Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A última coluna

Lira Neto, ombudsman de O Povo

“O tempo é a substância de que somos feitos”
Jorge Luís Borges, escritor argentino

 

E

sta é a última coluna que assino como ombudsman. Na próxima quinta-feira, dia 31 de dezembro, encerro meu mandato como representante dos leitores do O Povo. Durante um ano inteiro, procurei fazer deste espaço um exercício sistemático de reflexão sobre o papel da imprensa e sobre o fazer jornalístico. Não foi uma tarefa fácil. Desde o primeiro dia no cargo, sabia que iria encarar um trabalho permeado por conflitos e áreas de atrito. Teria que, diariamente, através da crítica interna, cortar a própria carne, avaliar e criticar o trabalho de pessoas que, em alguns casos, faziam parte de meu círculo íntimo de amizades. E a cada semana, toda segunda-feira, expor aqui, publicamente, as reflexões tiradas de tais embates.

Nós jornalistas, críticos ferrenhos de tudo e de todos quando estamos no desempenho da profissão, sofremos de uma distorção crônica: não costumamos reagir muito bem quando nós próprios deixamos de ser o estilingue e passamos à condição de vidraça. Os conflitos com os colegas, portanto, não foram poucos. Em determinados instantes, chegou-se mesmo ao pugilato verbal e ? em poucos casos, felizmente ? a crítica ameaçou ser recebida como rusga pessoal.

Ombudsman x Redação

Noutras vezes, a reação foi marcada pelo corporativismo: criticar determinada matéria correspondia a declarar guerra à Redação inteira. Cheguei por exemplo a receber um abaixo-assinado, enviado por 34 jornalistas, em solidariedade a um colega que havia sido alvo de uma avaliação negativa. Um momento de corporativismo e tensão extrema, que exigiu doses extras de ponderação para ser, aos poucos, pelo menos parcialmente dissipado. Em alguns instantes, o ombudsman talvez possa ter errado, excedido por vezes, quem sabe, o tom e o volume da crítica. Afinal ninguém está imune ao erro, à falibilidade humana. Em contrapartida, em situações-limite, talvez tenha faltado a setores da Redação a consciência e a segurança para perceber o ombudsman não como um algoz, como um adversário a ser odiado, mas como um parceiro em busca de um jornalismo com menos erros, um jornalismo mais confiável, com menos deslizes éticos. Ao final de tantos embates, impossível deixar de reconhecer que ombudsman e Redação saíram mais maduros do conflito. Durante todo o ano, em um processo de aprendizagem mútua, a Redação aprendia a ser criticada, o ombudsman aprendia a criticar.

Conflitos de interesses

O trabalho do ombudsman não se resume à tarefa de ouvir atentamente as broncas dos leitores ou às polêmicas acirradas com os companheiros de ofício. Em seu trabalho de avaliar diariamente o jornal, o ombudsman depara-se, inevitavelmente, com as contradições inerentes à própria imprensa. Contradições indissolúveis, que nascem do próprio caráter das empresas de comunicação, que têm na informação a sua matéria-prima e na notícia a sua principal mercadoria. Administrar uma empresa jornalística significa administrar conflitos de interesses. Boa parte das vezes, a liberdade de expressão pode se voltar contra a própria saúde financeira dos jornais: o que é notícia quente para a Redação, por exemplo, pode ser incômodo para alguns dos principais anunciantes da casa. Esse tipo de problema é ainda mais grave na imprensa regional, onde as empresas de comunicação quase sempre fazem verdadeiros milagres financeiros para colocar o jornal, todos os dias, nas ruas.

A esquizofrenia da notícia

Como bem observou certa vez o leitor Ricardo Salmito, os jornais sofrem de uma flagrante esquizofrenia. Jornais são, a um só tempo, empresas e instituições. Como empresas, é legítimo que busquem sempre uma melhor lucratividade, que tenham como meta ampliar fatias no mercado publicitário, conseguir novos clientes, enxugar custos. Mas, como instituição, os jornais prestam um serviço público, que tem seu grau de eficiência medido justamente pela responsabilidade, imparcialidade e independência política e econômica no noticiário que oferecem à sociedade. O problema é que o mundo do jornalismo e o mundo dos negócios nem sempre compartilham dos mesmos propósitos e estratagemas. A lógica do capital e a ética da informação transitam por esferas distintas, por vezes opostas. É claro que tais conflitos de interesses, próprios das empresas de comunicação, refletem-se com constância nas páginas diárias dos jornais.

Isso aqui ou em qualquer lugar do mundo. Quando tal ocorre, o leitor e a função social do jornalismo são sempre os principais prejudicados. Por uma questão de compromisso com a essência filosófica do cargo, o ombudsman tem o direito ? e, principalmente, a obrigação ? de manifestar-se a respeito. De discutir cada caso de modo transparente. De aproveitar a ocasião e convidar os leitores à reflexão sobre as muitas virtudes e os infinitos pecados das empresas jornalísticas.

Maldição de Sísifo

Durante o mandato como ombudsman, não me faltaram oportunidades de chamar a atenção para as contradições do negócio informativo. A absoluta liberdade para tocar em tais assuntos, inclusive publicamente, na coluna das segundas-feiras, foi a prova definitiva de que a função do ouvidor está devidamente consolidada no O Povo. E que é impossível recuar.

Embora tenhamos todos que reconhecer que grande parte dos problemas, a despeito das críticas do ombudsman, ainda permaneçam existindo. E que, portanto, muito ainda falta para ser feito. Afinal, como me sugeriu o leitor Jorge Pieiro, a tarefa do ombudsman assemelha-se mesmo à maldição de Sísifo. Aquele que, segundo a mitologia, foi condenado a carregar uma enorme pedra até o alto da montanha, para logo depois vê-la despencar lá de cima. E assim voltar a carregá-la, para ela tornar a cair. Refazer então mais uma vez o trabalho, que insiste em rolar de novo montanha abaixo. Sempre assim, indefinidamente.

Ver com olhos livres

Mas é chegada a hora de troca de guarda. Saio para merecidas férias em janeiro e retorno para o convívio da Redação, como repórter, em fevereiro. Cabe agora ao colega Gibson Antunes, jornalista experiente, levar adiante a tarefa de Sísifo. A partir do primeiro dia de janeiro, é ele o novo ombudsman do O Povo. Resta-me pois desejar-lhe boa sorte. Por fim, é claro, tenho que agradecer a companhia fiel do leitor, que através de cartas, fax, e-mail ou telefonemas, ajudou-me durante todo este ano a ver o jornal com olhos livres. Sem dúvida alguma, o resultado do trabalho do ombudsman depende diretamente da participação do público.

Que o leitor continue então exigindo, sugerindo, criticando, opinando. Exercendo o seu direito de leitor. E, por conseqüência, seu direito de cidadão.

(*) Publicada em 28 de dezembro de 1998. Copyright O Povo.

 

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