Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A mídia e a cobertura do novo governo

ENTREVISTA / BOLÍVAR LAMOUNIER

Mauro Malin

"O grande desafio da mídia nos próximos anos será manter o discernimento e o indispensável distanciamento crítico." A avaliação é do cientista político Bolívar Lamounier, fundador do Idesp (Instituto de Estudos Econômicos, Sociais e Políticos de São Paulo) e participante do Inter-American Dialogue, organização não-governamental sediada nos Estados Unidos cujo objeto principal de estudos são os assuntos interamericanos. Nesta entrevista ao Observatório da Imprensa, Lamounier analisa os desafios que a mídia deverá enfrentar na cobertura das ações e do dia-a-dia do governo que toma posse em 1? de janeiro de 2003. Com o também cientista político Rubens Figueiredo, Lamounier é organizador da obra A Era FHC, um balanço, lançada em maio passado, pela Cultura Editores Associados, na qual acadêmicos e jornalistas analisam os dois mandatos do presidente Fernando Henrique Cardoso.

O senhor concorda com a idéia de que a mídia é uma espécie de instância não-eleita de governo?

Bolívar Lamounier ? Nenhuma sociedade moderna tem seus rumos determinados apenas pelas instituições que encarnam formalmente o governo. Para o bem e para o mal, as empresas, os sindicatos, as igrejas e naturalmente também a mídia participam da formação da vontade coletiva e, pelo menos indiretamente, do processo decisório. Neste sentido amplo, sim, a mídia é uma das instâncias de governo. É também verdade que os principais veículos da mídia exercem, no dia-a-dia, mais influência do que muitos governos estaduais e do que os próprios partidos políticos, considerados individualmente. A constatação desses fatos não me leva, porém, a aceitar a teoria um tanto conspiratória de que a mídia seria o verdadeiro poder. Essa teoria não leva em conta os seguintes aspectos: a) num país do porte do Brasil, a mídia não atua em bloco, uma vez que há concorrência entre as empresas que a compõem; b) como outras instituições, a mídia é forçada a obedecer limites éticos e legais; o próprio mercado, ou seja, o público consumidor, ao reagir contra excessos e partidarismos, fiscaliza a mídia e a obriga a manter-se dentro de limites razoáveis; c) quando os conflitos que se manifestam na sociedade requerem a aplicação da lei ou até o recurso à força, ou seja, quando se chega ao limite, à ultima ratio, fica evidente que quem governa é o governo, vale dizer, o poder escolhido e legitimado pelo voto dos cidadãos.

Nesse caso, como garantir, no curso do processo político, que ela tenha a maior liberdade, e ao mesmo tempo que a sociedade exerça a necessária fiscalização, já que a atividade de informação é de total interesse público?

B.L. ? Numa sociedade democrática, a liberdade da imprensa é assegurada, primeiro, por dispositivos constitucionais; segundo, pelo mercado, vale dizer, pela existência de veículos concorrentes, cada um se empenhando em conquistar uma audiência formada por cidadãos que também têm assegurada a sua liberdade de escolher; terceiro, pelo pluralismo social e político, isto é, por uma multiplicidade de organizações, como partidos, organizações não-governamentais, entidades de representação profissional e outras, que em conjunto contribuem para que a mídia seja livre e também para que exerça sua liberdade com equilíbrio e discernimento. Desde a redemocratização do país, nos anos 80, o Brasil melhorou muito sob dois aspectos, pelo menos: a Constituição de 1988 acabou com as restrições do período ditatorial e o pluralismo social tem se manifestado com notável vigor. O que ainda preocupa é a debilidade econômica da mídia, mesmo dos maiores órgãos. Essa debilidade inibe a diversificação da mídia e torna-a pelo menos em tese vulnerável à manipulação ou cooptação pelo governo.

Uma das leituras generosas (mas cabíveis) da vitória de Luiz Inácio Lula da Silva nas eleições presidenciais é a de que se tratou da conclusão do ciclo de redemocratização do país. Se isso é verdade, a mídia está agora, claramente, diante de uma realidade nova. Quais são, na sua opinião, os novos desafios para a cobertura jornalística dos fatos da vida social e da política?

B.L. ? O grande desafio da mídia nos próximos anos será manter o discernimento e o indispensável distanciamento crítico. Esse problema não existia no período ditatorial, quando o questão maior era a censura, o cerceamento, as restrições diretas à liberdade. Tendo oportunidade de investigar e criticar, a mídia criticava, em nome de valores democráticos. De 1988 para cá, e sobretudo no governo Fernando Henrique, com a liberdade assegurada, o quadro já se tornou mais complexo . Ninguém poderia ser contra o controle da inflação, mas, a partir daí, os objetivos e princípios subjacentes às reformas econômicas não geravam o mesmo grau de consenso Assim, uma parte da mídia aprovou e outra parte desaprovou a implementação de reformas voltadas para a austeridade fiscal e o fortalecimento do mercado. Da mesma forma, na área social, as avaliações se tornaram mais difíceis. Onde alguns viram uma saudável arrumação da casa, um combate ao desperdício e à corrupção, um melhor direcionamento dos gastos públicos, outros viram apenas insensibilidade, contenção de gastos, uma orientação meramente fiscal, e assim por diante.

Pois bem, agora, com a chegada de Lula à presidência, essa percepção de que os problemas sociais não eram resolvidos por pura insensibilidade ou falta de empenho será posta à prova. Sensibilidade e empenho com certeza não faltarão. O problema, então, será a qualidade desse esforço, o maior ou menor discernimento com que o governo irá determinar os seus objetivos específicos, a competência com que perseguirá esses objetivos, e assim por diante. Como os fins parecerão divinos, o diabo poderá buscar abrigo na esfera dos meios. E esse, creio eu, será o grande desafio para a mídia: reconhecer e respeitar a disposição do novo governo em melhorar as condições sociais, mas ao mesmo tempo avaliar e fiscalizar, com discernimento e competência, como essa intenção será levada à prática.

Sabemos que a mídia, no mundo todo, é governo-dependente (et pour cause). No plano federal brasileiro, isso aponta, passado o atual período de relativo entusiasmo, para uma convivência mais aos tapas do que aos beijos entre mídia e poder. Quais seriam suas hipóteses para imaginar como vai se desdobrar esse relacionamento?

B.L. ? Acho que isso vai depender muito do desempenho do governo Lula. Numa hipótese otimista, de bom desempenho, em que o governo cultive a popularidade, o que é natural, mas sem resvalar para o populismo, sem desordem fiscal, sem relaxar no combate à inflação, sem se deixar levar pelas pressões contraditórias dos movimentos organizados que o apóiam, o risco será o governismo, a cooptação, a falta de independência. Na hipótese contrária, se o governo começar muito mal, a mídia terá de exercer com severidade o seu papel crítico, e isso também não será fácil, pois nesse quadro hipotético o país viveria sob uma atmosfera muito tensa.

A pesquisa As Elites Brasileiras e o Desenvolvimento Nacional: Fatores de Consenso e Dissenso, realizada pelo Idesp (Instituto de Estudos Econômicos, Sociais e Políticos de São Paulo) e divulgada em 4 de novembro, ouviu 500 pessoas, divididas entre grandes empresários (EMP), pequenos e médios empresários (PMEs), sindicatos trabalhistas (SIN), legislativo federal (LEG) , executivo federal (EXE), sistema de justiça (JUD), imprensa (IMP), associações (ONGs, na abreviação, mas a categoria incluiu o alto clero católico) e intelectuais (INT). As respostas dos jornalistas às perguntas da tabela 3, sobre a avaliação geral do governo Fernando Henrique, aqui tomadas a título de exemplificação, se aproximam muito da média (em %):

 

IMP

TOT

Ótimo

3

6

Bom

42

42

Regular

35

32

Ruim

13

14

Péssimo

5

5

Sem opinião

2

1


Em muitos outros itens, ao longo das 30 tabelas da pesquisa, encontra-se tal coincidência. Entretanto, na tabela 3, quando se pergunta se "melhorou um pouco" ou "melhorou muito" a "auto-estima como país: orgulho de ser brasileiro", desde1980, os jornalistas se afastam da média (42%) e produzem uma porcentagem (35%) que só é tão baixa quanto a dos intelectuais (34%) e a dos sindicalistas (35%). [Para melhor entendimento do leitor, as demais são: EMP, 53%; PME, 74%; LEG, 61%; EXE, 60%; JUD, 45%; ONG, 53%.] Na sua opinião,isso se deveria a um realismo maior dos jornalistas (e dos intelectuais e sindicalistas), ou a algum outro fator? É possível imaginar que essa visão mais crítica, ou menos entusiasmada, condicione o modo de abordagem da realidade pelos jornalistas?

B.L. ? Os sindicalistas mostram-se negativos neste item porque se mostram negativos em praticamente toda a pesquisa. É uma visão meio de esquerda, de crítica sistemática a tudo o que foi feito e a tudo o que aconteceu durante o governo Fernando Henrique, com muito poucas nuances. A convergência de jornalistas e intelectuais com essa visão dos sindicalistas provavelmente se deve à preocupação desses dois setores com a tensa situação social do país . Nesses dois grupos, jornalistas e intelectuais, mesmo as pessoas que acham acertadas as diretrizes econômicas e as reformas implementadas pelo governo Fernando Henrique têm consciência de que o crescimento foi insuficiente, que o desemprego preocupa, e que não avançamos muito na redução das desigualdades sociais. Assim, o padrão indicado pelos percentuais de resposta parece-me realista. Esses grupos entendem que o Brasil tem uma forte identidade nacional, que as instituições se fortaleceram e o país melhorou sob muitos aspectos, mas não vêem como a auto-estima possa ter melhorado muito se as condições sociais continuam tão ruins. Seria essa visão mais crítica capaz de condicionar a maneira como os jornalistas vêem a realidade? Acho que sim. Essa visão crítica da auto-estima é, em parte, reflexo ou manifestação de uma visão naturalmente mais crítica, mas trata-se de uma rua de mão-dupla, ou seja, é também algo que reforça ou retroalimenta uma visão algo negativa da realidade, em comparação com outros segmentos sociais representados na pesquisa.

Como evitar que as conquistas obtidas ao longo dos dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso sejam desprezadas ou subestimadas sob o impacto da retórica dos novos governantes, retórica à qual a mídia nem sempre sabe resistir? (O mesmo se aplica ao governo petista no Rio Grande do Sul.) Como deveriam os jornalistas, na sua opinião, vacinar-se contra a retórica e as "plantações" que são o feijão-com-arroz da vida política?

B.L. ? O grande problema desses últimos anos, que se manifestou de maneira aguda na campanha presidencial, foi a perda da perspectiva histórica. O próprio candidato José Serra, ao não se identificar com o governo Fernando Henrique, contribuiu para essa perda. Dizer que há muita pobreza e muita exclusão social, que o ensino é muito ruim e mais isso e mais aquilo, é fácil ? eu também digo isso todos os dias. O problema é quando se começa a dizer ou a insinuar que era muito melhor no passado, como se o dirigismo econômico e a complacência inflacionária que prevaleceram dos anos 50 ao início dos 90 tivessem nos legado uma sociedade mais integrada. Ou, pior ainda, quando se começa a dizer que estaríamos melhor se, em 1994, não tivéssemos optado pela estabilização e pelas reformas. Se não tivéssemos feito essa opção, é evidente que teríamos chegado à hiperinflação propriamente dita e a um nível espantoso de conflito social, sabe Deus com que conseqüências.

O senhor acha que a cobertura dos trabalhos dos Legislativos deveria ser aprimorada?

B.L. ? Sem dúvida, mas também acho que já melhorou muito de uns 15 anos para cá. O Legislativo também melhorou, tornou-se mais aberto e transparente, o que facilita muito as coisas. O problema que a meu ver permanece é de fundo. Numa sociedade como a nossa, o Legislativo tende a ser criticado não apenas por seus defeitos reais, mas também por muitos imaginários, e até por suas virtudes. A própria idéia de política, da atividade parlamentar, da composição dos conflitos pelo debate e pela negociação, é freqüentemente rejeitada e atacada como se fosse sinônimo de de desperdício e corrupção. Esse entendimento antipolítico da política e do Legislativo renasce continuamente no subsolo da sociedade, no mau humor cotidiano, nas agruras do dia-a-dia. Confrontada com essa pressão social, a imprensa nem sempre encontra o ponto de equilíbrio, que seria criticar os defeitos reais do Legislativo, mas sem fazer concessões a esse imaginário antipolítico, que no fundo é contrário à própria democracia.

O senhor sente falta de uma melhor cobertura da vida brasileira fora das pontas do triângulo São Paulo-Rio-Brasília?

B.L. ? Sim. O triângulo SP-RJ-DF é como o ápice de uma pirâmide, mas um ápice a partir do qual não se consegue ver a base. Acho que falta informação sobre a vida das outras regiões e parece também faltar espaço para que jornalistas, intelectuais e outros intérpretes da vida social fora desse triângulo se expressem na esfera nacional. Os artistas conseguem vencer essa barreira e ganhar visibilidade nacional, mas tenho a impressão de que o mesmo não se verifica na maioria das demais profissões.