Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

A literatura brasileira e a violência

O CRIME NA IMPRENSA

Deonísio da Silva (*)

Vinte e cinco anos, um mês e três dias separam a execução de Celso Daniel, o prefeito de Santo André e o começo do calvário sofrido pelo escritor Rubem Fonseca (1976).

Feliz Ano Novo, sua coletânea de contos, foi lançado em outubro de 1975. O livro tinha vendido cerca de 30.000 exemplares quando Armando Falcão, ministro da Justiça (governo Ernesto Geisel, 1974-1978), assinou a portaria 8.401-B, em 15 de dezembro de 1976, proibindo sua publicação e circulação em todo o território nacional, determinando ainda a apreensão dos exemplares postos à venda, sob a alegação de que exteriorizava matéria contrária à moral e aos bons costumes.

Em maio de 1977, Rubem Fonseca ajuizou ação ordinária contra a União, no Rio. Perdeu em primeira instância, recorreu em 25 de abril de 1980. O que queria o escritor? Anulação do ato e indenização por dano patrimonial e moral. Venceu somente em 1989, no TRF, por 2 x 1, um placar apertado. De que era acusado o escritor? De apresentar personagens praticando violência sem que houvesse sanção alguma, o que resultou em novas acusações feitas ao escritor no correr do processo, uma das quais da autoria do próprio juiz que deu vitória à União em primeira instância: Rubem teria feito apologia do crime e do criminoso.

Não são necessárias muitas pesquisas para reconhecer que o Brasil mudou. Para pior, no que diz respeito à violência praticada contra cidadãos indefesos ou encarcerados em carros blindados, casas semelhando cadeias e condomínios fechados, antes restritos às grandes metrópoles e hoje infestando médias e pequenas cidades brasileiras. É só compulsar jornais e revistas, ligar o rádio ou a televisão. Autoridades e personalidades vêm dizendo há alguns anos o que o escritor antecipara na metade dos anos 70. Muitas estão incorrendo na transgressão atribuída ao escritor, ao reconhecerem que os bandidos estão vencendo a guerra contra as autoridades encarregadas de proteger a sociedade. Não foi apenas Rubem Fonseca que antecipou esse estado de coisas. Outros escritores também o fizeram e vários deles tiveram seus nomes perfilados junto ao dele no rol dos autores proibidos no período pós-64.

Os bandidos de Rubem Fonseca pareceram ousados demais aos censores da época. Comparadas suas ações ficcionais com o que fazem personagens de carne e osso, eles parecem aprendizes, parecem estar dando os primeiros passos no mundo do crime e dos criminosos. Rubem usou como quadro de referência e contexto inspirador de sua ficção a cidade do Rio de Janeiro. O narrador de Corações Solitários, um dos contos do livro proibido, não poderia dizer hoje o que diz na abertura de sua história nos anos 70:


Eu trabalhava em um jornal popular como repórter de polícia. Há muito tempo não acontecia na cidade um crime interessante envolvendo uma rica e linda jovem da sociedade, mortes, desaparecimentos, corrupção, mentiras, sexo, ambição, dinheiro, violência escândalo.


O editor do jornal discorda:


Crime assim nem em Roma, Paris, Nova York ? estamos numa fase ruim. Mas daqui a pouco isso vira. A coisa é cíclica, quando a gente menos espera estoura um daqueles escândalos que dá matéria para um ano. Está tudo podre, no ponto, é só esperar.


As capas de nossas três maiores revistas semanais do último fim de semana atestam que estava tudo podre, era só esperar, mas quem não podia esperar, esperou demais. "Uma nação em pânico", alertou a IstoÉ. "O Brasil ensangüentado", proclamou Veja seguindo o mesmo diapasão.

A capital da violência mudou-se do Rio para São Paulo nos anos 90. Os governos Montoro, Quércia e Fleury (1985-1990) apresentam números semelhantes, com suas estatísticas oscilando entre 40 e 60 mil roubos por ano. Hoje, a cifra passa de 100 mil. No resto do Brasil não foi diferente. O caso dos seqüestros é emblemático. Houve 138 casos de seqüestro em 1999, 91 deles em São Paulo. Em 2001, foram 522. Desses, 327 ocorreram em São Paulo.

Não houve em São Paulo, Recife, Porto Alegre, Curitiba, Campinas e outras cidades quem espelhasse os rumos que a sociedade brasileira vinha tomando? Houve, sim. A literatura brasileira fez a sua parte. Foi por isso que os censores encontraram autores para proibir, às vezes se antecipando aos pesquisadores e docentes de nossas universidades. Os estudiosos de nossas letras, com raras exceções, não tiveram a perspicácia dos censores. Não viram o que estava escancarado a seus olhos. Ilustro com alguns autores emblemáticos. Ignácio de Loyola Brandão, em São Paulo, com os romances Zero e Não Verás País Nenhum. Raimundo Carrero, em Pernambuco, com romances como A maçã agreste e Sombra Severa.

Em todos os arquipélagos literários que abrigam nossos isolados escritores, alguns com fronteiras literárias perfeitamente delimitadas, como o Brasil meridional, o Nordeste e o Brasil central, houve quem expressasse a desordem que tomava conta de nossas metrópoles, cidades e vilas. Hoje, cidades como Campinas e Ribeirão Preto, no interior de São Paulo, têm em comum com as grandes metrópoles, não as alternativas de serviços públicos, o acesso à cultura e ao lazer, mas a violência que grassa sem dó nem piedade, alastrando-se por todas as classes.

A sociedade brasileira, por meio de respeitáveis figuras que aprendeu a respeitar, está perplexa. O deputado José Genoíno pede a famigerada Rota nas ruas. O ministro da Justiça, Aloysio Nunes Ferreira, num momento de grande infelicidade e pouca reflexão, deu a entender ao distinto público que se nossas forças policiais repetissem os procedimentos utilizados quando combatia os tidos por subversivos, a coisa estaria melhor. O jornalista Elio Gaspari foi um dos primeiros a reclamar. O ministro queria a tortura de volta, por exemplo?

O que estarão escrevendo os escritores, hoje? A imprensa lhes dá a cobertura que dava nos anos 70? Não. Não sabemos de quase nada pela imprensa. Nossos cadernos literários estão, com as exceções de praxe, ocupados pelos mesmos minimalistas de sempre. Os bandidos, enquanto isso, trabalham Na Mão Grande ? título, aliás, de um dos livros de Ariosto Augusto de Oliveira, um grande e desconhecido escritor paulista que, à semelhança de outros, paulistas e de outros estados, continua ignorado.

(*) Escritor e professor da Universidade Federal de São Carlos, doutor em Letras pela USP. Seus livros mais recentes são o romance Os Guerreiros do Campo e De Onde Vêm as Palavras.