Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A mídia entre perdas e danos – II

BOMBAS & MANCHETES

Ivo Lucchesi (*)

O tempo passa, entretanto com ele não passa o furor de uma escalada de horror que se multiplica em horas e locais dos mais diversos. Em nome da "Justiça Infinita", título dado pelo governo Bush II, o mundo se faz palco de sucessivos atentados no quais, em comum, reside o fato de ouvir-se a "voz" do "inimigo silencioso" que, por meio de explosões, fala a única língua por ele aprendida e por outros incentivada. Em meio a tal quadro, a mídia julga estar realizando seu papel de registrar e cadastrar as perdas irreparáveis. Sataniza-se Osama bin Laden e morrem civis no Afeganistão. Demoniza-se Saddam Hussein e vidas produtivas como as de Sérgio Vieira de Mello são expulsas da existência.

Até agora, a "Justiça Infinita" parece não haver iniciado, a julgar pelo montante de mortes injustas. A mídia, porém, não ousa iniciar uma campanha em favor da indignação. O verdadeiro saldo conquistado pela "sofisticada inteligência tecnológico-militar americana" amealha um elenco de atrocidades e incompetência.

Ignorância suspeita


A tendência do senso comum é a de, perante fatos insólitos ou inapreensíveis por qualquer lógica imediatamente tranqüilizadora, rotular tudo de "absurdo". O que, porém, o senso comum não alcança é a idéia da inexistência do "absurdo". Compreendamos, pois, que, para o "absurdo" possa haver duas conceituações:

** o espanto da razão dogmática, ante a constatação de que, para além da verdade plena e esclarecedora, há o imprevisível e o inesperado;

** a exposição de um enredo inapreensível pela lógica do previsível.

A nova configuração do mundo requer leituras atentas e desconfiadas. Não seria, talvez, a hora de a mídia internacional partir para uma ação comunicativa integrada, voltando-se para uma abordagem mais arrojada? Ou será cômodo e rentável manter-se na condição de mera "caixa registradora" de catástrofes calculadas? Até quando jornais estamparão notícias como "Atentado fez subir o preço do barril [de petróleo]"?

A rede de acontecimentos pós-11 de setembro assumiu um perfil tal que é impossível à inteligência inquieta não ocorrer a suspeita de que, em lugar de uma situação de absoluto descontrole, estar em curso o plano de requintado controle do qual "grupos de força" fazem a fatura. Gás natural no Afeganistão, petróleo e água no Iraque, somados a altos gastos militares a encherem os cofres da indústria armamentista, em aliança com gordas faturas para quem vende e transporta o chamado "ouro negro", parecem constituir-se num imenso palco para rentáveis investimentos.

Quem se põe a analisar as condições nas quais se deu o atentado à sede da ONU, em Bagdá, não encontra mínimas razões plausíveis para tamanha ingenuidade, no tocante ao descuido com elementares medidas de segurança que seriam da inteira responsabilidade das forças de ocupação. Sim, afirma-se que as mortes de Sérgio Vieira de Mello e demais vítimas devem ser imputadas ao "terrorismo de Estado" sob o patrocínio da leniência do governo americano.

Ninguém foi capaz de justificar por que um caminhão transportando uma betoneira entra em local, uma semana antes listado como alvo possível de retaliação. Nenhuma vistoria ou checagem. Mais: é inadmissível que o serviço de "segurança" da sede estivesse sob o comando de ex-agentes do regime deposto. Em sendo isto verdade, então o enredo se torna ainda mais pífio ante a radical ingenuidade daqueles que se arvoram como os tutores do mundo livre. A mídia oficial, todavia, não investiga, nem pontua criticamente uma atitude mais severa.

Interesses macabros

É bom reavivar-se a memória quanto ao fato de a estratégia das negociações sob a condução de Sérgio Vieira de Mello fora por ele declarada dias antes, destacando que o objetivo de sua missão consistia em, num prazo o mais acelerado possível, restituir autonomia e soberania ao Iraque. Registre-se ainda que, no momento da explosão, Sérgio Vieira de Mello encontrava-se em reunião com Arthur Helton e Gil Liscia, dois dos principais representantes da Opendemocracy, importante organização no projeto de recomposição do Iraque. O primeiro morreu e o segundo está gravemente ferido.

No mesmo dia do trágico fato com o qual se encerrava a vida do digno diplomata brasileiro, em Jerusalém outro ato criminoso gerava mutilações e mortes em inocentes e indefesos seres, entre os quais inúmeras crianças. Eis que o ato trouxe novamente àquele cenário o congelamento total das negociações de paz, devolvendo ao conflito entre Israel e Palestina uma agenda de extermínios mútuos.

Setores lucram com o sangue alheio. Diferente não se deu em Bombay, que já se fazia ausente do noticiário há algum tempo. De novo, portanto, na Índia também se eleva a temperatura da violência. Outro atentado, desta feita a uma das mais tradicionais mesquitas iraquianas, matou Al Haquin, líder xiita, o que, uma vez mais, recolocou o Iraque nas manchetes sangrentas.

Parece, pois, que a espiral prossegue em rota infinita. Paralelamente aos horrores cotidianos, o noticiário dá conta de que o JP Morgan Chase, por indicação das "forças de coalizão", foi o banco americano escalado para atuar como Banco do Comércio do Iraque, enquanto as empresas americanas Halliburton ? nas quais, entre 1995 e 2000, o atual vice-presidente dos EUA Dick Cheney atuou como diretor-presidente ? serão agora contempladas com novos contratos decorrentes de operações no Iraque. Como se vê, o quadro aponta para graves indícios (senão manobras) que fazem trepidar os pilares da ética.

A "reengenharia dos interesses macabros" não dá sinais de estancamento. Assim, enquanto a lógica do "exterminador do presente" varre, por vias indiretas, os restos mortais de Sérgio Vieira de Mello, a mesma matriz do horror prepara capítulos à frente. Surge, no horizonte político-cinematográfico americano, a figura "heróica" de Arnold Schwarzenegger, o "exterminador do futuro". Na linha de sucessão, o "astro" traz, em parte do próprio nome, o que para o imaginário puritano e salvífico é indispensável: "war". A guerra, pois, tanto parece estar no sangue quanto no nome.

Até quando?

(*) Ensaísta, doutorando em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular do curso de Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), RJ