Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A liberdade e a utopia jornalística

IMPRENSA & JUSTIÇA

Denise Frossard (*)


Discurso proferido em 7/4/2003, na ABI, na solenidade que marcou o transcurso do 95? aniversário da instituição [veja remissão abaixo]. Título e intertítulos da Redação do OI.


Não posso vir a essa Casa, principalmente em uma cerimônia que marca a data de aniversário da ABI sem que, antes de tudo, renda minhas homenagens a um dos maiores emblemas da cidadania no Brasil.

Falo de um jornalista que sempre atendeu com presteza aos chamados da sociedade quando estavam em jogo as liberdades públicas. É um nome que todos pronunciam com respeito. O mesmo respeito com que eu pronuncio agora, o seu nome. Refiro-me, é claro, e vocês já sabem, a Alexandre Barbosa Lima Sobrinho. O Doutor Barbosa, como vocês diziam com orgulho e repetíamos nós com orgulho igual, ao longo da centenária existência que ele teve.

O jornalista Barbosa Lima Sobrinho guiou por muitos anos e por várias vezes, os destinos dessa casa e, em época recente, guiou o próprio destino do Brasil, em momentos desafiadores para a consolidação das liberdades públicas entre nós.

Há dois momentos mais precisos em que ele expressou a consciência rebelde da cidadania. A primeira, ao navegar com o doutor Ulysses Guimarães na campanha da anticandidatura à presidência da república, enfrentando com a coragem do gesto e da palavra, o belicoso regime militar. A segunda, ao não vacilar em apor sua respeitável assinatura ? como Cidadão Número Um ? no pedido de impeachment de um ex-presidente acusado de integrar um esquema de corrupção, conforme exsurgiu do processo político a que foi ele submetido.

Mas essas duas jornadas não são tudo. Nem são também sínteses de uma vida combativa _ desde a juventude à velhice centenária. Valho-me aqui, para terminar essa homenagem pessoal que faço a ABI e aos profissionais da imprensa, na figura de um dos maiores jornalistas brasileiros, de algumas das observações anotadas pelo jurista e historiador Raymundo Faoro, ao assumir na Academia Brasileira de Letras a Cadeira Número Seis que pertenceu a Barbosa Lima Sobrinho.

O doutor Barbosa, disse Faoro, foi o "mais árduo combatente do nacionalismo brasileiro". Era "uma fortaleza liberal em defesa de sua classe profissional e da nacionalidade". Era, enfim, um "construtor de utopias".

Utopia. Esta palavra, caros amigos, aqui citada na sua pureza democrática, é o conceito que me remete mais diretamente às questões sugeridas no convite que me traz aqui como juíza de direito (aposentada); parlamentar e cidadã.

Já tive oportunidade de referir-me ao que entendo por "Imprensa Livre" e " Liberdade de Imprensa", não só em trabalhos meus já publicados como também reproduzidos tais entendimentos em trabalhos de autores diversos. Seja como for, em qualquer sociedade que não preze pela demagogia democrática, sabe-se que a imprensa livre é característica imprescindível para o aperfeiçoamento das instituições e da sadia alternância de poder do regime político preconizado desde os filósofos gregos. Porém, não se deve confundir imprensa livre, com liberdade de imprensa. A primeira ? imprensa livre ? é uma característica de atuação dos órgãos de informação, quando não sofrem intervenção restritiva e censora de outras instituições tutelares do poder. A segunda ? liberdade de imprensa ? vem a ser, antes de tudo, um direito de todo cidadão de ser bem e honestamente informado e, na outra face da moeda, o dever que os órgãos de informação coletiva possuem de observarem a ética e a seriedade, num incessante e inesgotável sacerdócio de esclarecer e criticar, tendo como alvo utópico a busca do verdadeiro.

Em outras palavras: vejo na expressão "Liberdade de Imprensa" a utopia jornalística. Uma meta a ser alcançada pelos profissionais no dia-a-dia. Na árdua tarefa que é a construção da notícia que deve alimentar de forma correta e responsável a fome dos leitores por informação. Sem erros factuais e de maneira mais objetiva possível.

Indústria de processos

Abstraindo-me de tantas outras questões que influenciam a informação, fixo-me na discutida tese da isenção profissional. Acredito que esteja aqui uma das fontes de desentendimento do jornalista e do leitor. Por conseqüência, razão de um dos conflitos permanentes entre leitores e jornalistas.

O problema todo se confunde com sua própria solução: informar é preciso, sendo que às vezes até vem a calhar?Isto porque e sem querer aqui filosofar, tem-se que a informação, por mito, é o acesso mais fácil à verdade. À par da evolução humanística experimentada pela civilização ocidental nos últimos séculos, e, portanto, afastados os processos mais exóticos e ordálicos, para se chegar àquela, verifica-se que a transmissão de eventos normalmente é informada por visões individuais de interesse coletivo. As conseqüências disso são impressionantes. Mesmo partindo-se da boa-fé e presumindo-se boas intenções do narrador, este terá, na transmissão de evento que noticie, as limitações da sua consciência e da sua percepção. Didaticamente, tão singela abordagem já arrebatou o Oscar no início dos anos 50, como melhor filme estrangeiro, para Rashomon, tornando mundialmente conhecido o gênio de Akira Kurosawa. Pungente a verificação das visões compartimentadas do evento, por cada um dos envolvidos. Sintomático que a conclusão a que se chegue seja a de que, também aqui, a informação que mais se aproxima do que objetivamente ocorreu seja a composição equilibrada de parcelas de cada uma das versões. Sem dúvida, um curioso efeito colateral da síntese hegeliana, que ensina, pelo menos aqui, que a informação final e bem intencionada passará necessariamente por uma formação pluralística.

Não se trata de uma necessidade acadêmica ou de purismos filosóficos. Em se lidando com informação, dirigida às massas, observa-se daí a forja do mais perfeito, poderoso e latente instrumento de formação de opiniões e criador de consciências? Ingênuo aquele que pretenda existir uma completa autonomia entre a informação, o narrador e os interesses da visão particular deste, considerando, na melhor das hipóteses, que este esteja vinculado apenas ao esforço do convencimento e persuasão, quanto ao fato, sua existência e os valores ali debatidos, de forma consciente ou não.

Mas, voltando ao foco da liberdade de imprensa, há uma distinção a meu ver importante a ser considerada. Não se trata, assim, do direito do jornalista dizer o que quiser, escrever o que quiser. Isso faz parte do direito de expressão limitado, também, às regras legais.

São, portanto, conceitos distintos. Um trata da informação, o outro do direito de expressão. Para eles, a imprensa criou regimento próprio que distingue opinião e informação. Ou seja, a análise e a reportagem.

Nessa moldura teórica insiro o fato que, nas duas últimas décadas, mais influenciou a informação no Brasil e tornou-se a maior fonte de conflitos.

Talvez não haja na história da imprensa brasileira um momento como o de agora. Esse cenário foi desenhado a partir do trabalho de investigação do Ministério Público que ganhou, com a Constituição de 1988, uma nova configuração legal e mais amplos poderes.

Se olharmos com atenção, veremos que a fonte maior dos problemas está no trabalho dos promotores que, de forma inédita no país, fez o braço da Justiça alcançar suspeitos que historicamente gozavam de impunidade. Foram além do criminoso pobre, preto e desnutrido. A expressão "denuncismo" traduz o que aconteceu.

O vendaval de denúncias gerou um vendaval de ações judiciais. Estão frente a frente jornalistas e juizes. Em jogo está a Liberdade de Imprensa.

É um momento de extrema gravidade que exige muita reflexão, ponderação e equilíbrio na busca da solução.

O caminho não me parece ser o da censura como está na denominada "Lei da Mordaça". Também não é "a indústria de processos" que força a autocensura. Mas também não está na tarefa de denunciar sem responsabilidade gerando, muitas vezes, na ponta, a quase impossibilidade de efetiva defesa por parte do denunciado.

Cabe ao Ministério Público, por sua vez, cuidar dos excessos e aprimorar as investigações de molde a construírem uma denúncia sólida que, de maneira transparente, não deixem os autos que chegam à Justiça à míngua de provas.

Quarto poder

Desculpando-me pela eventual indelicadeza que a sinceridade impõe, entendo que a imprensa deveria rever conceitos como o de, por exemplo, tratar o investigado como culpado. Muito se fala do "linchamento moral" imposto por alguns órgãos de imprensa. Mas outra face da realidade é que tal procedimento pouco ético e quase sempre também pouco informativo existe, já que parcela substancial da sociedade anseia e aplaude este modelo de comportamento. Os equívocos ou desacertos, maliciosos ou não, quando constatados posteriormente à sua execução, não deixam opção satisfatória e adequada de reparação e conserto, tornando muitas vezes, ridícula, pelos resultados efetivamente atingidos, tal iniciativa. Neste sentido e mesmo diante de uma ou mais determinações judiciais, quantas não foram às vezes em que a resposta do ofendido foi veiculada em espaço diverso, com destaques e características diferenciadas daquelas presentes no texto que o atingiu. Naturalmente que a solução proposta a todas essas mazelas passa, sim, mas pelo fortalecimento da cidadania e pela democratização de tais meios. Quanto mais consciente, participativo e exigente for o cidadão, que não aceita tais abusos e excessos e sendo ele o destinatário final dessa atividade, além da fonte direta da sobrevivência dos meios de comunicação, maior será a cobrança na seriedade do comportamento correspondente e no caráter fidedigno da veiculação e do tratamento da informação recebida.

Faço agora uma incursão lateral ao tema.

O Congresso Nacional ? por motivos que estou sempre pronta a discutir mas que não cabem ser discutidos aqui agora ? tem sido alvo de críticas severas. Não as condeno. Sem o intuito de calar os críticos sempre pondero, no entanto, junto aos mais ferozes que a tarefa de somente denegrir aquelas duas casas legislativas não serve à democracia. Para avaliar a importância do Congresso, digo a eles, basta pensar o que seria do país sem o Congresso. O Congresso com todos os seus vícios mas, também, com as virtudes.

Por que faço menção a isso? Na Câmara dos Deputados ou, mais precisamente, na rotina dos trabalhos das comissões que integro ? Constituição e Justiça, Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado e Seguridade Social (além de integrar o Conselho de Ética) ? e certamente em todas as outras, tenho assistido ou participado de debates, análises, reuniões com autoridades e especialistas que muito ajudariam a sociedade a se inteirar do que, em seguida, vai se tornar lei e afetar para o bem ou para o mal, a vida de todos. Mas em regra não vejo o que se passa lá publicado em lugar algum?

Sem abandonar a tarefa de fiscalização que faz do nosso trabalho, pergunto se já não estaria na hora da imprensa rever, reavaliar, a forma da cobertura cotidiana que vem fazendo na Câmara e no Senado. Não me cabe propor alternativas, até porque não saberia como e o que propor. Deixo apenas as minhas dúvidas expressas aqui.

Por vezes, então, me pergunto se não há nas críticas uma certa dose de injustiça. Uma visão, digamos, unilateral. Repito aqui a observação de um jornalista famoso que não é conhecido exatamente por dar trégua aos parlamentares. Diz ele: criticar o Senado e a Câmara permite ao crítico atacar a boiada sem dar nome aos bois.

O trabalho da imprensa é fundamental numa sociedade democrática. A fiscalização sobre as atividades políticas, sobre a administração pública não pode e não deve parar. A imprensa vocaliza nesse papel o interesse da sociedade. A sociedade, por sua vez, pede seriedade e informação correta.

Para terminar, pedindo desculpas se me alonguei, volto às homenagens.

A Associação Brasileira de Imprensa, ao completar, hoje, 95 anos de vida, há muito já deixou de ser a casa do jornalista brasileiro. Tornou-se de fato e de direito uma das mais importantes expressões da luta pela consolidação da democracia no Brasil. É muito mais até que a expressão da força do "Quarto Poder" é, também, a expressão da vontade soberana da sociedade brasileira. E tantas vezes tem mostrado isso sem medo do risco.

Essa, caros jornalistas, senhoras e senhores, não é apenas uma sentença elogiosa nascida da minha simpatia e das minhas convicções pessoais. Tenho certeza que apenas traduzo, em palavras modestas, o julgamento da História.

(*) Ex-juíza, deputada federal (PSDB-RJ), foi diretora da
organização Transparência Internacional no Brasil

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