Esses ruídos e desencontros não servem nem à causa do público em geral, que recebe uma "informação" desproporcional à efetiva importância dos problemas reais do Brasil, nem à da imprensa, que não consegue separar o tratamento objetivo dos fatos com impacto direto na vida do país da mera "transpiração" de opiniões de pequenos grupos ou indivíduos que só existem como personalidades "públicas" em função do seu acesso às páginas da imprensa. Pode-se aventar a hipótese de uma certa "preguiça" dos jornalistas que, ao menor sinal de aumento dos juros ou mudança do câmbio, chamam os mesmos acadêmicos de sempre para recolher suas reações sobre as reações do chamado mercado. Um caso de círculo vicioso, sem dúvida.

Foi assim que um "enorme" grupo de três parlamentares conseguiu ocupar as páginas de política e de economia dos jornais e revistas brasileiros quase sem descanso nas últimas semanas e meses. Um observador desprevenido poderia concluir que esses "representantes do povo" dispõem de enorme poder de alavancagem no partido e na sociedade e expressam, por assim dizer, a opinião da maioria dos eleitores, quando eles eram e continuam a ser porta-vozes auto-assumidos de correntes extremamente minoritárias no espectro político ? quando não representam apenas a si mesmos ?, defendendo causas que não têm nada a ver com os problemas reais do país, mas correspondem inteiramente a um conjunto de idéias ultrapassadas que está em total descompasso com o que vem sendo feito e discutido nos últimos anos.

Em vários casos, na chamada grande imprensa, a publicidade gratuita dada a esse punhado de ideólogos se explica pelo desejo do grupo editorial de dar destaque às contradições político-ideológicas do grupo que assumiu o poder com base numa plataforma de contestação ? e que vem governando com um programa (não-assumido) de situação.

O problema do segundo grupo se apresenta como algo mais complicado, pois que se trata de personalidades normalmente identificadas como "intelectuais", ou em todo caso pertencentes ao mundo acadêmico, e que não apenas têm extraordinária penetração na imprensa como de certa forma "pauta" o que os próprios jornalistas escrevem sobre a conjuntura econômica e política do Brasil. Daí a repercussão provocada nos órgãos da imprensa por toda e qualquer manifestação de "intelectuais" dirigida ao presidente da República, seja ela um encontro assistido pelo próprio presidente com velhos gurus aliados do partido majoritário, seja uma carta-manifesto que pretende "corrigir" anomalias da presente política econômica.

Quebra artificial

O caso mais notório, atualmente, é sem dúvida o de um manifesto que protesta contra a "interdição" do debate econômico no país e que propõe uma "inversão" completa dos rumos até aqui adotados nessa área. Como repercutido em vários órgãos da grande imprensa desde a quinta-feira (12/6), um grupo de aproximadamente duas centenas de economistas brasileiros identificados com as causas da "antiga" oposição econômica ao neoliberalismo e às políticas econômicas do ancien régime "malanista", revoltado com o que a "velha oposição", consubstanciada no PT, vem fazendo em termos de política econômica uma vez chegada ao poder e convertida em "nova situação", propôs, na sexta-feira (13/6/2003), uma "inversão" completa dos princípios e diretrizes que sustentam a política econômica posta em prática pelo PT no poder.

De acordo com resumo publicado pela Folha de S. Paulo na mesma sexta (o jornal também transcreveu, antes dos demais, o texto, intitulado "Agenda interditada"), esse manifesto, em forma de carta a ser dirigida ao presidente da República, propõe, entre outras coisas, "controle de capitais externos, do câmbio, redução do superávit primário (acertado em 4,25% do PIB com o Fundo Monetário Internacional), corte na taxa de 26,5% de juros ao ano e investimentos em infra-estrutura", além de dizer que a atual política leva o Brasil a um "beco sem saída de estagnação e desemprego".

O manifesto parece pecar por excesso de política e por insuficiência de economia, constituindo mais uma demonstração inequívoca de economismo acadêmico, mas isso não foi objeto, ao que eu saiba, de nenhuma comentário da grande imprensa. Ora, uma das funções da imprensa é não apenas informar o público sobre atos e fatos relevantes da conjuntura política, mas igualmente educar o público sobre o real significado de eventos como esse, como forma de preservar um pouco de racionalidade econômica (e política), numa situação conjuntural que ameaça descambar rapidamente para o maniqueísmo tradicional que sempre caracterizou o debate econômico no Brasil.

Não creio sinceramente ser do interesse nacional, seja da imprensa ou do próprio governo e sua equipe econômica, ver cristalizar-se no país uma nova dicotomia alimentada por conceitos econômicos pouco claros e expressos em linguagem totalmente política, quando estávamos aparentemente assistindo à emergência (coisa rara no Brasil) de um quase consenso em torno de políticas econômicas responsáveis e animadas com a perspectiva de atingir o crescimento econômico com estabilidade monetária e um certo sentido de justiça social. O que o chamado "manifesto" dos economistas provoca, justamente, é uma quebra artificial desse quase consenso, fazendo uma tempestade em copo d?água. Vejamos como.

Discursos, entrevistas, escritos

O "manifesto" começa por afirmar que o Brasil "está sendo levado a um beco sem saída de estagnação e desemprego por uma política econômica que capitulou à insensatez do totalitarismo de ?mercado?". Trata-se de um julgamento peremptório e aparentemente definitivo de uma situação que não chegou a completar seis meses de vida. Como regra de princípio, ciclos econômicos costumam apresentar uma temporalidade maior, e de toda forma não conseguem ser descritos através de conceitos tão drásticos e imprecisos como "totalitarismo de ?mercado?".

Pergunto: por que o uso do conceito de "totalitarismo" e por que a expressão "mercado" vem entre aspas? A utilização de uma noção associada, na ciência política, a regimes totalitários (isto é, despóticos e concentradores de um poder absoluto) não tem paralelo e não pode encontrar nenhuma correspondência com a situação política e econômica atual do Brasil. A imprensa deveria chamar a atenção para esse tipo de postura, que não configura tão-somente exagero verbal, mas um verdadeiro atentado contra o bom senso e a regra da proporcionalidade.

A qualificação, por outro lado, do conceito de mercado (aspas, cada vez que ele é mencionado) parece feita com a evidente intenção de diminuir suas modestas virtudes normativas e regulatórias, emprestando-lhe um certo caráter de bizarrice que não deveria normalmente freqüentar o discurso de economistas supostamente versados nos temas fundamentais de sua profissão. O mercado dos economistas geralmente se escreve sem aspas, o dos manifestantes aparece invariavelmente com aspas. Deve ser cacoete sociológico.

Disto concluo: apenas a intenção de chocar e de causar um certo impacto político ? e supostamente um sentimento de revolta ? parece animar a ouverture triomphale do manifesto proposto por esses economistas. Por outro lado, a afirmação de que algum ou todo debate sobre alternativas de desenvolvimento tenha sido "interditado" em nosso país nos últimos 13 anos não tem o mínimo suporte na realidade. Não se sabe bem por quem, em que circunstâncias e com que autoridade moral, econômica ou "policial" essa censura e essa proibição tenham ocorrido. Bastaria, por exemplo, consultar os currículos completos dos autores do manifesto, todos eles ativos praticantes desses debates, inclusive na grande imprensa, nos últimos 13 (e mais) anos, para comprovar a falsidade dessa acusação totalmente descabida e certamente pouca digna de um país que vive em completa democracia desde pelo menos 1985.

Mesmo antes dessa data, aliás, o debate, vivaz, loquaz, constante e mesmo estridente, vinha ocorrendo em circunstâncias totalmente normais para a vida acadêmica e mesmo para os padrões algo restritos da "democracia tutelada" em que vivemos entre os anos 1964 a 1985. Uma consulta às páginas do jornais e semanários, assim como aos índices de revistas especializadas como a Revista de Economia Política, de "tribunas" políticas da (então) oposição como Teoria e Debate, ou mesmo de órgãos "oficiais" como Conjuntura Econômica ou a Revista Brasileira de Economia, revela facilmente o quanto essa afirmação é descabida, despropositada, injusta ou simplesmente falsa. Em várias ocasiões e em todas as circunstâncias esse debate ocorreu, sem precisar referir-me aqui às páginas dos jornais diários e revistas de opinião e de informação, onde ele esteve constantemente presente. Tampouco preciso referir-me aos cursos de economia, aos incontáveis seminários realizados ao longo desses anos, a reuniões de sociedades científicas gerais como a SBPC ou especializadas como os encontros nacionais da ANPEC, para constatar que este debate esteve sempre vivo e se deu nas circunstâncias mais abertas possíveis.

Isto pela suposta falta de liberdade ou presumida "interdição" desse debate. Mas os autores do manifesto são mais explícitos na condenação de algo que nunca existiu. Eles também acham que os "autores" (totalmente desconhecidos) dessa "proibição" valeram-se do "recurso ao dogma de que o ?mercado?, sábio e virtuoso, se deixado a si mesmo promoverá a prosperidade coletiva". Uma afirmação com tal grau de assertividade e clareza como essa mereceria, pelo menos, que se trouxessem as provas materiais desse "dogma" e de seu poder de convencimento, segundo eles forte a ponto de cercear o debate econômico sobre alternativas (que supostamente eles, economistas da então oposição) teriam em torno do desenvolvimento.

Não seria difícil de encontrar essas provas: elas só poderiam estar nos discursos, entrevistas e escritos (amplamente transcritos pela imprensa) de FHC (I e II), de Pedro Malan, de Gustavo Franco e de Armínio Fraga, reconhecidamente os principais arquitetos do "dogma" denunciado. Para que a acusação não possa ser tachada de irresponsável e inconsistente, os autores do manifesto deveriam comparecer com as provas em mãos, como aliás se exige de qualquer bom trabalho acadêmico e artigo científico (mas talvez não dos manifestos políticos).

Modelo matemático

Como passar sob silêncio, por outro lado, o papel que a imprensa vem cumprindo de transmitir ao público o mínimo espoucar de vozes discordantes na academia ou na vida pública? Assim, segundo os manifestantes:


"A interdição do debate econômico nos últimos anos pretendeu desqualificar como anacrônica toda crítica a qualquer aspecto da política econômica. Hoje, repetindo o que aconteceu na última década, a sociedade vem sendo privada de participar ou acompanhar um debate genuíno sobre medidas de política econômica, boa parte das quais decidida de comum acordo com o FMI à revelia de qualquer instância democrática, inclusive do Congresso Nacional".


Os autores do manifesto incorrem, mais uma vez e sobretudo contra a imprensa, numa acusação sem fundamento, falando de uma "interdição" que não existiu (e que não existe, tanto que eles comparecem, ruidosos, nas primeiras páginas de todos os jornais nacionais) e numa suposta "desqualificação" que tem ares de caricatura dos argumentos dos antigos situacionistas econômicos. O aspecto mais visível do debate e da apresentação de alternativas a respeito da política econômica do ancien régime ocorreu a propósito do regime cambial, onde distinguiram-se vários economistas de oposição, inclusive um de "direita", o ex-ministro Delfim Netto.

Parece-me portanto totalmente descabida a afirmação de que hoje, como na década passada, a sociedade vem sendo privada de debates genuínos sobre a política econômica. Quanto ao FMI, caberia esclarecer que ele não participou em momento algum da formulação das bases principais do Plano Real de estabilização macroeconômica, que ele nunca recomendou fixação ou rigidez cambial (ao contrário, insistiu pela desvalorização desde a concepção do primeiro pacote de apoio financeiro, em outubro de 1998), e que o Congresso nunca teve cerceada sua capacidade de questionar as autoridades econômicas sobre esses planos, tendo o ministro da Fazenda comparecido em pessoa às comissões parlamentares (e mesmo ao plenário do Congresso) a cada pacote contratado com o FMI.

Ainda segundo eles:


"O ?mercado? [sempre com aspas] não debate, apenas ameaça. E aqueles que deveriam debater em seu nome tomam a ameaça de suas reações como suficientes para cancelar o próprio debate [quem deveria fazê-lo: a imprensa?, o governo?]. Os pontos-chave da política econômica são encapsulados numa cadeia de tabus porque a simples menção de discuti-los é descartada em face do risco da especulação do ?mercado?, pelo que o ?mercado? obtém uma franquia para continuar ditando os rumos de uma política econômica em proveito único de seus operadores, e cujo resultado para a sociedade tem sido baixo crescimento econômico e ampliação do desemprego".


Singular afirmação e santa onisciência esta da primeira frase: o mercado não debate e de fato não se conhece um ou vários "porta-vozes" do alegado mercado com aspas. O mercado sem aspas é constituído da ação conjugada e desconjugada, racional e irracional, organizada e caótica de milhões (centenas de milhões por vezes) de agentes econômicos individuais, inclusive dos meios de comunicação. Por certo, alguns desses porta-vozes aparecem ocasionalmente de forma algo mais transparente, na própria imprensa aliás: são os chamados "especuladores de Nova York", ou seja, os analistas econômicos (especializados em Brasil) das firmas de investimento de Wall Street e adjacências (algumas dessas "adjacências" estão em Londres, Frankfurt ou Tóquio). Esses "especuladores de Wall Street" (George Soros costuma ser um dos mais citados) chegaram certamente, em determinadas circunstâncias (na campanha presidencial de 2002, por exemplo), a "ameaçar" o país com a retirada de capitais, o desvio de investimentos e outros comportamentos mais ou menos nocivos ao bom equilíbrio das contas nacionais (posto que dependente, esse equilíbrio, da injeção de recursos externos). Mais de um jornal brasileiro, numa inversão total do que seja fato e opinião, acaba transcrevendo essas afirmações sem fundamento em grandes manchetes alarmistas.

Nada disso é novo e certamente os autores do manifesto devem saber disso. O que é novo, em contrapartida, é essa suposta capacidade que teria o "mercado" (com aspas) de "cancelar o próprio debate", quando o que mais acontece, ao contrário, é que essas manifestações orais ou práticas do mercado sem aspas fazem mais para incitar (e excitar) ao debate do que as toneladas de tinta e papel descarregadas nas revistas acadêmicas e nos jornais diários por todo um exército de reserva de economistas de oposição. Basta um "economistazinho" (com perdão pelas aspas), por vezes medíocre e totalmente alheio às condições reais da conjuntura econômica no Brasil, falar em Wall Street que no dia seguinte os jornais brasileiros já encontraram vários economistas da oposição e da situação para comentar à exaustão essas "ameaças" do "mercado" com aspas.

Não se compreende, tampouco, como os "pontos-chave da política econômica [estariam] encapsulados numa cadeia de tabus", quando o que mais ocorre no Brasil, desde a época de alta inflação, são colunas e colunas de comentaristas econômicos (mais numerosos certamente do que os de futebol ou os colunistas sociais) destilando todos os dias toneladas de argumentos a favor e contra esses famosos "pontos-chave" da política econômica governamental.

Qualquer leitor de jornal diário pode comprovar esse fato corriqueiro da esquizofrênia econômica brasileira: vivemos literalmente cercados de colunistas econômicos, nos jornais, revistas, rádios e TVs, uma verdadeira inflação deles, junto com a praga dos comentaristas políticos, que nada mais são, em muitos casos, do que propagadores de fofocas.

Todos eles, aliás, economistas, comentaristas e colunistas, contribuem, cada qual ao seu modo, para alimentar essa "especulação do ?mercado?" (com aspas, lembre-se), pois que eles simplesmente não ficam quietos, sobretudo os primeiros (de oposição), que fornecem as armas da crítica para os segundos e terceiros, geralmente jornalistas não necessariamente formados em economia. Mas nem precisaria, pois a especulação alimenta-se de dados objetivos também, ou seja, estatísticas de produção, de comércio, de receitas e de taxas de câmbio e de juros.

Na verdade, os verdadeiros especuladores ? isto é, os rapazes de Wall Street ? não costumam ler nenhum dos primeiros, nem os economistas sérios nem os colunistas ligeiros, pois em geral eles não precisam saber português para começar a operar. Eles simplesmente começam a olhar os indicadores do país, inserem esses dados em algum modelo matemático que fornece resultados futuros e, zut!, voilà: está criada a especulação.

Basta que algum indicador indique uma curva preocupante (deterioração das exportações, por exemplo) para que o especulador mais "esperto" lance o alarme: "take your money and run!" (foi o título de uma recente matéria do Financial Times sobre o Brasil, felizmente de um jornalista free-lancer). É o que fazem os verdadeiros investidores do mercado, com aspas ou sem aspas, os donos do dinheiro.

Bobagens de manual

Talvez isso seja sinônimo de "ditar a política econômica" do governo brasileiro, como parecem querer os autores do manifesto, mas então não há nada a ser feito na sua perspectiva, ou talvez sim: ir "contra" o mercado (qual deles?: com aspas ou sem?). Não se sabe bem como isso poderia ocorrer, pois quem geralmente depende dos humores do mercado ? como ocorre com o Brasil há quase 200 anos ? não pode se dar a luxo de "correr" do mercado, pois este estará onde sempre esteve: em Nova York, Londres, Frankfurt, Tóquio, ou até mesmo em São Paulo, Rio de Janeiro, Vitória do Santo Antão, Cabrobó da Serra e outros lugares menos conhecidos.

O mercado ? isto é, os agentes econômicos ? encontra-se em todas as partes e em nenhuma, pois que ele perpassa todas as atividades econômicas de um país "normal". Sem querer desanimá-los, tampouco, eu diria que o primeiro mercado que "foge" do governo é aquele dos investidores domésticos ? mais conhecedores das fofocas locais, a que estão alheios os rapazes de Wall Street ? e, sobretudo, os agentes nacionais da atividade econômica, empresários, banqueiros ou simples poupadores da classe média. Ao menor sinal de que o governo pretenderia "fugir" do mercado, eles correm para se "refugiar" antes, comprando dólares, remetendo dinheiro para o exterior, reforçando o caixa 2, enfim, preparando-se para tempos amargos. Esta é a especulação que já derrubou mais de um país ? o México, por exemplo ? ou que fez o Brasil ostentar, em outras épocas, ágios de quase 100% na taxa cambial.

Que, por outro lado, o chamado mercado ? sinto muito, mas já não consigo distinguir se seria com aspas ou sem ? faça tudo isso "em proveito único de seus operadores" parece de uma banalidade tão elementar que dispensaria qualquer comentário de minha parte. Qual é o mercado que não opera em favor de alguns e em (relativo) desfavor de outros, muito embora ele não seja exatamente um jogo de soma zero? Todo mercado consiste numa troca de produtos ? meu dinheiro contra as tuas abobrinhas ou minha emissão de títulos governamentais contra tal taxa de juros ?, e é evidente que o agente dotado de maior poder de barganha (ou de maior informação) sairá relativamente melhor nessa troca, mas o outro agente é "livre" para aceitar ou não as condições da operação.

O que os autores do manifesto querem dizer, obviamente, é mais grave do que isso: eles querem significar que o Brasil e os brasileiros estão aprisionados numa rede (cruel?) de compromissos financeiros que os impede de fazer suas próprias escolhas, sujeitando-se às forças implacáveis do "mercado" (com aspas aqui) em total prejuízo dos interesses nacionais. Mas tanto o mercado não é um jogo de soma zero que, mesmo nessas circunstâncias, o Brasil se sairá com o que ele quer obter do mercado: dinheiro para equilibrar suas contas.

Se não fosse assim, o Brasil não compareceria ao mercado (as aspas são indiferentes neste caso), pois ninguém fica acumulando reservas para nada. E se ele o faz, é porque muito necessita dessa injeção de vitamina na veia, do contrário não se sujeitaria a essas condições humilhantes de "taxas de juros impostas do exterior", de "monitoramento das contas nacionais pelos gigolôs do FMI" e outras vergonhas do gênero. Isto pode não ser muito edificante para o orgulho nacional, mas se preferem que não seja assim, os economistas do manifesto precisariam dizer, precisamente, como o Brasil poderia fazer de outra forma, sem, claro, colocar em risco as condições ditas normais de atividade econômica no país.

Afirmar que essa "ditadura dos mercados" (a frase não é deles, é minha) tem produzido, como único resultado "para a sociedade (, ?) baixo crescimento econômico e ampliação do desemprego" representa fazer uma leitura singularmente enviesada do poder dos mercados que, em outras circunstâncias, mundo afora e em diferentes épocas econômicas, foi capaz de produzir crescimento e emprego, justamente.

As situações inversas correspondem a momentos de disfunções dos mercados (o que também pode ocorrer) ou intervenções do poder político, cujo arbítrio pode impedir os "mercados" (concedamos as aspas, pois eles nunca foram perfeitos) de encontrar seu próprio ponto de equilíbrio. Qualquer manual de economia política do primeiro ano de faculdade vai trazer as curvas de equilíbrio de mercado, que esses economistas devem conhecer muito bem, indicando como e em que condições os mercados crescem e criam empregos. Os agentes econômicos deixados à sua própria sorte costumam ser, em princípio, racionais, só deixando de sê-lo na presença de algum burocrata governamental que pretende dizer-lhes como melhor aplicar e fazer frutificar o seu (deles) dinheiro.

Isso tudo deveria ser do conhecimento dos autores do manifesto, sendo inacreditável que eles repitam essas bobagens de manual econômico do materialismo dialético, dotado do pecado original do antimercado e da anti-especulação. Mercados e especulação são inseparáveis e inevitáveis, em qualquer época e lugar (mas talvez não na academia). Essas contradições merecem ser apontadas pela mídia, em seu papel didático de educação do grande público.

Regra de princípio

O viés ilusionista dos autores do manifesto, que parecem ter deixado de ler os jornais nos últimos seis meses, comparece novamente nesta passagem desse documento político:


"Basta. Queremos abrir a agenda da economia política brasileira e expor a caixa-preta da política econômica ao debate aberto. É um imperativo moral que reconheçamos o alto desemprego, sem precedentes em nossa história, como o mais grave problema social brasileiro, resultante diretamente das políticas monetária e fiscal restritivas, assim como da abertura comercial sem restrições".


Bela frase essa: trazer a "caixa-preta" da política econômica a debate aberto. Mas, como?, se essa "caixa" já está aberta há muito tempo, seu conteúdo vem sendo exposto nos jornais e revistas e explicado em entrevistas e declarações pelo ministro da Fazenda desde antes de assumir, e seus principais elementos vêm sendo expostos à sanha dos opositores desde o primeiro dia de governo da nova maioria? Aliás, não precisa de nenhum "imperativo moral" para reconhecer que a taxa de desemprego é uma das maiores de nossa história econômica, bastando dar uma olhada nas estatísticas do IBGE (ou, pior, do DIEESE). Que o desemprego resulte das políticas restritivas (há outros fatores, mas concedamos essa prioridade à política econômica) também não exige nenhum prêmio Nobel para constatar, ainda que eu disputaria o papel do comércio exterior (ele apresenta baixo coeficiente no Brasil e de toda forma cria empregos em outros setores).

O problema é que a certeza do diagnóstico não se completa aqui com nenhuma evidência de tipo econômico, pelo lado dos fatores causais. O discurso da "caixa-preta" ? seria a imprensa conivente com essa situação? ? tem mero efeito retórico, e a gravidade da inflação e do descalabro fiscal, por exemplo, também atingem o tecido social, com estragos iguais ou superiores aos do desemprego, sem que os autores do manifesto tenham qualquer lembrança para seus efeitos deletérios na história econômica do Brasil. Em suma, a indignação moral não costuma ser um bom substitutivo da análise econômica.

Não pretendo aqui examinar em detalhe as alternativas de política econômica propostas no manifesto, tanto porque fiz esta análise em documento mais amplo disponível em minha página (veja em <http://www.pralmeida.org/docs/1060ManifestoEconomistas.pdf>). Cabe no entanto observar, uma vez mais, os amálgamas indevidos entre a situação do Brasil e a dos Estados Unidos na época da depressão, que só serve, na verdade, para justificar a demanda por mais intervenção estatal:


"Há alternativa. Ela não passa por mudanças tópicas em um ou alguns dos aspectos da ?coerente? [reparem nas aspas] política ortodoxa em curso, mas pela inversão de toda a matriz da política econômica. Isso significa reforçar a interferência do Estado no domínio econômico, a exemplo do que ocorreu historicamente em situação similar com o New Deal, nos Estados Unidos, para corrigir as distorções provocadas pelo ?livre mercado?, sobretudo o alto desemprego, que compromete a estabilidade social e política do país".


Esse comparativismo é não apenas anacrônico como irrelevante historicamente, também do ponto de vista político e institucional. Como se sabe, toda medida política ? ou todo emprego de recursos escassos, como diriam os economistas ? tem alternativas e elas estão à disposição de qualquer "planejador" devidamente respaldado pelo poder político. Em democracia, as escolhas costumam ser mais restritas do que nos regimes ditatoriais, que não têm os constrangimentos dos parlamentos, da imprensa livre, dos economistas de oposição. Dadas essas circunstâncias, por que as alternativas não poderiam concentrar-se em medidas "tópicas" e precisam, de imediato, passar pela revolução da "inversão"? Os autores do manifesto conseguem se dar conta, finalmente, de que as revoluções, trazendo inversões radicais de orientação política ou econômica, são extremamente raras na história da humanidade, uma vez que as sociedades mudam mais por adaptações graduais e alterações imperceptíveis do que por meio das grandes convulsões sociais? Ainda que não se queira dar ao conceito de "inversão" essas tonalidades jacobinas ou bolcheviques, convenhamos que alterar "toda a matriz da política econômica", como se pretende, representa simplesmente uma pequena revolução que não deixará de afetar a vida de milhares de agentes econômicos ? e de milhões de simples cidadãos, impotentes ? pelo país afora.

Dito isto, a imprensa se deveria perguntar: os autores do manifesto receberam alguma delegação democrática, comprovada no voto, para assim proceder? Qual a legitimidade intrínseca ? e extrínseca também ? que tem esse apelo em favor de uma completa inversão de orientação econômica no país? Trata-se de um mandato auto-atribuído, dependente apenas dos próprios humores cambiantes dos economistas? Se for assim, eles mesmos têm o dever de suscitar o debate democrático a que fazem referência e tentar legitimar, por um mandato expresso, essa função auto-atribuída de tentar inverter a política econômica nacional. Até que eles consigam obter esse mandato, sua manifestação tem tanta legitimidade e poder social quanto um manifesto de senhoras católicas contra a pornografia nas novelas de televisão. Não quero diminuir a importância dessas duas centenas de mentes iluminadas e altamente participantes no debate econômico nacional ? que portanto já existe, está instalado e funcionando, em condições de mercado ?, mas as suas "mercadorias" têm de encontrar compradores com base em suas qualidades intrínsecas, em seu preço, em sua utilidade e escassez relativa.

Infelizmente para os economistas desse novo manifesto alternativo, essas idéias por ele veiculadas têm muitos compradores e consumidores (cativos) dentro da academia, em alguns órgãos da imprensa, mas muito poucos em outros mercados, aqueles bem mais amplos, que funcionam com aspas ou sem. Essas idéias, aliás, não são todas novas, em sua maioria, nem são todas boas (ainda que algumas sejam sensatas em sua banalidade conceitual).

O discurso das alternativas disponíveis é o que mais deveria ser explorado pela imprensa na avaliação desse documento pretendidamente econômico que não passa de um panfleto político. Como dizem seus autores no final do texto:


"Sustentamos que o Brasil tem diante de si uma alternativa de política econômica de prosperidade. O atual governo, que foi eleito em função de expectativas de mudança, tem diante de si a responsabilidade de evitar que a crise social herdada se transforme numa crise política de proporções imprevisíveis, a exemplo do que tem ocorrido em outros países da América do Sul contemporaneamente, e do que ocorreu historicamente na Europa, nos anos 20 e 30. Os obstáculos políticos à mudança não são maiores que os riscos de não realizá-la".


Ou muito me engano, ou as autoridades econômicas vêm fazendo justamente isso: tentando introduzir mudanças sem expandir o quadro de carências generalizadas em que sempre viveu o Brasil, tanto a população em geral como os industriais chorões, os agricultores irrequietos, os sindicalistas brigões e o governo "paupérrimo", inclusive. Todos eles querem isso mesmo o que dizem os manifestantes (uma "política econômica de prosperidade"), mas eles precisariam tentar esclarecer essa questão dos riscos, que não está muito clara em seu manifesto.

Como regra de princípio, toda medida política traz implícita um impacto econômico, já que se trata de alguma disposição afetando o funcionamento do Estado ou diretamente a vida das pessoas. Da mesma forma, toda norma econômica apresenta um custo político, na medida em que as novas regras inevitavelmente afetam patrimônio ou as condições da atividade produtiva ou de intermediação (produzindo menor taxa de "reelegibilidade" nas próximas eleições). Quando os "atingidos" são grupos organizados, não há dúvida que eles não tardarão a mobilizar a grande imprensa na defesa dos "interesses nacionais", cabendo a esta fazer a necessária distinção.

Propostas factíveis

Toda a ciência da arte econômica, ou toda a arte da ciência econômica ? com perdão pela contradição, mas ela é própria dessa disciplina já descrita como "lúgubre" ?, está precisamente em combinar diversos elementos regulatórios ou normativos de maneira a diminuir os custos e aumentar os benefícios para o maior número de pessoas. Nessa combinação reside algum risco, como devem saber os partidários alternativos da ciência sombria. O governo já confessou, abertamente pela imprensa, que examinou os riscos da derrapagem inflacionária e da mudança de sistema cambial (para um mais intervencionista, entenda-se) e concluiu que o caminho de menor risco era o da manutenção das linhas e diretrizes econômicas do ancien régime, descrito pelos economistas alternativos como neoliberal (o que isso quer dizer não ficou muito explícito no manifesto, em face do manifesto intervencionismo do governo anterior, com perdão mais uma vez pela redundância).

Os economistas alternativos acreditam, entretanto, que os "obstáculos políticos à mudança não são maiores que os riscos de não realizá-la" ? o que é uma afirmação bonita, e mesmo clara, do ponto de vista da ciência política. Resta saber se, do ponto de vista econômico, eles mediram os riscos ? alguma simulação econométrica em curso de preparação? ? de uma e outra situação e lograram provar que o risco da mudança é menor (ou pelo menos não maior) do que o da não-mudança.

Um decisor governamental, entretanto, não pode ficar mudando de política todo santo dia, ou pelo menos toda semana, pois que isto aumenta a taxa de volatilidade da economia, como todos devem (ou deveriam) saber. Por isso mesmo, uma cuidadosa análise de custo-benefício (inclusive dos economistas alternativos) deve sempre preceder toda e qualquer mudança de política econômica. Se não fosse assim seria fácil, por exemplo, efetuar a reforma tributária pois que o "risco" de não realizá-la, seguindo a linha argumentativa dos nossos economistas, é muito maior (em face da estrutura antiprodutiva e regressiva do atual sistema) do que de não fazer. Os economistas alternativos deveriam começar, em cada estado, por convencer os governadores dessa realidade tão simples quanto prosaica: mude as regras tributárias atuais, pois mudança sempre é bom?

Esse manifesto deve assim ser entendido, o que aliás está explícito no documento, como um projeto não estritamente econômico e totalmente aberto à uma reflexão de ordem política e social. Excelente, tanto porque o debate sobre as vias alternativas de desenvolvimento econômico e social para o Brasil encontra-se plenamente aberto, como aliás sempre esteve, nas revistas especializadas e nas páginas da grande imprensa. Agora, como economistas, eles falharam miseravelmente, até aqui, em produzir uma única sugestão que não pudesse ser contestada em seus méritos próprios ou com base na experiência histórica acumulada pelo processo de (sub)desenvolvimento econômico e social brasileiro.

Talvez eles devessem iniciar uma nova carreira como políticos, no que certamente encontrariam o apoio de vários órgãos da imprensa, da grande e da alternativa. Eles concluem o seu "manifesto" (as aspas são minhas agora) voltando ao tema da censura:


"Nenhuma das medidas propostas ou seu conjunto são um anátema à luz da história econômica real dos países que experimentaram algum êxito econômico e social, hoje como no passado. Desafiamos os que se escondem por trás da onipotência do deus ?mercado? que sustentem à luz da discussão pública e de suas conseqüências atuais e futuras suas propostas de política econômica. Queremos o debate já. Queremos o exercício democrático da controvérsia. Chega de interdição".


Os economistas do manifesto insistem em falar de "interdição" quando são eles mesmos ? agora, no passado, e seguramente no futuro ? que se ocupam de manter bem acesa a chama do debate econômico, aliás envolvendo eles mesmos, o governo, economistas de direita, observadores do mundo político, jornalistas mais ou menos de esquerda, as donas-de-casa, os especuladores de Wall Street, enfim tutti quanti acreditam ser capazes de um argumento inteligente sobre o rumo atual das políticas econômicas no Brasil. O "exercício democrático da controvérsia" em torno de questões econômicas sempre existiu no Brasil, mesmo nos piores tempos da ditadura: basta perguntar a qualquer economista de oposição, ou hoje de situação. Eu poderia citar, por exemplo, "n" artigos de alguns atuais ocupantes de cargos econômicos ? como também de vários signatários do manifesto ? em veículos sérios como Revista de Economia Política, Estudos CEBRAP, Novos Estudos CEBRAP, Estudos Econômicos, para não falar de revistas da chamada "mainstream economics". Várias deles assinam contribuições regulares na imprensa diária ou em revistas de informação. A referida "interdição da controvérsia", portanto, é algo que só existe na cabeça dos autores do manifesto.

Por fim, permito-me chamar a atenção para dois aspectos praticamente intocados no manifesto dos economistas: para eles não existe um problema fiscal no Brasil e sequer se menciona o buraco previdenciário. A inflação, quem se lembra?, parece constituir apenas uma vaga lembrança de eras geológicas enterradas. Parece incrível que se comprove esse tipo de descaso num país seriamente engajado no primeiro esforço fiscal de toda a sua história econômica, devendo lutar contra uma catástrofe anunciada no setor previdenciário e ainda se debatendo com surtos inflacionários que roubam poder de compra aos mais pobres. Que economistas responsáveis sequer se dignem em tocar nesse tipo de problema me parece sintoma de algo mais grave do que a simples inconsciência social ou o descaso com o que é, e continua a ser, relevante para o país.

Trata-se do conhecido problema da "torre de marfim": eles são economistas acadêmicos e como tais preferem encerrar-se em suas diatribes políticas em lugar de se ocupar dos problemas reais do Brasil. Volto ao início deste ensaio: como considero este manifesto alternativo uma peça essencialmente política, sugiro que os economistas alternativos voltem e façam direito o seu dever de casa. Esqueçam a ideologia e consultem os números da conjuntura econômica, para então, a partir daí, tentar formular políticas econômicas alternativas, economicamente credíveis e tecnicamente sustentáveis, às atuais políticas econômicas do governo.

Se provarem que são capazes de, afastando a diatribe política, embasar economicamente propostas factíveis, eles ganham o direito de continuar participando do debate. Do contrário, correm o sério risco (político e econômico) de caírem na irrelevância política e social. Se isso ocorrer, seria uma pena, pois que eles mesmos estariam se "interditando" de participar, de maneira responsável, de um rico debate sobre o futuro do Brasil.

(*) Diplomata e sociólogo; e-mail: <pralmeida@mac.com>; sítio: <www.pralmeida.org>