Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A mídia como braço do governo

COBERTURA DE GUERRA

Marinilda Carvalho

Este título vem de uma frase de John R. MacArthur, publisher da Harper?s e autor do livro Second front: Censorship and propaganda in the Gulf War (Hill & Wang, 1992). Disse ele, em matéria citada aqui no Observatório: "A mídia age como braço do governo, oposta à informação independente e objetiva, como deveria ser". Parte significativa da imprensa americana pôs bandeirinha na lapela e incentivou a investida dos Estados Unidos na Ásia Menor. A mídia afegã deve fazer o que para mostrar seu apoio ao governo talibã? Pegar em armas? E a imprensa nazista? Caçava e executava leitores judeus?

Na quarta-feira [10/10], a Casa Branca pediu bom senso à imprensa para divulgar as mensagens da organização terrorista al-Qaeda e de seu líder, Osama Bin Laden, que poderiam estar enviando mensagens codificadas a seus cúmplices mundo afora. Na quinta, foi a vez dos jornais. Se não fosse trágico, seria cômico. Desde quando Laden precisou da mídia ocidental para montar suas operações? A Casa Branca está fazendo clara contrapropaganda de guerra. Deve ser insuportável ver a face do pior inimigo em todas as telas de TV e capas de jornal. O resultado, todos conhecem: cadeias de TV prometem obedecer, zelosas; jornais mais ou menos protestam.

As mesmas redes, e também a mídia impressa, repetem sem contestação informações claramente de propaganda do Pentágono. Uma delas: os líderes talibãs estão mortos, o governo, prestes a cair. Nenhum repórter pergunta: quem então mantinha sob custódia o jornalista francês Michel Peyrard, preso como espião por ter entrado no Afeganistão sob os panos de uma burca? A quem estava se dirigindo o presidente Jacques Chirac para pedir sua libertação? Outra: todas as baterias antiaéreas do Afeganistão foram destruídas, papagueavam as redes, repetindo o Pentágono. Mas as imagens da TV al-Jazira mostravam fogo antiaéreo nos céus de Cabul! Na quinta-feira passada, a CNN ? e seu papagaio Globo News ? entregava os pontos: o secretário de Defesa Donald Rumsfeld reconhecia que de fato sobrara alguma artilharia antiaérea talibã.

O engraçado é que quando o Talibã informa que uma mesquita foi arrasada pelos mísseis americanos, matando 15 fiéis, os repórteres acrescentam: os aliados não confirmam a informação. Mas, quando o Pentágono solta suas bombas propagandísticas, ninguém ressalva que "a informação não foi confirmada pelo Talibã". Sob qualquer manual de ética, isso é torcida.

Nem é preciso citar Hobsbawm para afirmar que mídia é arma, e não é de hoje, mas vá lá. Disse ele, em Era dos extremos, que o rádio fora transformado em ferramenta poderosa de informação de massa, "como governantes e vendedores logo perceberam, para propaganda política e publicidade". Ele lembra que no início da década de 1930 o presidente dos EUA já descobrira o potencial da "conversa ao pé da lareira" pelo rádio. "Na Segunda Guerra Mundial, com sua interminável demanda de notícias, o rádio alcançou a maioridade como instrumento político e meio de informação."

Se a prática da manipulação da mídia pelos governos é tão sabida, como pode a imprensa mais preparada do mundo, a americana, entregar-se tão abertamente à Casa Branca e a seus propósitos? Pudemos perceber a progressiva entrada da CNN na torcida pela retaliação já na quarta-feira, dia 12, quando a apresentadora Judy Woodroof, da sucursal de Washington, começou a exigir resposta militar imediata do governo, em meio a orações a Deus pelas almas dos mortos e acessos de sentimentalismo. A combinação não surpreende ? Jung dizia que o sentimentalismo é uma superestrutura que encobre a brutalidade ?, apenas irrita o telespectador. Com o passar dos dias, as patriotadas só se avolumaram.

Se a imprensa apóia governo numa causa que à maioria parece justa poderá apoiar também na injusta. Imprensa tem que apoiar leitor, com informação segura, isenta e confiável para que ele forme sua opinião e não entre em histerias coletivas. A mídia levou a população americana a um patamar tal de intolerância que telespectadores e leitores exigem cabeças de discordantes. Ruth Flower, diretora de políticas públicas da Associação Americana de Professores Universitários, está preocupada, como contou matéria publicada aqui no Observatório. "Há um forte consenso no país, como não se via há tempos, mas um consenso que não permite discordâncias, que interfere na liberdade acadêmica e não é nada saudável."

Patacoada levada a sério

A emoção de um repórter diante da tragédia é natural. Antinatural é fazer desta emoção um show, e direcionar a emoção da audiência para o ódio e a retaliação.

Muitos hão de lembrar que nos anos da Segunda Guerra Mundial toda a imprensa aliada contribuiu para o esforço de guerra. Repórteres de grandes jornais vestiam uniforme militar na cobertura dos combates, bem à vontade. Então, qual a diferença? É que acabou a inocência. A última guerra "justa" terminou em 1945. Isso pode soar até como heresia para os mais objetivos, dados os interesses econômicos então em jogo, mas esta é outra prateleira da biblioteca; derrotar o nazi-facismo foi, é e sempre será uma causa justa. Mas quando os soviéticos bombardeavam a terra crestada do Afeganistão nos anos 80 a imprensa americana seguiu seu governo e protestou. Agora é justo? Aqui não há justeza a discutir: é patriotada mesmo, e o preço é a eliminação da consciência. Indiscutível é o papel da imprensa nesse processo. Ao considerar o mundo exterior irrelevante, com respeitosas exceções, a autocentrada mídia americana ajudou a moldar a alienação do público, agora dolorosamente perplexo com o ódio que desperta planeta afora.

É triste constatar que a mais avançada imprensa do mundo é também a mais manipulável pelo governo. Aqui no Brasil, causa tristeza ver uma imprensa acrítica, que reproduz acriticamente o patético pronunciamento do presidente Fernando Henrique Cardoso na segunda-feira, 8 de outubro, em cadeia nacional. Como pôde a mídia levar aquela patacoada a sério?

Disse Millôr Fernandes: "Imprensa é oposição, o resto é armazém de secos e molhados". Se não foi bem assim, o sentido é este. Em qualquer continente, é isso que uma mídia séria ? ou melhor, a mídia tout court ? deve ser. Sem infantilismo, sem denuncismo, mas de oposição.

    
    
                     

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