Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

A musa da censura e o Supremo

CASO GUGU

José Paulo Cavalcanti Filho (*)

A suspensão do programa Domingo Legal (21/9/03) foi censura ou não foi?, eis a questão. Para os leitores e espectadores que votaram na urna eletrônica do Observatório da Imprensa, não foi. Compreende-se. Mas esse "julgamento" não é necessariamente correto. E vale a pena gastar um pouco mais de tinta pensando, para usar expressão de George Steiner, na "musa da censura".

Os argumentos a favor da legalidade da suspensão do programa, em análise puramente jurídica, não têm consistência. A Lei de Imprensa, única Lei Ordinária a que se recorre para justificar a medida, nem remotamente a autoriza. Os invocados artigos 16 e 19, além de não referir o tema, ainda arbitram penas diferentes dessa pena de suspensão de programa.

Em defesa da tese também são lembrados princípios constitucionais, especialmente os contidos no artigo 221 ? segundo os quais deve a programação "atender finalidades educativas, promoção da cultura, respeito aos valores éticos e sociais". Mas estes são só princípios, aos quais sempre se poderá opor outros princípios, garantidores da liberdade de expressão. Havendo ainda os que buscam suprir a carência de Lei Ordinária, capaz de dar concreção a ditos princípios constitucionais, admitindo serem estes princípios "auto-aplicáveis". Um argumento, tecnicamente, ainda menos sério.

À margem desse debate tem estado, até agora, o Supremo Tribunal Federal. Sem que nos tenhamos dado conta de que ele já tem, sobre o tema, posição firme. Tudo começou com exame de regra do Estatuto da Criança, de 1990. Importante por ser a única Lei Ordinária em vigor, no país, que autorizaria uma "suspensão da programação" como essa que atingiu o Domingo Legal. Única. Dispondo o Estatuto que "a autoridade judiciária pode determinar (…) a suspensão da programação da emissora por até dois dias"(art. 247, ? 2o), na proteção dos interesses da criança e do adolescente. Suspensão essa que, por interpretação extensiva, poderia também se aplicar ao caso de agora.

Conclusão inevitável

Ocorre que dita regra foi, em 1993, objeto de ação direta de inconstitucionalidade (869.2), promovida pelo honrado procurador-geral da República Aristides Junqueira. Referindo em seu fundamento essa ADIN que "a pena de suspensão de (…) programas futuros, sem que se cogite, nestes casos, de veiculação de matéria prejudicial à criança e ao adolescente, importa em restaurar, por forma oblíqua, a censura banida pela Carta Magna de 1988 (CF, art. 220, ? 2o)". Continuando: "a criação dessa medida de suspensão, com o caráter de sanção por infração administrativa, colide com o art. 220, ? 1o, da Constituição Federal que garante não possa lei nenhuma constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalista"quot;.

A ADIN já foi julgada pelo Supremo ? que reconheceu a inconstitucionalidade do artigo (247, ? 2o). Por unanimidade. Faltando a publicação do correspondente acórdão ? o que tem levado essa posição do Supremo a ser, até agora, pouco conhecida. Em outras palavras o Supremo já declarou, e por unanimidade, que a "suspensão de programas futuros (…) importa restaurar a censura".

Ainda segundo o Supremo, suspensões assim poderiam se dar apenas caso houvesse a certeza de que o novo programa iria veicular "matéria prejudicial à criança e ao adolescente". Fazendo um paralelo com o caso do Domingo Legal, a suspensão poderia ocorrer apenas quando houvesse previsão de ser novamente exibida a entrevista, ou alguma continuação dela. Mas isso, evidentemente, jamais ocorreria. A suspensão, no caso, teve claramente aquele "caráter de sanção" que o Supremo considera manifestação da "censura banida pela Carta Magna de 1988".

A importância desse julgado é que ele é terminativo. Para que possamos ter suspensões assim seria necessário antes reformar a própria Constituição ? ?1? do artigo 220. Para depois aprovar ? ou não ? Lei Ordinária específica, estabelecendo as bases em que a suspensão poderia se operar. Até que venha a ocorrer, o Supremo certamente não aceitará qualquer "suspensão com caráter de sanção".

Em resumo, a conclusão inevitável dessa decisão é que a suspensão do programa, para o Supremo Tribunal Federal, violou a Constituição. E, diferentemente do que pensam os votantes da urna eletrônica do Observatório, foi mesmo um retorno à censura "banida pela Carta Magna de 1988". Ponto final.

P.S. ? Muitos continuarão a sustentar que o programa mereceu mesmo sair do ar. Os fins justificam os meios (de comunicação). Mesmo atropelando a democracia. A esses se diga, com Chesterton, que o "mais terrível do erro é que ele tem heróis sinceros"

(*) Advogado no Recife, Presidente do Conselho de Comunicação Social (órgão auxiliar do Congresso Nacional)

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