Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

A máscara da face

A GLOBO MUDOU

Gilson Caroni Filho (*)

Que toda unanimidade é burra já sabíamos desde Nélson Rodrigues. Que sua arquitetura requer a rápida desconstrução do passado e o mergulho açodado em um jogo tolo de aparências aprendemos recentemente, no curso de uma campanha eleitoral que ainda não terminou. A festejada isenção da TV Globo no processo, com direito a elogios à “admirável redefinição editorial da emissora”, mostrou-se um sonho de outono que mal adentrou a primavera. É o caso de, mais uma vez, lembrarmos aos críticos que o pressuposto de seu exercício é o distanciamento do objeto analisado. Comemorações precipitadas obrigam a reavaliações amargas. Ou, em casos agudos de cinismo, a uma aposta no esquecimento do que foi dito e/ou escrito.

Bastaram a proximidade do segundo turno e o estímulo de uma medida provisória visando regulamentar a participação do capital estrangeiro na mídia, às vésperas do debate entre os candidatos, para a reluzente carruagem democrática regredir ao seu estágio de abóbora do poder. E o que era deslocamento sutil dentro dos marcos do bloco histórico se fez apoio desabrido, sem qualquer refinamento de edição. Desde 20/2, quando publicamos neste Observatório o artigo “Bourdieu, o queridinho e os plantonistas” [remissão abaixo], vínhamos alertando que a redefinição estratégica na cobertura não correspondia a uma efetiva postura democrática. Confundir ajuste tático com redefinição ética era de um primarismo tão gritante que chegava a ser suspeito. De pouco valeu nossa modesta contribuição. Nada havia a fazer quando a imprensa, em discurso auto-referido, celebrava a si própria.

De sustentáculo da ditadura, a TV Globo se transformava em fiadora da lisura do processo democrático. Bombas que sumiram de uma edição para a outra (Riocentro, 1981), censura ao movimento por eleições diretas para a Presidência da República (1985), edição de debates eleitorais para favorecer o candidato da direita (1989), expurgo de notícias que pudessem comprometer a candidatura à reeleição do atual presidente (1998) eram fatos que deveriam ser relevados. O momento atual só comportava elogios. Todos exultavam a própria fantasia transformada em axioma: a mídia era a vencedora do pleito.

O editor e apresentador do Jornal Nacional, jornalista William Bonner, mais que mediador era incensado como adestrador de candidatos. Aquele que, encarnando a face rousseauniana do campo midiático, não deixaria a vontade geral à mercê das manobras tergiversadoras dos candidatos. O debate da Globo mostrou que a cidadania, mais que protegida pelas regras do debate, estava subsumida às normas da emissora.

Tudo pareceria róseo e alvissareiro até o último dia de campanha. A partir dali o jogo se faria mais explícito. A associação dos interesses que sustentam a candidatura oficial e a política editorial das empresas da família Marinho ficaria mais clara. A clivagem que evidencia a predominância do capital financeiro no campo midiático se desnudaria no noticiário que foi produzido ainda antes da realização do segundo turno. Como sustentava Bernardo Kuscinski, em suas Cartas Ácidas de 8/10, a Globo retomara sua postura clássica na edição do último dia de campanha.


“Nesse mesmo Jornal Nacional, comparando o dia-a-dia de campanha dos quatro candidatos, o Jornal Nacional deu a Serra uma exposição enorme e bonita, em campanha própria e, de novo, na companhia de Alckmin. A Lula só restaram cenas de suor e a sua constrangedora espera na porta de uma privada de campanha. A TV Globo mostrou a privada duas vezes. Para reforçar o efeito de ridicularização.

“A TV Globo, nesta campanha, substituiu a manipulação grosseira por uma muito sutil, quase aceitável, em termos jornalísticos. Mas a cena da privada no Jornal Nacional da noite que antecedeu o dia do voto levou a emissora por alguns momentos a uma viagem ao passado, à grosseira manipulação do debate de 1989 entre Lula e Collor.”


Serra entregue ao projeto de um estadista, Lula deixado às próprias vísceras. A farsa havia chegado ao fim. Tal como em O Retrato de Dorian Gray, o jovem Bonner via sua face no velho retrato e era tomado por profundo terror. Invertida e envelhecida a imagem que o refletia mostrava um sombrio Cid Moreira

De segunda-feira em diante, a Globo bem que tentou manter o disfarce, mas o encanto estava quebrado. A forma como foram mostrados os apoios de cada candidato merece pequenas considerações. Um Ciro Gomes pouco enfático ? sua fala contundente só apareceria no telejornal que vai ao ar de madrugada ? ocultava a real disposição do candidato da Frente Trabalhista em se engajar na campanha petista. Brizola teve destaque inédito na emissora. O espaço concedido ao líder pedetista pode fazer parte de uma aposta da emissora: sua associação ao candidato petista talvez traga mais rejeição do que votos. Trata-se, obviamente, de mera suposição, mas descartá-la pode não fazer justiça ao amplo leque de artifícios dos senhores de Jacarepaguá. Com Garotinho não foi muito diferente, embora não se possa acusar a emissora de produzir um ator dissimulado. O que vale é a tônica dos apoios a Lula: todos, tal como foram apresentados, mostravam-se cobertos de condicionalidades, ao contrário das adesões à candidatura governista: categóricas e incondicionais. De Tasso ao pastor da Assembléia de Deus. Assim na terra como no céu.

Direito a jingle

A semana continuou mostrando fina sintonia entre o governo e a emissora. O terrorismo eleitoral veio à tona em várias edições do Jornal Nacional. A cobertura sobre o candidato de oposição era invariavelmente seguida, às vezes no mesmo bloco, de notícias sobre a explosão cambial. As afirmações do presidente do Banco Central, Armínio Fraga, atribuindo a instabilidade da moeda ao medo provocado nos investidores pela candidatura petista, eram reproduzidas sem que a emissora ouvisse opiniões divergentes. E muito ligeiramente se tratava do volume de títulos atrelados ao dólar com vencimento nos próximos dias. O direito ao contraditório não constava da pauta do Sr. Bonner? Assim, uma avaliação eleitoreira era apresentada como dado objetivo, não passível de questionamentos em seu arrazoado supostamente técnico.

O passo seguinte era firmar a tríade “Lula-Venezuela-Argentina”. As manifestações contra o presidente Hugo Chávez foram apresentadas com o firme propósito de reforçar a associação pretendida por Serra. “Se o PT ganhar as eleições, o Brasil corre o risco de se transformar numa Venezuela”, afirmaria o candidato tucano minutos depois do telejornal ter ido ao ar. O perfeito timing nos permite afirmar que a emissora se transformou num link do comitê de campanha da candidatura oficial.

Mais uma vez, a Globo dá uma aula de história. Reatualizando seu passado, esfria seus recentes admiradores e torna imperativa uma análise histórica que privilegie a diacronicidade.

Se nessa campanha Lula e Serra têm seus jingles, talvez seja insensato negar à emissora uma trilha sonora que faça jus à sua participação como parte integrante no processo. Ficam, como sugestão, os versos do velho samba:


“Deixou, deixou, deixou

Deixou cair a máscara da face.

Mostrou, mostrou, Mostrou

Mostrou por fim que nunca teve classe”


(*) Professor-titular da Faculdade de Comunicação e Turismo Hélio Alonso (Facha), Rio de Janeiro

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